Como os índios karitiana se recordam, os primeiros pesquisadores a extrair seu sangue vieram para cá no final dos anos 70, logo após sua tribo amazônica iniciar contatos constantes com o mundo exterior. Em 1996, outra equipe os visitou, prometendo medicamentos se os karitiana doassem mais sangue, de forma que obedientemente fizeram fila de novo.
Mas tais promessas nunca foram cumpridas e, de lá para cá, o mundo expandiu novamente para os karitiana com a chegada da Internet. Agora eles ficaram enfurecidos com uma simples descoberta: o sangue deles e DNA estão sendo vendidos por uma firma americana para cientistas de todo o mundo por US$ 85 a amostra. Eles querem o fim da prática e estão exigindo indenização pelo que descreveram como violação de sua integridade.
"Nós fomos enganados e explorados", disse Renato Karitiana, líder da associação tribal, em uma entrevista na reserva da tribo, no leste da Amazônia, onde 313 karitiana ganham a vida com agricultura, pesca e caça. "Tais contatos foram muito danosos para nós e estragaram nossa postura em relação à medicina e ciência."
Os índios suruí, cujas terras ficam ao sul daqui, e os ianomâmi, que vivem na fronteira entre o Brasil e a Venezuela, se queixam de experiências semelhantes e dizem que também querem o fim da distribuição de seu sangue e DNA pela firma americana, a Coriell Cell Repositories, uma entidade sem fins lucrativos em Camden, Nova Jersey.
A Coriell armazena material genético humano e o disponibiliza para pesquisa. Ela diz que as amostras foram obtidas legalmente por meio de um pesquisador e foram aprovadas pelos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos.
Joseph Mintzer, vice-presidente executivo da organização matriz, o Instituto Coriell para Pesquisa Médica, disse em uma entrevista por telefone: "Nós não estamos tentando lucrar com ou roubar os brasileiros. Nós temos uma obrigação de respeitar sua civilização, cultura e povo, o motivo de controlarmos cuidadosamente a distribuição destas linhagens de células".
Como um centro semelhante na França que também obteve amostras de sangue e DNA dos karitiana e outras tribos amazônicas, Coriell disse que fornece espécimes apenas para cientistas que concordam em não comercializar os resultados de sua pesquisa ou transferir o material para terceiros.
Os povos indígenas da Amazônia são ideais para certos tipos de pesquisa genética, porque são populações isoladas e extremamente fechadas, permitindo aos geneticistas a construção de um pedigree mais completo e rastrear a transmissão de uma doença por gerações.
Mas a prática de coletar amostras de sangue dos índios da Amazônia tem provocado muita suspeita entre os brasileiros, que são zelosos em relação ao que chamam de "biopirataria", desde que sementes de seringueiras foram exportadas da Amazônia há quase um século. O surgimento do mapeamento do genoma nos últimos anos apenas agravou tais temores.
Débora Diniz, uma antropóloga brasileira, argumenta que as experiências dos karitiana e de outras tribos mostram "como os cientistas ainda estão despreparados para um diálogo intercultural e como a ciência se comporta de forma autoritária com populações vulneráveis".
O centro do debate internacional que surgiu aqui tem a ver com o conceito de "consentimento informado". Os cientistas argumentam que todos os protocolos apropriados foram seguidos, mas os índios dizem que foram enganados para permitir que seu sangue fosse coletado.
"É uma espécie de ato de equilibrismo", disse Judith Greenberg, diretora de genética e biologia de desenvolvimento do Instituto Nacional de Ciências Médicas Gerais, parte dos Institutos Nacionais de Saúde. "Nós não queremos fazer algo que deixe toda tribo ou população infeliz ou enfurecida."
"Por outro lado, a comunidade científica está usando estas amostras, que foram aceitas e mantidas sob procedimentos perfeitamente legítimos, para benefício da humanidade."
Mas os índios respondem que na época que as amostras foram coletadas, eles tinham pouco ou nenhum entendimento do mundo exterior, muito menos de como funcionava a medicina Ocidental e a economia capitalista moderna.
