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Transoceânica hidrelétricas do rio madeira
2007-07-11
A temida internacionalização da Amazônia nunca esteve tão próxima.  Na última sexta, três dias antes do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) conceder a licença para a construção das usinas sobre o Madeira, o grito do sociólogo Luiz Fernando Novoa emudeceu um seminário na Universidade Federal do Acre (Ufac).

A reação foi profética.  Nesta segunda, a voz de Novoa foi emudecida pelo próprio Ibama, que finalmente cedeu à pressão e concedeu as licenças para as obras.  Com orçamento previsto de R$ 18,4 bilhões, as usinas, pelos cálculos do governo, devem entrar em operação em 2012.

Membro do Fórum Independente Popular do Madeira e da Rede Brasil, Novoa é professor da Universidade Federal de Rondônia (Unir).  Segundo ele, a desigualdade social aumentará com a construção da hidrelétrica devido à falta de controle social sobre megainvestimentos desse tipo.

O que são exatamente a Rede Brasil e o Fórum Popular do Madeira?
Como o nome diz, são redes sociais, isto é, formada por cidadãos que desejam o mesmo objetivo: ter seus direitos respeitados.  É uma tendência muito forte em Rondônia e eu particularmente tenho uma relação prioritária com ambas.  A rede foi criada em 1998, mas desde 2002 é um dos principais canais de voz à população que é excluída do chamado processo de desenvolvimento em curso em Rondônia e no resto da Amazônia.

Alguns jornais taxam esses fóruns como alienados, contrários ao progresso e o crescimento social.  O que o senhor diz sobre isso?
Na verdade, o processo de desenvolvimento em curso tem um grande vazio de participação popular.  É só isso que criticamos.  O planejamento dos projetos do governo, por exemplo, já chegam prontos para a discussão pública, porque seguem uma lógica econômica e voltada à exportação.  Não busca promover o desenvolvimento local, é um impulso privado apenas.

Mas a construção das hidrelétricas no Madeira, por exemplo, não vai melhorar o padrão de vida da população?
Depende.  Essa é a alegação propagandística do governo, mas, de fato, na ausência de projetos que pudessem ser construídos a partir dos diálogos e das diferenças que nós temos, das riquezas que muitas vezes sequer são conhecidas, nesse vazio se oferecem projetos prontos e acabados.  Ou seja, diante do abandono, da exclusão social a que a maioria da população da Amazônia foi relegada desde sempre, não surge um projeto novo, distributivo, justo, em equilíbrio com o meio ambiente.  Pelo contrário, nesse vazio político, nesse vácuo político, surgem esses megaprojetos.

Mas um investimento desse porte traz algum benefício ou não?
Olhando do ponto de vista imediato, sim, pode trazer benefícios.  Mas o que devemos nos perguntar é o que estamos perdendo de benefícios potenciais e qual a durabilidade disso.  Quando tempo durarão esses benefícios e que conseqüências com as quais vamos ter que lidar no futuro em função desses benefícios mais imediatos.

Como assim?
Estou dizendo que a obtenção de mais recursos, de maiores oportunidades de empregos e investimentos, poderia ser feita sem o sacrifício de fontes de renda bem mais permanentes.  É o caso do turismo, da biotecnologia, aproveitando a vasta cultura local etc. Veja, a questão é: o que podemos perder em função de benefícios imediatos demais?

Não há como compatibilizar as duas coisas?
Essa avaliação teria que ser feita antes mesmo de se implantar os projetos.  Teríamos que avaliar como se compatibilizaria a fonte de riquezas que já temos e como os projetos podem ou não ser supressores de alternativas e oportunidades futuras.

Esse estudo não ocorre nas audiências públicas?
Audiências públicas que não instruem a população antes são apenas propaganda.  A população só pode dizer algo a respeito se tiver acesso à informação durante o processo de consulta.  Mas essas reuniões, essas tais audiências, são meramente deliberativas.  As audiências teriam que medir e refletir um processo de discussão real feito nas comunidades.  Seria um processo longo, que deveria ser levado a sério, e muitas vezes o que acontece é que esses projetos usam espaços artificialmente montados para mostrar que a população está apoiando.

E não estão?
Na verdade, a maioria não teve acesso ao projeto, porque foi informada apenas dos aspectos positivos e, é claro, na situação de abandono em que se encontram muitos acabam se convencendo mesmo de que a iniciativa será o melhor para a Amazônia e aderindo à propaganda oficial.

Mas se fosse feita uma discussão com as informações verdadeiras?
Se fosse feita uma discussão séria, onde se colocassem os problemas reais previstos no futuro e os benefícios potenciais possíveis, e daí analisar como se poderia equilibrar isso tudo, aí sim a coisa seria totalmente diferente.

Quais são os riscos potenciais desse tipo de empreendimento?
À medida que você pega, por exemplo, um rio e o transforma numa espécie de jazida elétrica e só vê esse rio como uma sucessão de lagos para a energia elétrica, você não vê esse rio mais como uma fonte de pesca, como parte de um ecossistema que mantém um equilíbrio de várias populações humanas e biomas naturais.  Na verdade, você ignora inclusive que ele, o rio, pode ser fonte também de renda por meio do turismo e de outras atividades de menor impacto.

Há um determinismo econômico nessas obras, é isso?
Não só há um determinismo econômico, como este é inteiramente voltado a grandes empresas, principalmente, internacionais, como os bancos financiadores.  Então discutir esses benefícios somente a partir desse modelo é ficar a reboque das migalhas do que sobra para a população.

