Na esteira de criação de unidades de conservação ao longo da BR-163, em 2005, foi decretada uma reserva biológica que tem sido apelidada por pesquisadores como caixa d’água. Trata-se de uma área de serra com 342 mil hectares no Sul do Pará, que combina alta incidência de chuvas com incrível poder de absorção de água no solo. O resultado são centenas de nascentes (foto ao lado), responsáveis pelo abastecimento das bacias do Tapajós e do Xingu. Há pouco menos de um mês, os detalhes ecológicos e as pressões que ameaçam a região puderam ser conhecidos graças a conclusão de um estudo sobre a Reserva Biológica Nascentes da Serra do Cachimbo.
Foram dois anos de pesquisas bancadas pelo WWF e executadas pelo Instituto Centro de Vida (ICV) que servirão de subsídio para o plano de manejo da unidade de conservação. Se neste sentido a gestão da área soa adiantada, na prática, o ritmo é bem mais lento. A reserva ainda não tem sede própria, portarias ou sinalização, não existe sequer uma pessoa responsável pela unidade, um chefe – o que, aliás, é recorrente nas demais áreas protegidas criadas nos últimos anos na BR-163. Em Brasília, o Ibama (ou agora o Instituto Chico Mendes) fica distante demais para amansar os ânimos e as dúvidas dos produtores rurais que exploram madeira e criam gado dentro da reserva biológica.
Para começar a conhecer as dimensões desses impactos numa área tão singular, o relatório da Avaliação Ecológica Rápida, de 179 páginas explica detalhes sobre clima, vegetação, solo, mamíferos, peixes, aves, anfíbios, répteis e outros grupos, além de contextualizar sócio-economicamente a região e orientar ações prioritárias para implantação da unidade.
De acordo com os levantamentos realizados pelo ICV, cerca de 80% do solo da reserva são compostos por um bloco de arenito com cerca de 700 metros de altitude, que absorve a chuva e libera a água na época de seca, beneficiando diretamente as cabeceiras dos rios Curuá, Cristalino e Jamanxim. Em tanta água, foram encontradas 50 espécies de peixes nos meses de seca e 54 na época de cheia, além de ariranhas, lontras e outros animais que dependem de abundância hídrica.
Espécies rarasO relatório aponta que, pelo fato de a Serra do Cachimbo ser considerada uma formação única na Amazônia, com características próprias de relevo e formação geológica, a região apresenta muitas espécies endêmicas, algumas que ainda sequer foram descritas. E mesmo com sinais de exploração madeireira em todos os sítios do levantamento, a presença de algumas aves serviu como indicador de qualidade ambiental dentro da reserva. Um casal de águia-cinzenta (Harpyhaliaetus coronatus), por exemplo, ameaçado de extinção, foi visto numa área onde a floresta havia sido recém-derrubada. O mutum-cavalo (Mitu tuberosa) e a arara-azul-grande (Anodorhynchus hyacinthinus), também cobiçados pelo tráfico de animais silvestres, são dificilmente encontrados na Amazônia, mas foram observadas na Serra do Cachimbo, assim também como o beija-flor-brilho-de-fogo (Topaza pella).
Outras espécies deram um verdadeiro nó na cabeça dos pesquisadores, por isso mesmo tiveram recomendação para cuidados prioritários. Esse foi o caso da calandra-de-três-rabos (Mimus triurus), uma ave que, até onde se sabe, circula entre Argentina e Bolívia e eventualmente chega próxima a Cuiabá.
Impactos do passado e do presenteForam observadas ainda 48 espécies de mamíferos, sendo 39 de médio e grande porte, entre os quais primatas como o coatá-da-cara-branca (Ateles marginatus), ameaçado de extinção. Quem também tem que tomar cuidado na área protegida são as onças pardas e pintadas, perseguidas e abatidas por pecuaristas dentro da reserva. E quem já não anda nem mais por lá é o queixada (Tayassu pecari), presente em terras indígenas limítrofes e na área protegida pela Aeronáutica no lado oposto da BR-163, o que levou os pesquisadores a concluírem que, na área da reserva, tenham sofrido forte pressão de caça.
A vegetação na Serra do Cachimbo é um encanto à parte. Nas áreas mais altas, ela é conhecida como campinarana, que se assemelha ao Cerrado, mas apresenta clima de floresta fechada. A área, em que o próprio relatório considerou carente de pesquisas, foi conhecida primeiro pelo setor madeireiro. Sabe-se, por exemplo, que a maioria das estradas que passam pela reserva foram abertas na época de intensa retirada de mogno.
