Demarcação de terras de guaranis e tupiniquins segue parado na Funai. Aracruz, que perderia parte de sua área, propõe criação de 'reserva indígena' no lugar de 'terra indígena', o que impediria que demarcação seja ampliada no futuro.
SÃO PAULO – A demarcação das terras indígenas dos guaranis e dos tupiniquins no Espírito Santo era esperada para o ano passado, mas, até agora, o processo permanece parado na Fundação Nacional do Índio (Funai). A reivindicação é uma ampliação em 11,9 mil hectares de uma área já homologada em 1998. Essa nova extensão tomaria 55% das terras da empresa de celulose Aracruz. Em 2006, o Ministério da Justiça estava preste a declarar a portaria que reconhecia a área como ocupação tradicional dos índios e que, portanto, deveria ser homologada como terra indígena, mas o então ministro Márcio Thomaz Bastos devolveu o documento para a Funai para que fosse reavaliado.
Maria Auxiliadora Leão, diretora de Assuntos Fundiários da Funai, informou, por meio da assessoria de imprensa, que a Funai já deu o seu parecer sobre o processo e que logo será encaminhado pelo presidente do órgão, Márcio Meira, ao Ministério da Justiça. No entanto, não há uma data acertada para que isso aconteça.
O fato de a documentação ainda estar na Funai se deve a questões políticas. Essa é a avaliação do movimento indígena e dos setores que defendem a demarcação e têm acompanhando o caso de perto. De acordo com eles, não existem mais impeditivos para que o processo seja reenviado para o atual ministro Tarso Genro.
O imbróglio sobre a ampliação dessas terras indígenas já dura mais de duas décadas, bem como a disputa fundiária entre os índios e a Aracruz. A empresa se instalou na região em 1967. Mas os primeiros estudos da Funai, que atestam a presença original das comunidades, começaram a ser feitos em 1975.
Em 1981, a posse dos índios sobre as terras foi reconhecida e, em 1983, foram criadas três áreas indígenas: Caieiras Velha, Pau Brasil e Comboios, que somam 4,49 mil hectares. Em 1998, este total foi ampliado quando o Ministério da Justiça concedeu às comunidades mais 2,57 mil hectares dos 18,9 mil hectares ocupados pela Aracruz, e que os estudos da Funai apontaram como pertencentes historicamente aos guaranis e tupiniquins.
OposiçãoFreqüentemente, os índios são acusados de “sempre quererem mais” pelos ocupantes de áreas tradicionais. O diretor jurídico da Aracruz, José Luiz Braga, afirma que “a dupla demarcação [a ampliação da TI] já é, por si só, uma ilegalidade, já que os atuais limites das áreas foram homologados por meio de decretos, encerrando os respectivos”.
Diante dessa afirmação, o cacique Wilson Benedito de Oliveira, da etnia tupiniquim e coordenador da Comissão dos Caciques Guaranis e Tupiniquins, explica: “A luta pela terra é permanente. Não estamos pedindo uma ampliação [do território], porque queremos que o governo faça algo definitivo [em relação à demarcação da terra]”.
Para o indigenista e assessor da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), Fábio Vila, a demarcação desta última parcela de terras é uma forma de o governo reconhecer o erro de 1998, quando a demarcação não foi feita na totalidade.
Atualmente, os 7 mil hectares, que os índios detêm, estão divididos em dois territórios descontínuos. O cacique explica que os 11,9 mil hectares, que aguardam a aprovação do Ministério da Justiça, são importantes para unificar as duas terras. Nessa região, vivem sete comunidades, que somam uma população de 2,6 mil guaranis e tupiniquins.
ContrapropostaComo um paliativo à demanda dos povos indígenas, a Aracruz tem proposto doar uma porção de terras ao invés da área reivindicada para a homologação. A condição da Aracruz é que ela seja reconhecida como reserva indígena e não como Terra Indígena (TI).
De acordo com o diretor jurídico da Aracruz, José Luiz Braga, a condição de reserva indígena dá segurança à empresa, caso haja reivindicação futura de novas ampliações. ”Essa segurança é necessária não só para que a Aracruz possa obter a madeira de que necessita para cumprir seus compromissos, como para gerar um clima de boa vizinhança e cooperação com as comunidades indígenas que resulte em um processo de desenvolvimento para essas comunidades”, pondera.
Contudo, essa distinção fundiária tem sérias implicações sobre os índios. “Aceitar a reserva implica os índios abrirem mão da tradicionalidade e dizerem que nunca foram habitantes do lugar e que os filhos não terão o direito à posse da terra”, explica Arlete Schubert, da equipe de apoio aos índios da FASE. O local e o tamanho da área a ser doada pela empresa não foram especificados. Fábio Vila afirma que uma reserva indígena é criada pelo Estado, quando o poder público intervém em situações em que os índios padecem com a miséria, após terem migrado de uma outra região. A reserva, então, não tem como condições a tradição e a posse original das terras, que são pressupostos para a criação de terra indígenas.
Segundo Vila, ao negar a posse dessas terras, surgem duas questões que colocam em xeque a identidade das comunidades: “Se os índios não são desta região, então, de onde as comunidades vieram ou, então, os seus membros seriam mesmo indígenas?”, questiona.
A Aracruz, em sua página na internet, afirma que documentos apontam indícios de que os índios não pertenciam originalmente àquela região e que perderam seus hábitos ao longo do tempo. Tais informações se conflitam com o levantamento da Funai, que aponta o local como sendo de ocupação tupiniquim e guarani. “A Aracruz diz que a terra é dela, mas temos a memória do nosso povo e os documentos da Funai comprovam isso. Comprometeríamos o futuro nas nossas crianças ao negar toda a nossa história. Nós não queremos outra terra, porque a nossa condição é diferente de assentamentos, como no caso do MST. A relação que temos com a terra é espiritual, de mãe, tem toda uma vida aqui”, explica.
De acordo com o líder indígena, Wilson Oliveira, a Aracruz propôs que, se os índios aceitassem a doação das terras, eles também deveria assinar um termo, reconhecendo que nunca houve e não há presença de índios naquela região do Estado.
Na terra reivindicada, a Aracruz plantou eucaliptos para a produção de sua celulose. Os índios afirmam que se dispõem a negociar o valor dessa benfeitoria, que, por lei, deve ser indenizado pelo governo federal.
(Por Natalia Suzuki,
Agência Carta Maior, 21/06/2007)