Francis Black, o primeiro pesquisador a coletar amostras de sangue aqui, morreu recentemente, de forma que é impossível obter seu relato. Mas as autoridades da Fundação Nacional do Índio (Funai), o órgão do governo brasileiro que supervisiona os grupos tribais, disse que sua presença na reserva violou os procedimentos desenvolvidos especificamente para proteger os índios de forasteiros.
"Nós nunca teríamos autorizado algo assim", disse Osmar Ribeiro Brasil, que trabalhou na divisão regional do órgão em Porto Velho desde os anos 70, sobre a coleta de sangue. "Não há registro de qualquer autorização de pesquisa aqui ou em nossa sede em Brasília."
Para a realização desta reportagem, todos os procedimentos exigidos foram seguidos. A Funai autorizou a visita aqui e enviou um funcionário para acompanhar o repórter e o fotógrafo. Mas tal funcionário não participou das entrevistas nem orientou os índios em suas respostas.
No caso da expedição de 1996, a permissão para entrada na reserva foi obtida, mas apenas para filmar um documentário sobre a natureza, disseram representantes da Funai. Mas assim que entraram na reserva, um médico brasileiro que acompanhava a equipe de filmagem, Hilton Pereira da Silva, e sua esposa começaram a realizar pesquisa médica não autorizada, disseram representantes da Funai e moradores da reserva.
"Se alguém ficar doente, nós mandaremos remédios, muitos remédios", é o que Joaquina Karitiana, 56 anos, lembra de ter sido informada, o que aliviou suas preocupações. "Eles extraíram sangue de quase todos, inclusive das crianças. Mas assim que conseguiram o que queriam, nós nunca recebemos remédio nenhum."
Pereira da Silva não estava disponível para comentário. Mas em uma declaração que emitiu em resposta às queixas sobre seu trabalho, ele disse que explicou os propósitos de sua pesquisa "em linguagem acessível" e prometeu que "qualquer benefício possível resultante da pesquisa com o material seria revertido totalmente para aqueles que doaram".
Em conseqüência das pressões legais exercidas pela tribo e a Funai, os institutos brasileiros que coletaram amostras de sangue as devolveram às tribos. Mas as entidades estrangeiras têm resistido, dizendo que agiram legalmente e que não há lucros a serem compartilhados. "Eles querem dinheiro e não ganhamos qualquer dinheiro", disse Mintzer, da Coriell. "Eu não conheço ninguém que ganhou dinheiro com isto."
Os karitiana dizem que isto os inclui. Antonio Karitiana, o chefe da tribo, disse que o atendimento de saúde, o saneamento e habitação são precários e o transporte é deficiente. Qualquer dinheiro seria investido "em benefício de toda a comunidade", ele disse.
Orlando Karitiana, 34 anos, um líder tribal, disse: "Nós não queremos o sangue de volta, porque agora está contaminado. Mas estas amostras de sangue são valiosas na tecnologia de vocês, e achamos que cada família que foi enganada para doar sangue deve se beneficiar".
Mas a religião de alguns grupos tribais considera o tecido humano muito importante ou quase sagrado. Os ianomâmi, por exemplo, dizem que querem a devolução das amostras de sangue intactas. "Uma alma só pode descansar quando todo o corpo é cremado", disse Davi Ianomâmi, um líder do grupo. "Ter o sangue de um morto preservado e separado do restante do corpo é inaceitável para nós."
Mas Francisco Salzano, um dos principais geneticistas do Brasil, com mais de 40 anos de experiência na Amazônia e em lidar com grupos indígenas, argumenta que é aceitável ignorar tais preocupações.
"Mesmo se for uma questão de religião ou crença, ainda assim estaríamos na Idade da Pedra", ele disse por telefone de seu escritório na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. "Nenhuma destas amostras foi usada de forma não ética", disse Salzano. Quanto à questão do consentimento informado, ele acrescentou: "Isto é sempre relativo".
(Por Larry Rohter,
New York Times / UOL / Amazonia.org, 20/06/2007)
Tradução: George El Khouri Andolfato