O Brasil está entre os cinco países que possuem a maior biodiversidade biológica do mundo. Abriga a mais extensa bacia hidrográfica, 28% das matas tropicais do planeta e 17% das espécies de aves. Parte desse patrimônio está protegido por fazer parte de áreas de preservação, legalmente reconhecidas. Em todo o país, são 288 Unidades de Conservação, que somam pouco mais de 50 milhões de hectares. O problema é que uma parte desses parques e reservas, ambientalmente ricas, também abrigam comunidades tradicionais, como ribeirinhos, quebradeiras de cocos, pescadores e índios. Esses brasileiros correm o risco de serem expulsos do local onde moram por conta da legislação ambiental. Em alguns tipos de áreas de conservação, como as reservas biológicas, é proibida até a visita de humanos.
A preservação ambiental pode desalojar até 5 milhões de brasileiros. Esta é a população estimada de pessoas que pertencem a comunidades tradicionais. Para fugir da expulsão, as comunidades estão se antecipando às decisões do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Pelo menos 120 pedidos foram feitos ao órgão por moradores de áreas que podem ser transformadas em reservas. Eles pedem que as áreas sejam aprovadas como regiões extrativistas, onde é permitida a manutenção dos moradores já existentes.
O único levantamento disponível sobre o número de pessoas desalojadas devido à criação de áreas de preservação foi feito pelo Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras (Nupaub), da Universidade de São Paulo (USP). Segundo os pesquisadores, até o momento, 22 parques nacionais e estaduais, estações ecológicas e reservas biológicas foram criados em áreas onde havia comunidades tradicionais. Para o antropólogo Antônio Carlos Sant’Ana Diegues, diretor do Nupaub, a situação é vergonhosa. “Em Iguapé, no sul de São Paulo, 300 famílias de caiçaras foram afetadas com a criação, em 1987, da Estação Ecológica da Juréia. Só no ano passado, depois de muita briga, 50 famílias que resistiram ao reassentamento conseguiram criar duas reservas de desenvolvimento sustentável na região”, conta. O problema não é exclusividade do Brasil. “Estima-se que 14 milhões de pessoas foram expulsas ou limitadas pelas legislações ambientais na África, Ásia e em outros países”, calcula Diegues.
O problema mobiliza internamente o Ibama, que tem posições diversas sobre o destino dessas populações. Uma corrente quer que elas sejam retiradas do local, em defesa do meio ambiente. A outra defende a manutenção das comunidades em seus locais de origem, que deixariam de ser classificados como reservas, onde a presença humana é proibida, para serem definidas como áreas de desenvolvimento sustentável, que permitem a convivência com comunidades. O despejo dessa multidão está previsto em lei ambiental. As reservas consideradas de proteção integral não podem ser habitadas.
ProibiçõesUma das áreas que são alvo da polêmica é as Ilhas Cagarras, localizadas no litoral fluminense em frente à praia de Ipanema. Os pescadores da região não querem que o arquipélago seja transformado em monumento natural, o que impediria sua atuação no local. A medida também proibiria qualquer atividade esportiva, como mergulho. Eles alegam que dependem da pesca para o sustento da família. “Quem tem mais direito sobre as áreas de preservação, o interesse coletivo ou individual?”, questiona Marcelo Françozo, diretor de Ecossistemas do Ibama.
Outro problema apontado pelas comunidades tradicionais é a restrição aos benefícios do governo. Quem consegue ficar na terra, fica sem direito a financiamento agrícola ou a ter acesso a programas de eletrificação rural, por exemplo. É o caso do povo pomerano, nos Pontões Capixaba, no Espírito Santo. Descendentes de alemães, que imigraram para o Brasil em 1853 após serem expulsos da Europa, eles mantêm até hoje uma língua própria e os costumes herdados da Província da Pomerânia, atual Alemanha. Em 2002, a região onde moram foi decretada parque nacional.
“A energia chegou na região e a gente não tem direito. Estão sendo cortados os financiamentos e as estradas estão abandonadas. Aos poucos estamos sendo expulsos. A gente não tem para onde ir. A criação do parque desestruturou o convívio com o meio ambiente que a gente sempre protegeu e preservou”, lamentou Patrícia Stur, representante da Associação dos Moradores dos Pontões Capixaba.
