Se, como está parecendo, Angra III faz parte de projeto maior, não totalmente explicitado, de construir várias outras usinas e tornar o Brasil uma potência nuclear, é necessário que a população opine através de um referendo.Depois de muita hesitação, o governo finalmente optou pela retomada da construção de Angra III. Predominou a lógica dos grupos de interesse, todos favoráveis à retomada. São pela retomada os militares, fascinados pelo poder que a energia nuclear lhes traz, os industriais preocupados com o risco de um apagão, os cientistas, pelo prestígio e oportunidades novas na pesquisa e no comando do processo, os fornecedores de equipamentos e as empreiteiras, por motivos óbvios, e a população de Angra, seduzida em audiências públicas pela perspectiva de criação de alguns milhares de novos empregos de alta qualidade.
O povo, como se vê, não opinou diretamente. Nem o povo é um grupo de interesses. Não se fez um referendo, nem nada. O Congresso não foi consultado. Nenhum candidato à presidência colocara a questão nuclear em sua plataforma eleitoral. A população da Angra entra na história como grupo de interesse especifico, e não como amostragem de uma opinião pública nacional. O Ministério do Meio Ambiente se opôs em nome dos “interesses difusos” do povo, mas quem garante que o MMA representa uma opinião pública?
Nada disso é novidade. Os programas nucleares foram sempre implantados em segredo de Estado. Desde o projeto Manhattan, em plena guerra, até o reator de Dimona, no deserto do Neguev. É conhecido o DNA autoritário da energia nuclear. Pior: o formato compacto adotado, com base no urânio enriquecido, obedeceu desde o início à lógica militar: uma máquina pequena para mover submarino.
Com a corrida nuclear na época da Guerra Fria, o objetivo passou a ser o de obter o máximo de plutônio, subproduto dos reatores e matéria prima para as bombas nucleares. Mesmo com as modificações posteriores, esse ainda é o formato das usinas. Angra I produz 400 kg de plutônio por ano, que os americanos levam embora para fabricar suas bombas. Na história da energia nuclear, a energia quase sempre foi um pretexto encobrindo o verdadeiro objetivo: a bomba e o status de potência.
As usinas nucleares tornaram-se também usinas de mentiras: mentiram sempre e continuam mentindo sobre o problema fundamental dos rejeitos nucleares. A verdade é que até hoje não se encontrou uma solução definitiva e segura para esses rejeitos, que incluem o césio 137, o estrôncio 90, o iodo 129, elementos radioativos mortíferos e cancerígenos mesmo em doses microscópicas. Até as luvas, aventais e vassouras usadas na varrição diária têm que ser despejados em barris hermeticamente isolados. E esses barris vão se amontoando, centenas deles por mês, só em Angra, sem que ninguém saiba que destino lhes dar. Já pensaram até em enviar tudo ao espaço sideral.
E por que o lixo nuclear é tão diferente de outros lixos? Porque esses elementos radioativos, em especial o plutônio, são incompatíveis com a vida. Por isso, uma pequena pedrinha de césio liberada de um aparelho de dentista foi capaz de matar e aleijar tanta gente em Goiânia. Por isso, o descontrole do processo de fissão nuclear em Chernobyl matou ou feriu de cara 130 pessoa e foi matando dezenas mais de câncer nos anos seguintes, e continua matando em silêncio.
A vida só foi possível no planeta Terra depois que os elementos fortemente radiativos, de início abundantes, foram decaindo em outros, não radiativos ou de radiação leve. Um processo que levou alguns bilhões de anos. Chama-se ‘meia vida’ o tempo que decorre para uma quantidade de um elemento radioativo cair à metade. Pois bem: a meia vida do plutônio é de 24.400 anos. Isso significa que foram precisos quase 250 mil anos para que o plutônio existente nos primórdios da formação a Terra se reduzisse a um milésimo da quantidade inicial.
E vem o homo sapiens, e com toda a soberba de que é capaz, reintroduz quilos e até toneladas do plutônio em nosso meio, assim de sopetão. A energia nuclear não é mais ou menos poluente do que outras formas de geração de energia: ela é simplesmente incompatível com a vida. Essa á a diferença, que faz toda a diferença.
Vamos então combater Angra III com todas as forças? Não necessariamente. Mas é preciso enquadrar adequadamente a questão. Hierarquizar os problemas. Não se deixar enganar por falsos argumentos e programas não transparentes.
Primeira questão, pela ordem: Angra III é necessária para suprir a demanda de energia? Não, não é. Essa usina terá capacidade de apenas 1359 Megawatts, o equivalente a apenas duas turbinas de uma hidroelétrica de porte. Cada vez menos é necessária. Temos ainda muito potencial hidroelétrico de baixo dano ambiental, baixo custo e nenhum resíduo para aproveitar. E temos o novo potencial da biomassa, que já ganha escala e se revela cada vez mais econômico, embora ainda com efeitos ambientais e sociais consideráveis que teriam que ser regulados e podem ser perfeitamente regulados. Angra III aumentaria a confiabilidade do sistema Sudeste em caso de secas prolongadas, mas não é necessária para aumentar a quantidade suprida em si.
Segunda questão: a energia nuclear é mais barata? Não. O ganho em confiabilidade dá-se a um custo altíssimo, porque a energia nuclear é quatro a cinco vezes mais cara do que a hidroelétrica e esse custo teria que ser absorvido por todo o sistema.
Terceira questão: Angra III aumentaria os riscos de acidente nuclear? À primeira vista, pode parecer que sim. Quanto mais usinas, maior a probabilidade de vazamentos, explosões e todo tipo de acidente. Também se produz mais resíduo nuclear. Mas não é bem assim. Pode se dar o contrário. Ao construir uma terceira usina na mesma região de duas que já existem, otimizam-se os recursos para formação de equipes de segurança e de inspeções, controle de qualidade, acompanhamento do sistema, paradas de manutenção e troca de combustíveis, mesmo porque Angra III foi projetada para formar um par com Angra II. Ambas de origem alemã.
A menos importante de todas as questão é o que fazer com os equipamentos já comprados, se Angra III não for construída. A simples estocagem e guarda desses equipamentos nus custam hoje US$ 200 milhões por ano, gastos sem nenhuma utilidade. Mas esse não deve ser o critério da decisão, mesmo porque utilizar esses equipamentos sai mais caro a longo prazo (pelo custo da energia gerada) do que inutilizá-los. Além disso, algumas peças podem ser vendidas a terceiros, e in extremis devolvidas à Alemanha, sob o argumento de que a própria Alemanha esta desmontando seus equipamentos nucleares, portanto tem a obrigação de receber de volta o que nos vendeu em outros tempos.
Conclusão: podemos apoiar a construção de Angra III se isso fizer parte de um programa transparente, de objetivos bem definidos e limitados: completar um parque nuclear que afinal já existe em Angra, aproveitando para aumentar sua segurança, e ao mesmo tempo, nos manter em dia com as pesquisas nucleares. Não devemos apoiar, sem antes haver um referendo nacional, se a decisão fizer parte de um projeto maior, muito maior, não totalmente explicitado, de construir várias outras usinas, e entrar pesado na produção de combustíveis nucleares para tornar o Brasil uma potência nuclear, como parece ser o verdadeiro objetivo. Se for isso, que se faça um referendo.
(Por Bernardo Kucinski,
Agência Carta Maior, 26/06/2007)
Bernardo Kucinski, jornalista e professor da Universidade de São Paulo, é colaborador da Carta Maior e autor, entre outros, de “A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro” (1996) e “As Cartas Ácidas da campanha de Lula de 1998” (2000).