Em Quarup, romance de 1966, Antônio Callado sintetiza um conflito que define as relações entre o nativo e o colonizador, o estado da natureza e a civilização dita humana (na verdade, européia). De um lado, Chico Fontoura (o nome literário do sertanista Francisco Meireles) querendo isolar os índios do Xingu, mantendo os brancos à maior distância possível. Do outro lado, os irmãos Vila Verde (os irmãos Vilas-Boas de carne e osso) querendo colocar uma ordem na integração, que consideravam inevitável. Não era o "se o estupro é inevitável, relaxe e aproveite", recomendado pela ministra Marta Suplicy aos massacrados passageiros da aviação brasileira, com base num dito bem americano, mas algo como "se não podemos cancelar o mundo ao redor, vamos aproveitar também o que ele tem de bom".
Essa é a principal questão filosófica da "integração da Amazônia". A incorporação dessa vasta fronteira ao território nacional chega como uma ordem, um imperativo categórico estabelecido pelo mais forte, o colonizador, aquele que chega armado da régua & compasso (e do "38", é claro, além do dinheiro). É possível ignorá-lo? É factível fechar-lhe a porta de entrada e mandá-lo voltar ao lugar de onde veio? É viável fazer de conta que as riquezas naturais pelas quais foi atraído para a região permaneçam intocadas, recobertas pela paisagem natural? Se nada disso faz parte do universo das realidades, pode-se inverter a lógica do colonizador e tirar dele o que ele não quer ceder, desfazendo a sua retórica e a sua prática malfazeja? Essa história só pode ser escrita por quem a dita ou está ao alcance da reescrita de quem a nega?
Esse drama é vivido constantemente na Amazônia, a maior área por conquistar e "integrar" (a expressão mais exata é submeter) do país, mas também existe em vários outros lugares brasileiros. Jaceaba, a apenas 100 quilômetros de Belo Horizonte, vive esse drama. Duas multinacionais pretendem começar no próximo mês a instalar, nesse município mineiro de 6,5 mil habitantes, uma fábrica de tubos de aço sem costura de 1,6 bilhão de dólares, valor equivalente a 750 anos de receita da localidade.
Alguns cidadãos já deram seu veredicto sobre o projeto: recusam-no. Outros ainda estão indecisos. E a maioria não só o aprovou como contribui para sua materialização: a prefeitura, comandada pelo PT, concedeu à empresa, controlada pela francesa Vallourec e a japonesa Sumitomo, isenção de IPTU por três anos, alíquota mínima do imposto sobre serviços e lote no distrito industrial, de 11 mil metros quadrados. Não foram esses os fatores determinantes para a escolha de Jaceaba, que dividia a disputa pela fábrica com sítios de outros nove países, incluindo a própria França e a China, mas ajudou a reforçar a vantagem da localização, ao lado da Ferrovia do Aço, e do suprimento de matéria-prima abundante.
A definição do empreendimento tem outro significado: rompe o discurso sobre a inexorabilidade da instalação de projetos de exportação no litoral, ao lado do porto de embarque. Essa diretriz é muito cara a Minas Gerais, que é um sertão sem mar, ainda assim capaz de abrigar grandes empreendimentos, sobretudo siderúrgicos, metalúrgicos e energéticos, que recuperaram sua posição de segunda maior da economia nacional.
O caso de Jaceaba podia servir de matéria para a reflexão dos moradores de Juruti, no extremo oeste do Pará. Uma parte dos habitantes do município, agrupados no núcleo de Juruti Velho, simplesmente não quer ouvir falar da mineração de bauxita da Alcoa, empreitada de 450 milhões de dólares. Outra parcela se aproxima desconfiadamente do "grande projeto". E o grupo majoritário o quer, embora não forme um todo homogêneo (há divergências e até conflitos no meio de seus integrantes).
As posições extremas, dos que são radicalmente contra ou a favor sem conhecimento de causa, é estéril exatamente por abstrair questão que, uma vez existente, não pode desaparecer pelo mero exercício de uma vontade absoluta. Se fosse possível retornar ao status quo ante ainda se podia conjeturar sobre um sonoro não, devolvendo-se a região ao seu estado natural.
Mas isso já não é possível, se é que ainda existia de fato um estado natural, uma pureza primitiva, antes do aparecimento da Alcoa. Juruti pode voltar a ter na produção da farinha sua principal atividade econômica, mas do lado do passivo haverá itens gerados pela introdução de um mundo completamente novo, mesmo que hostil (ou, sobretudo, por isso).