Esse papel secundário da população é inevitável?
Sim, porque há um jogo de supostos benefícios no sentido de estabilizar a população no interior desse projeto.  Se busca deixá-las dependentes de uma promessa de dinamismo, de uma promessa de arranjo econômico que ela sequer não participa de forma ativa, ela fica a reboque, como eu disse.

Mas e o Estado?  As políticas públicas não poderiam garantir a participação?
Não há políticas públicas para que a população seja protagonista desse desenvolvimentismo todo.  Ora, se o desenvolvimento não for embasado nos acordos locais, nos coletivos locais, em arranjos econômicos voltados para o mercado interno, nós não somos parceiros, nós só vamos a reboque.  Isso quer dizer, entre outras coisas, que a continuidade desse processo de desenvolvimento não está em nossas mãos.  A continuidade depende de quem já o estiver tocando.  A tal participação que você citou, nesse caso, seria não só secundária, mas dependente.

Por falta de participação social?
Porque o aporte de investimentos, de recursos, a administração do processo todo não estará nas mãos do povo.  E é interessante que nessa hora os setores políticos aproveitam essa convulsão toda que eles mesmos criam e transferem todas as prerrogativas que deveriam ser coletivizadas para uma elite fechada, poderosa, que tem fortes ligações com a política.

E isso reduz o espaço da participação cidadã?
Totalmente.  Na verdade, isso é um absurdo do ponto de vista político, inclusive, porque quem deveria controlar o território era a população.  Numa democracia, as instâncias políticas são eleitas pelo povo e para o povo.  O problema é que, na política, há essa inversão de poderes para a iniciativa privada e, ao invés de fortalecer os espaços de participação e de deliberação cidadã, isso relega a população à figura de mero expectador.

Mas esse não é exatamente o velho dilemma do capitalismo versus democracia?
Essa relação de instrumentalização realmente já existe e se tornou comum na economia geral.  O caso é que, numa região onde o setor público não se constituiu no sentido de garantir direitos, inclusive direitos básicos do ser humano, criar grandes projetos de bilhões de reais nas mãos de um pequeno grupo faz com que esse processo se intensifique.  E se alastre, perigosamente.

Como assim "se alastre perigosamente"?
A conseqüência imediata é uma transferência de poder na Amazônia.  Quando se fala de internacionalização como risco, por exemplo, os grandes projetos materializam esse risco, porque quem vai controlar a região serão grandes empresas que sequer são nacionais.  São internacionais.  O financiamento é todo externo, de capital internacional.  E, mesmo quando se fala de empresas estatais, como a Petrobrás, ela própria já carrega dentro de si grande parte do capital estrangeiro em suas ações.  Então transferir o controle desse imenso território para grandes riquezas mundiais é perder gradativamente o controle sobre a administração do território.  E a população vem a reboque e a mercê de tudo isso.

Qualquer grande projeto para a Amazônia, em sua opinião, terá esse efeito?
Claro que não, nem todo grande projeto tem que ser assim.  Mas não podemos deixar de medir a magnitude de um projeto segundo a magnitude do controle social sobre ele.  Correspondente ao poder que se dá a um grande projeto, teria que haver poder de controle público, mecanismos de fiscalização etc. E isso não existe, nem está garantido.  E será usado dinheiro público.

Isso se aplica a todo o Plano de Aceleração do Crescimento, o PAC, ou apenas às hidrelétricas do Madeira e a Rodovia Transoceânica, no Acre?
Na verdade, o PAC apenas nacionalizou uma iniciativa que é regional, sul-americana, chamada Iniciativa de Integração da Infra-estrutura Regional Sul-americana (Iirsa), um programa que o governo brasileiro participa desde 2001.  Esse programa visa integrar a nossa infra-estrutura regional dos países da América do Sul, vinculando as áreas de dinamismo de exportação a um mercado mundial.

Com qual objetivo?
Fornecer energia, transporte e comunicação para que faixas exportadoras se liguem com mercados mundiais.  E daí a idéia de construir a Transoceânica, ligando o Acre ao Pacífico pelo Peru, e também a hidrovia do Madeira.  São cunhas.  Os eixos da Iirsa são cunhas para o escoamento das riquezas naturais, da Amazônia em especial.  O nosso questionamento nasce daí, porque não é uma iniciativa de desenvolvimento local, apenas.  Nosso questionamento é sobre que tipo de futuro que podemos ter com esses projetos.

O futuro é sombrio então?
Observando quem está por cima, que interesses vão nortear a condução desses projetos, quem vai administrar e depois gerir o território após o remodelamento, eu diria que sim.  Não são apenas as hidrelétricas, as prospecções de petróleo ou as grandes rodovias que estão fora do nosso controle.  O remodelamento da economia amazônica inteiro está sob o controle privado.  E a população, excluída.

Críticas
À medida que você pega, por exemplo, um rio e o transforma numa espécie de jazida elétrica e só vê esse rio como uma sucessão de lagos para a energia elétrica, você não vê esse rio mais como uma fonte de pesca, como parte de um ecossistema que mantém um equilíbrio de várias populações humanas e biomas naturais.

Audiências públicas que não instruem a população antes são apenas propaganda.  A população só pode dizer algo a respeito se tiver acesso à informação durante o processo de consulta.  Mas essas reuniões, essas tais audiências, são meramente deliberativas.  As audiências teriam que medir e refletir um processo de discussão real feito nas comunidades.

(Por Josafá Batista, A Tribuna, 10/07/2007)




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