Até agora, existe registro de apenas uma operação de fiscalização do Ibama na área, realizada em novembro de 2006 pelo escritório de Alta Floresta, no norte do Mato Grosso. Foi um pedido da equipe de Brasília, que, meses antes, cedeu a pressões dos produtores rurais que ocupam terras na unidade de conservação e não conseguiu nem entrar lá para saber o tamanho dos impactos sofridos até então. “Em três dias, fechamos uma madeireira e autuamos 10 pessoas na área por desmatamentos recentes que resultaram em 350 mil reais em multas”, diz Rodrigo Dutra, chefe do escritório do instituto em Alta Floresta. Nos dois últimos anos, os autores da Avaliação Ecológica Rápida identificaram extensas áreas de Cerrado derrubadas, queimadas ou degradadas, sendo que uma delas tem 9,5 mil hectares. Estima-se que 10% da área tenham sido impactadas.
Ninguém se entendeQuem ocupa áreas dentro da reserva biológica é hoje representado pela Associação dos Produtores Rurais do Vale do XV, sediada no município de Guarantã do Norte (MT). A entidade é muito bem articulada, tanto que, em menos de três meses depois da criação da reserva, entraram com um mandado de segurança contra o governo federal, pedindo a anulação da unidade de conservação ou sua transformação numa categoria de manejo que permita a presença de quem está lá dentro. “O Ibama não dialoga com o Incra nem conosco, não temos garantias de que as pessoas serão indenizadas e reassentadas”, reclama Marcos Andrade, um dos integrantes da associação.
Allan Razera, técnico do Ibama de Brasília que participou de tentativas de reuniões com a associação, nega que não tenha havido diálogo. “Por mais de duas vezes, explicamos para os moradores a importância da realização de um cadastro sócio-econômico na região para analisarmos quem tem direito a indenização. Eles aceitaram, quando nossa equipe chegou, fomos boicotados”, relata.
“Boicotamos porque o Ibama não trouxe nenhuma proposta para nós”, resume Andrade. No entanto, há razões mais plausíveis para que não se saiba quem de fato ocupa a área. De acordo com a própria associação, há supostamente 250 propriedades, envolvendo mil pessoas, mas nem todas moram lá por falta de infra-estrutura e acesso. Todos têm gado, estima-se que, alguns, com até nove mil cabeças, mas ninguém possui título da terra. E, como se sabe, sem título, não há indenização. “Temos prova de que as pessoas estão lá, o registro de gado. E o nosso direito de posse”, diz Andrade. Em sua visão, aliás, a do jeitinho que o governo militar ensinou, se a terra é pública, qualquer um pode entrar. “Não há grileiros porque não existiu conflito. Ninguém invadiu área nenhuma. Se a área é do governo, não tem como a nossa entrada ser ilegal”, crê.
De acordo com a associação, a criação da reserva aconteceu sem diálogo e passou por cima de um projeto que previa preservação de algumas áreas. “Contratamos uma empresa para fazer levantamento das áreas produtivas. As improdutivas, como área de areia e nascentes, por exemplo, virariam reservas”, diz. O próprio relatório técnico para o plano de manejo da reserva menciona esse estudo, que abrangeu uma área de 639 mil hectares da divisa de Mato Grosso até a cidade de Castelo dos Sonhos, no Pará. Foi protocolado pelo Instituto de Terras do Pará (Interpa) em 2002, listava 194 posseiros e propunha a criação de “reservas ecológicas” num total de 119 mil hectares, em áreas que, na realidade, apenas não serviam para agropecuária.
E nesse tempo, surgiram mais problemas. Em passagem pela BR-163, uma equipe de técnicos do Ibama percebeu a construção adiantada de duas Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) nos limites da reserva biológica. Elas foram licenciadas pelo governo do Pará, que, segundo o Ibama, ainda não respondeu as solicitações de explicações ao instituto. “Percebemos desmatamento perto da unidade para a construção do lago da PCH Curuá e da PCH Buriti. Queremos que o licenciamento passe para a gente”, diz Razera. Seria bom que o governo também quisesse resolver quem ficará responsável pela área, onde, os pesquisadores sabem, por muito pouco estão todos prestes a colocar tudo no chão.
(Por Andreia Fanzeres,
O Eco, 13/06/2007)