O
plano de expansão da silvicultura no Rio Grande do Sul, liderado por
empresas como Aracruz, Stora Enso e Votorantim, virou a legislação
ambiental do estado de cabeça para baixo e provocou demissões e
afastamentos em instituições responsáveis por licenciamento. Com
promessas de implantar fábricas de celulose e papel em distintas
regiões do Rio Grande do Sul, e tendo plantado aproximadamente 500 mil
hectares de árvores e comprado grandes extensões de terra, as empresas
ameaçam abandonar o investimento se o governo cumprir o Zoneamento
Ambiental para Atividades de Silvicultura no estado.
O zoneamento foi elaborado por técnicos da Fundação Estadual
de Proteção Ambiental (Fepam) e entregue ano passado, no final do
governo de Germano Rigotto (PMDB). O documento dividiu o Rio Grande do
Sul em 45 Unidades de Paisagem Natural (UPN) e as classificou em alta,
média e baixa restrição à plantação de árvores exóticas, como pinus,
eucalipto e acácia.
O levantamento estabeleceu em cada uma dessas unidades os
principais elementos da paisagem, os aspectos atuais relevantes, como a
situação da vegetação, se há Unidades de Conservação ou sítios
arqueológico e a ocorrência de espécies ameaçadas. Também indicou o que
deve ser conservado e apontou restrições, entre elas as faixas de
proteção (150 metros de banhados, 100 metros de sítios arqueológicos,
por exemplo). E recomendou que as plantações respeitem uma faixa de
1.500 metros de atrativos turísticos.
O zoneamento aponta como
áreas passíveis de serem cultivadas pelo menos nove milhões de hectares
– mais de um terço do Rio Grande do Sul. Mas antes da definição do
zoneamento, as três empresas compraram grandes propriedades,
principalmente na metade Sul, região mais pobre do Estado e que sofre
com o declínio da pecuária. Segundo o zoneamento, esta região está
inserida no bioma Pampa e é muito frágil sob o ponto de vista
ambiental. Apresenta características únicas e abriga 450 espécies de
gramíneas, 150 de leguminosas, 70 espécies de cactos, 385 de aves e 90
de mamíferos. Além disso, o território gaúcho dispõe de apenas 0,36% de
Pampa em áreas protegidas.
Segundo
o professor Valério Pillar, do Departamento de Ecologia da UFRGS,
perde-se 136 mil hectares de áreas de campos nativos por ano, devido à
expansão da fronteira agrícola, da silvicultura e de pastagens
artificiais. A região ainda sofre com problemas de escassez de água. A
cidade de Bagé, por exemplo, todos os anos precisa fazer racionamento.
Além da ameaça aos Pampas, o zoneamento alerta que as
plantações vão converter ambientes naturais, especialmente de áreas de
interesse para a conservação, como as dunas costeiras, os butiazais, as
matas de pau-ferro e remanescentes de Mata Atlântica. Elas podem
alterar a composição da flora e fauna nativas, com destaque para as
espécies de ambientes abertos, e provocar extinção de espécies. Ainda
há possibilidade de causar modificações de disponibilidade hídrica,
entre outros impactos.
Governo desqualifica trabalho da FepamO Código Estadual do
Meio Ambiente, de 2000, prevê o zoneamento e o licenciamento como a
forma mais qualificada para estudar os possíveis impactos ambientais
das plantações florestais a fim de estabelecer diretrizes e critérios
que possibilitem um desenvolvimento regional com qualidade ambiental. O
zoneamento antecede o licenciamento, permitindo o conhecimento prévio
das limitações de cada região. Mas não substitui os estudos locais,
necessários ao licenciamento.
Impacientes com os obstáculos ambientais para a execução de
seus projetos, as empresas Aracruz, Stora Enso e Votorantim se
queixaram à governadora Yeda Crusius (PSDB). As papeleiras, como estão
sendo chamadas pelos gaúchos, também levaram deputados e jornalistas
para Finlândia e São Paulo. A campanha surtiu tanto efeito que alguns
deputados quiseram interferir junto à Fepam para acelerar o
licenciamento.
Diante desse cenário, a governadora Yeda demitiu a secretária do
Meio Ambiente, Vera Callegaro, sua amiga pessoal, e o presidente da
Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), Irineu Schneider, do
PSDB, porque o trâmite das licenças ambientais estaria demorando
demais, o que é contestado por técnicos do órgão. No dia 14 de maio, a
governadora anunciou os novos titulares. Para a Sema, foi nomeado o
procurador de Justiça Otaviano Brenner e para a Fepam, a
ex-diretora-geral da Secretaria de Segurança Pública, Ana Maria
Pellini.
Mas
a primeira vez a governadora cedeu à pressão das empresas de papel e
celulose foi em fevereiro deste ano, quando lançou uma portaria para
formar um grupo de trabalho para revisar o zoneamento ambiental.
Convidou apenas funcionários públicos e representantes dos setores
industrial e madeireiro. Nenhuma entidade do movimento ambientalista
nem de órgãos de pesquisa foi chamada.
O grupo desqualificou os estudos da Fepam. Os empreendedores
contrataram diversos consultores, especialmente escritórios de
advocacia para contestar o trabalho. Um dos argumentos usados no
relatório é que o zoneamento foi estritamente ambiental, não levou em
consideração aspectos econômicos e sociais. Essa também é a tese
defendida por Pellini.
O relatório diz que o zoneamento torna o negócio da
silvicultura inviável sob o ponto de vista econômico. Afirma que
"apresenta impropriedades, erros e omissões de natureza jurídica, que o
tornam um documento prejudicial para o fim a que se propõe e que
afronta e desobedece vários instrumentos legais", entre eles a
Constituição Federal de 1988.
