A indefinição sobre a responsabilidade de órgãos ambientais estaduais ou federais pelo licenciamento de grandes obras pode ganhar maior nitidez com uma decisão proferida no fim de janeiro pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Pela primeira vez o tribunal entendeu que não cabe ao Poder Judiciário determinar ao Poder Executivo federal ou local a responsabilidade por analisar um empreendimento e dispensou o Ibama de intervir no licenciamento do novo plano diretor de Salvador, já devidamente autorizado pelo governo da Bahia.
O resultado já está sendo utilizado como precedente por advogados empenhados na liberação de obras paralisadas por motivos idênticos: autorizados pelo poder local, os empreendimentos são barrados porque a Justiça exige a intervenção do Ibama.
O conflito de competência entre os diferentes órgãos ambientais é apontado como um dos maiores obstáculos legais para o bom andamento do licenciamento ambiental de grandes obras de construção civil no Brasil. Ações movidas pelo Ministério Público e por organizações não-governamentais (ONGs) apelam para a brecha jurídica com o fim de paralisar os empreendimentos, mesmo que muitas vezes os processos tenham outras motivações - como desconfiança quanto à consistência dos licenciamentos conduzidos pelo poder local.
Ainda que a decisão do Supremo ainda seja uma liminar, está sendo considerada por muitos advogados como o melhor precedente proferido até hoje sobre o tema. O advogado Tiago Cedraz, do escritório Cedraz e Tourinho Dantas Advogados, está utilizando a decisão como fundamentação para liberar três empreendimentos questionados pelos Ministério Público Federal.
Uma das obras - um resort na Bahia estimado em mais de R$ 160 milhões - chegou a ficar paralisada por quatro meses por argumentos quase idênticos aos cassados agora pelo Supremo. Outro caso, um residencial de duas mil unidades em Camaçari, também na Bahia, está ameaçado por uma ação judicial, e um empreendimento hoteleiro no Ceará entrou em fase de negociação com procuradores federais que questionam o licenciamento do governo local.
Um dos principais escritórios de advocacia na área imobiliária em São Paulo, o Duarte Garcia, Caselli Guimarães e Terra Advogados, enfrenta o mesmo problema: segundo o sócio da área ambiental, Douglas Nadalini, 100% dos grandes empreendimentos têm ações do tipo. Recentemente, a banca precisou enfrentar processos envolvendo conflitos de competência para licenciar a obra do novo aterro sanitário da capital paulista, de uma operação de limpeza da calha do rio Tietê e de dois condomínios, um no interior do Estado e outro na capital.
No escritório Avvad, Osório, Fernandez, Mariz Moreira Lima e Fabião Advogados, do Rio de Janeiro, um cliente com uma grande obra de infraestrutura enfrenta uma ação do Ministério Público que alega a proximidade de um parque de conservação federal para exigir a interferência órgão federal.
O Ibama reage às ações alegando que não tem estrutura física nem pessoal para atender a todos os licenciamentos. No caso julgado no Supremo pelo ministro Cezar Peluso, alegou que, pelo tamanho do empreendimento, sua intervenção absorveria toda a estrutura da autarquia no Estado da Bahia, paralisando todos os outros processos em andamento.
A procuradora-geral do Ibama, Andréa Vulcanis, diz que o caso da Bahia é apenas um entre as milhares de ações enfrentadas pela autarquia. Segundo ela, em cerca de 90% dos licenciamentos há algum questionamento envolvendo a questão da competência. A origem da disputa, diz, está na Constituição Federal de 1988, que criou a competência comum de União, Estados e municípios pelo licenciamento, mas a regulamentação, que deveria ter vindo por meio de uma lei complementar, nunca foi aprovada. "É como se a Constituição falasse que todos os Estados e municípios pudessem cobrar Imposto de Renda", diz.
De acordo com a procuradora, o tema da competência é sempre colocado na mesa durante os processos de licenciamento. Os questionamentos, muitas vezes, são originados por dúvidas de ordem técnica ou política contra os órgãos locais, e desaguam no questionamento da competência. "Mas o Ibama não pode ser o órgão corregedor dos Estados ou dos municípios", diz.
Segundo Andréa, o Ibama sempre se dá por incompetente nas hipóteses em que não é obrigado a se pronunciar. Nos outros casos, estimula a criação e capacitação dos órgãos locais, e recentemente tem estimulando até o fortalecimento das autoridades municipais. Recentemente, parte do problema da competência foi resolvido com a aprovação de uma nova legislação sobre o tratamento da Mata Atlântica, na Lei nº 11.428 de 2006, regulamentada por decreto no ano passado - o tema é uma das principais razões de divergência na área.
(Por Fernando Teixeira,
Valor Econômico, 10/02/2009)