Cabe agora desenvolver ensaios sobre as alternativas existentes e selecionar a que for mais positiva para os jurutienses, se ela existe e se é singular ou plural. Quem comparar a implantação da mineração de bauxita do Trombetas, durante a década de 70, com a instalação da Alcoa, três décadas depois (ou da CVRD em Paragominas, mais recentemente), verificará o avanço qualitativo sobre os dois momentos anteriores. O começo (ou start, como diz o jargão) da Alcoa em Juruti é superior a essas duas situações e ao de outras partidas minerais na região. A cultura empresarial sobre a responsabilidade social, a relevância dos cuidados sociais e ambientais, a interferência das certificações de qualidade e a importância reconhecidamente planetária da Amazônia, dentre outros fatores, fizeram a empresa avançar sobre o mundo circundante e sobre si.
A atenção ao nativo e o cuidado ecológico podem ser também instrumentos de relações públicas e propaganda, mas seguramente não são só isso, ainda que essas técnicas de manipulação tenham sua relevância nas estratégias corporativas. Qual dos "grandes projetos" fez um "retrato das comunidades" em torno de si tão acurado como o que a Alcoa publicou no mês passado? Nenhum promoveu tantas audiências públicas e consultas populares, nem se expôs a verificações, que resultaram na constatação de erros e falhas, dos quais já resultaram danos, mas não de forma insanável ou irreparável (inclusive através de indenização).
Constatar esses pontos e admitir a evolução não significa incorporar a posição da empresa. Pelo contrário: exige questioná-la e, quando demonstrado, compeli-la a ajustar, modificar ou cancelar seus procedimentos. Embora, como no caso de Jaceaba, a implantação de uma nova mina de bauxita no interior da Amazônia tenha o condão de contrapor-se à retórica sobre a vantagem exclusivista e excludente do litoral (que condena o Brasil à imagem quinhentista do caranguejo arranhando as praias), só a mineração não interessa a Juruti nem ao Pará.
O passo seguinte, o da produção de alumina, é viável, desde que haja energia, em volume ainda relativamente reduzido. Mas se for definida uma fonte de suprimento energético (pode ser o gás de Urucu, no vizinho Estado do Amazonas), por que não avançar mais na escala de transformação e chegar ao metal - e, dele, a produtos mais elaborados? Ao mesmo tempo em que se agrega valor ao processo produtivo, aprimoram-se os mecanismos de compensação social e ecológica, fazendo a dimensão humana acompanhar a escalada material. Pode ser que ao fim desses ensaios chegue-se à conclusão de que é impossível combinar os interesses sociais e ecológicos com os econômicos.
Tomar essa incompatibilidade como premissa é adotar uma postura irracional e irrealista. Neste caso, não se trata de utopia, mas de cegueira. Só tem substância a rejeição ao que se conhece; a negativa é o resultado da dedução obtida através de relação dialética, no confronto da tese com a antítese, ambas afirmando-se pela demonstração. Do contrário, é fanatismo ou dogmatismo. Mesmo que haja boa intenção, ela poderá conduzir ao nada. Pode-se colher frutos indesejáveis ou conseguir como resultado a derrota e não a almejada vitória.
Certas vanguardas amazônicas têm-se mostrado lépidas para negar, mas incompetentes para entender. Primeiro formulam a conclusão e só depois, por desdobramento, chegam ao seu enunciado, como se construíssem o telhado antes das paredes e estas, preliminarmente, às fundações. Se um milagre ajudar, a construção pode se manter suspensa no ar. Se a lei da gravidade estiver em vigor, ela desabará. Pode ser que, por um ou outro método, atinja-se o mesmo desfecho, mas essa será uma coincidência casual. E a casualidade é exceção, não a regra.
Podem-se defender teses e utilizar princípios, mas eles precisam ser testados constantemente para não defasarem ou desligar-se da realidade. Mesmo um projeto sujeito a críticas ou a negação contém algum elemento útil se, para combatê-lo, procura-se conhecê-lo. É o caso, por exemplo, das duas hidrelétricas do rio Madeira, em Rondônia. O debate pode confirmar a posição dos que não querem sua construção, mas há um aspecto técnico proveitoso nos dois projetos: eles incorporaram turbinas bulbo, que funcionam em rios de baixa queda.
O grande empecilho para a adoção dessa tecnologia na Amazônia, que permitiria a significativa redução dos reservatórios, é sua baixa capacidade de geração. Ela ainda é menor do que a da tecnologia das grandes barragens, mas já avançou na escala. As usinas de Jirau e Santo Antônio, que em conjunto terão 80% da capacidade instalada de Tucuruí (com um reservatório quatro vezes menor), foram projetadas para funcionar com 88 turbinas, cada uma delas com potência de 73/75 megawatts, enquanto a usina do rio Tocantins conta com 23 turbinas, de 350 a 375 MW, potência cinco vezes maior, e por isso precisa de maior desnível de água, o que, em rio de planície, significa barragem de alta queda e grande inundação.
Mesmo que se decida manter os rios da Amazônia em seu estado natural, enriquece examinar essas hipóteses. Se não corre-se o risco de ignorar que o mundo bate à porta.
(Por Lúcio Flávio Pinto,
Adital, 05/07/2007)