Atrativos turísticosO que justificou a criação do parque foram as formações rochosas do local. “A biodiversidade não é o elemento principal”, afirma diretor do Departamento de Áreas Protegidas do Ministério do Meio Ambiente (MMA), Maurício Mercadante. Para o ministério, a condição de permanência da comunidade no local é que os pomeranos mantenham o mesmo tipo de vida de hoje, sem expandir as atividades agrícolas. Uma das alternativas é o turismo rural.
No caso dos índios e dos remancescentes de quilombos, a disputa pela terra envolve a legislação. Pela lei, eles têm direito a permanecer no seu local de origem. Mas, de acordo com a Fundação Nacional do Índios (Funai), mais de 50 áreas que não permitem ação do homem foram criadas sobre territórios ocupados por etnias. “Desde a Constituição de 1945, a terra indígena se sobrepõe a qualquer outro direito ambiental”, destaca a socióloga Maria Auxiliadora Sá Leão, diretora de Assuntos Fundiários da Funai. Com a sobreposição, os indígenas têm sofrido restrições, principalmente, nas políticas sociais.
NOVO ÓRGÃO APROVADOA Câmara dos Deputados aprovou ontem a medida provisória que cria o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. O novo órgão irá cumprir funções que eram executadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A medida foi aprovada por 250 votos a favor, 161 contra e sete abstenções. O projeto segue para o Senado. Quando a aprovação foi anunciada, cerca de 100 servidores do Ibama, que ocupavam as galerias do plenário da Câmara, começaram a protestar. Aos gritos, diziam “jamais seremos vencidos” e “fora, Marina Silva”, em referência à ministra do Meio Ambiente. O presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia (PT-SP), determinou o esvaziamento das galerias.
Qual seria o tipo de unidade de conservação ideal para proteger a diversidade da fauna e da flora brasileira e respeitar as comunidades tradicionais? O Sistema Nacional de Unidade de Conservação (Snuc) separa as áreas de interesse ecológico em duas: unidades de proteção integral e de uso sustentável. A primeira proíbe a presença de moradores. A segunda é mais flexível.
O principal problema enfrentado pelo Ibama para defender o meio ambiente e respeitar o direito dos moradores tem sido equacionar os impasses impostos pela legislação ambiental. “É preciso dar um jeitinho quando a unidade de conservação acaba se transformando em área restritiva”, admite um funcionário do órgão. É o caso do Parque Nacional do Jaú, na Amazônia, onde estão instaladas comunidades extrativistas e ribeirinhas. A prefeitura local estuda instalar uma escola flutuante no rio que corta o parque para atender as crianças que moram no local. A saída é para não burlar a legislação que impede qualquer construção em terra firme.
Para o engenheiro florestal Maurício Mercadante, diretor do Departamento de Áreas Protegidas do Ministério do Meio Ambiente (MMA), a lei ambiental é clara. “A princípio, na unidade de conservação integral não pode haver atividade econômica, inclusive extrativista. Em muitos casos já existentes é preciso haver o reassentamento”, destaca.
Ele lembra que, no atual governo, foram criadas unidades de conservação com proteção integral e mantidas as comunidades que habitavam o local. Em princípio, essas comunidades podem até continuar desenvolvendo as atividades que já praticam, mas com limites. “O que a gente negocia é a não ampliação das áreas exploradas, mas a médio e longo prazo vamos ter que trabalhar o reassentamento dessas comunidades. Não tem como fazer isso sem trauma nem impacto”, esclarece.
Segundo o representante do ministério, o governo tem melhorado os levantamentos prévios para criar novas unidades de conservação. “A gente faz hoje um estudo sócioeconômico da área. Identifica com muito mais detalhe quem de fato está dentro da área e onde está. Com base nessa informação, a gente exclui o máximo possível as comunidades de dentro das áreas que estão sendo propostas”, justifica. Segundo Mercadante, esses estudos não eram feitos anteriormente. Os limites eram definidos considerando as características biológicas da área. (HB)
(Por Hércules Barros,
Correio Braziliense, 13/06/2007)