O documento ainda critica a metodologia das Unidades de
Paisagem Natural e recomenda que o zoneamento seja totalmente
reformulado e que a nova versão sirva de subsídio para o Zoneamento
Ecológico-Econômico do Estado do Rio Grande do Sul. E o principal: que
enquanto isso, a atividade seja licenciada sem considerar os critérios
do "Zoneamento Ambiental para a Atividade de Silvicultura por Unidade
de Paisagem".
É o que está acontecendo. A Fepam já emitiu até o momento 90
licenças. Grande parte em áreas de municípios da metade Sul do estado.
A liberação das licenças para a silvicultura está sendo viabilizada
pela edição da Portaria 35/2007, assinada pela presidente da Fepam,
"disciplinando" o licenciamento da atividade enquanto não vigorar o
zoneamento.
Para áreas de até 40 hectares o licenciamento será realizado
através de licença única. Para áreas maiores que isso e menores de 1000
hectares deverá ser elaborado o Relatório Ambiental Simplicado (RAS),
de acordo com o Termo de Referência a ser fornecido pela Fepam. Para
áreas superiores a 1000 hectares deverá ser elaborado o EIA/Rima
(Estudo de Impacto Ambiental com Relatório de Impacto ao Meio
Ambiente).
Acordos e pressões A
pressão para a emissão das licenças já vem de algum tempo. No primeiro
semestre de 2005, 78 áreas da Votorantim foram licenciadas numa única
licença, contestada até hoje pelos Ministérios Público Estadual e
Federal, pois a empresa precisava fazer o plantio devido ao cumprimento
de prazos para o financiamento junto ao BNDES. O técnico que assinou as
licenças na época hoje trabalha para a Aracruz.
O professor de Botânica da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS), Paulo Brack, que tem chamado a atenção sobre os
impactos ambientais da monocultura, afirma que nas eleições de 2006, só
a Aracruz gastou R$ 908.275,88 com doações para mais de 70 candidatos,
incluindo dois ex-secretários da Secretaria Estadual de Meio Ambiente
(Sema), do PSDB, que exerceram a pasta entre 2004 e 2006.
Em
2006 a Fepam assinou com o Ministério Público Estadual um Termo de
Ajustamento de Conduta (Tac), para que fossem dadas apenas
"autorizações"e não licenças para os plantios durante o ano de 2006, em
áreas já alteradas pela agricultura. O Tac também dizia que a Fepam
deveria concluir o zoneamento da silvicultura e discuti-lo com a
sociedade através da realização de audiências públicas e enviá-lo ao
Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema). Nunca um zoneamento teve
que ser submetido ao Consema.
As audiências públicas começaram nesta segunda-feira, 11 de
junho, em Pelotas e acontecem dia 13 em Alegrete, dia 14 em Santa Maria
e dia 19 em Caxias do Sul. O professor titular da pós-graduação em
Biologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutor em
ciências naturais pela Universidade de Tübinger, Ludwig Buckup, disse
que examinou o estudo "página por página" e aprovou o trabalho. "Esta
apresentação deixou bem claro como foi bem feito, pela qualidade das
fontes, a riqueza da bibliografia, os levantamentos e os critérios
adotados. Se existem restrições (à silvicultura), devem ser acatadas",
afirmou. E criticou o governo Rigotto, que acenou para as empresas
"como se o Rio Grande do Sul fosse terra de ninguém".
Terras imprópriasUm
dos técnicos que está licenciando os empreendimentos e não quis se
identificar conta que as empresas compraram terras apenas com o
critério do baixo preço. E dá um exemplo: a Votorantim comprou três mil
hectares em uma área em que cerca de 500 hectares estão dentro do
território de uma Unidade de Conservação, o Parque Estadual do Mato
Grande, no município de Arroio Grande, na região Sul, passando Pelotas.
O técnico acredita que os compradores não tiveram muito cuidado na
aquisição. "Além disso, compraram areais, propriedades com afloramentos
rochosos e muita várzea, área de plantio de arroz", conta. Em várzeas,
próximo a cursos d'água é necessário se respeitar a cota de inundação,
explica.
"O que as empresas mais questionam é a porcentagem de plantio
por propriedade," esclarece o técnico, que garante que apesar do
zoneamento não ser considerado, a legislação ambiental é cumprida. Além
disso, a aquisição de terras na região da fronteira-oeste pela Stora
Enso está sendo questionada pelo Instituto de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA) e pela Procuradoria da República. A Constituição
Federal, entre outras leis sobre o assunto, determinam rigorosos
limites à compra de propriedades rurais na faixa de fronteira de 150
quilômetros de largura por razões de segurança nacional.
Encontro pode selar tréguaO movimento nacional Diálogo
Florestal, que congrega Ongs que atuam principalmente na Mata Atlântica
e empresas do setor de celulose e papel, quer realizar um encontro no
Rio Grande do Sul no fim de junho. Apesar de Aracruz, Stora Enso e
Votorantim fazerem parte deste grupo, a idéia é apresentar o zoneamento
para empresários de outros estados com o objetivo mostrar a eles o
trabalho desenvolvido pelos técnicos gaúchos. A ambientalista Kathia
Vasconcelos Monteiro, do Núcleo Amigos da Terra/Brasil, acredita que as
empresas vão entender melhor o que pretende o estudo e talvez possam
influenciar as que hoje atuam no Rio Grande do Sul. "Esperamos que a
boa experiência do Diálogo Florestal para a Mata Atlântica também traga
frutos para o bioma Pampa", conclui.
(Por Sílvia Franz Marcuzzo,
O Eco, 11/06/2007)