Sob o inclemente vento Minuano, Belmiro Kirchner, de 58 anos, esforça-se para não cair enquanto passa de um bote para outro no atracadouro da vila de Santa Isabel, no interior do município de Arroio Grande. Pescador desde os oito anos de idade, Kirchner é uma testemunha ocular da decadência da pesca nas águas escuras da Lagoa Mirim.
Nos últimos 30 anos viu os estoques de pescado serem dizimados tanto pelo aumento do esforço de pesca, como pela expansão das lavouras de arroz, que hoje ocupam mais de cem mil hectares da orla da segunda maior lagoa do Estado. "Nos anos 50 ou 60 a gente pescava entre 200 e 300 quilos de peixe em um único dia, hoje isso parece história de pescador", comenta enquanto procura abrigo do vento gelado, que faz doer até os ossos.
Atualmente 300 pescadores enfrentam os rigores do inverno para obter o sustento de suas famílias das águas geladas da Mirim. A faina diária, todavia, se torna frustrante à medida que os cardumes minguam e espécies inteiras desaparecem, como a tainha e a corvina. "Este ano matei três tainhas, mas há uns dez anos havia quem fazia uma safra inteira de tainha por aqui", exemplifica seu filho Róbson Kirchner, de 23 anos.
Os cardumes de tainha e corvina (duas espécies de peixes marinhos) costumavam chegar a Santa Isabel carregados pela água salobra do Oceano Atlântico que a cada ano invade a Lagoa dos Patos e inundava o canal São Gonçalo até chegar a Lagoa Mirim.
Em 1977, no entanto, o governo do general Ernesto Geisel inaugurou a barragem eclusa do São Gonçalo. A imponente construção de concreto armado com 245 metros de comprimento e 18 comportas barrou a entrada da água salgada para a Lagoa Mirim, garantiu a irrigação de 170 mil hectares de lavouras de arroz tanto no Brasil como no Uruguai e o abastecimento de água da cidade de Rio Grande, mas decretou o fim da pesca de espécies de água salgada na lagoa. "A água fica cinzenta de tanto peixe na eclusa, mas eles não conseguem passar para a Mirim", conta Manoel José Pedroso Silva, de 38 anos, presidente da Cooperativa de Pescadores de Santa Isabel. "É inegável que se houvesse uma ligação com a Lagoa dos Patos a produtividade seria muito maior na Mirim", atesta Sandro Klippel, diretor da unidade do Ibama, em Rio Grande.
A escassez de tainhas e corvinas nas bandas de Santa Isabel, contudo, tem outros culpados além da barragem eclusa. O esforço de pesca na costa de Rio Grande diminui significativamente o volume de peixes que adentram a Lagoa dos Patos. Uma vez dentro do estuário, os cardumes passam a ser perseguidos por aproximadamente seis mil pescadores de Rio Grande, São José do Norte, Pelotas e São Lourenço do Sul. "Este esforço todo está muito além do que a região pode suportar", avalia Carlos Simões, presidente da Colônia de Pescadores Z-2, de São José do Norte. Desse modo as chances de algum cardume chegar até a barragem e encontrar passagem por uma das comportas que, eventualmente, estiver aberta e chegar até Santa Isabel são remotas.
Pesca x arrozSem ter acesso aos estoques de pescado do estuário da Lagoa dos Patos, resta aos "300 de Santa Isabel" encontrar entre as espécies típicas da lagoa aquelas capazes de garantirem o sustento. Assim, jundiás, pintados e traíras se convertem na matéria-prima básica da Colônia Z-24. Isso, porém, não significa o fim dos problemas.
Sobreviver da pesca na Lagoa Mirim significa ter de enfrentar a competição das lavouras de arroz e, nessa releitura do duelo de Davi contra Golias, o gigante leva a melhor.
Detentores de 107,3 mil hectares plantados com arroz e uma produção de 731,2 mil toneladas na safra 2006-2007 os produtores de Arroio Grande, Jaguarão e Santa Vitória do Palmar são os maiores e mais ávidos consumidores da água da Lagoa Mirim. Em média, as lavouras gaúchas consomem 12 milhões de litros de água por hectare durante todo o período de irrigação, que vai de novembro a março. Na costa da Lagoa Mirim, para garantir o abastecimento das lavouras, canais são abertos interligando a lagoa às propriedades.
O avanço das lavouras sobre os banhados faz com que os cardumes procurem os canais de irrigação como criatórios improvisados para reprodução e desenvolvimento. Começa aí a disputa entre pescadores e arrozeiros. "Os granjeiros transformam cada vez mais os banhados em lavouras, matam os criatórios naturais e depois secam os canais", justifica Sílvia Marisa Colvara, de 46 anos, presidente da Colônia Z-24.
Aliado a isso, a resistência de alguns produtores em garantir acesso dos pescadores aos canais, incendeia uma relação que na maioria das vezes é pacífica e pautada pelo diálogo. "Já fui corrido a bala do canal de uma granja", confirma o pescador Edson Dias Leal, de 38 anos.
A situação fica ainda pior a partir do desencontro dos calendários da pesca e da agricultura. O auge da irrigação das lavouras de arroz coincide com o período da piracema, quando as espécies da Lagoa Mirim realizam sua reprodução. "Nestas épocas é fácil encontrar canais de granjas cheios de peixes mortos", conta Kirchner, já protegido do frio dentro do prédio da cooperativa, onde um grupo de mulheres limpa pintados que serão entregues ao Programa Fome Zero, do Governo Federal, atualmente o principal comprador e mantenedor da economia de Santa Isabel.
A extinção do peixe-reiUm pequeno peixe de no máximo 30 centímetros é um dos maiores símbolos do colapso da pesca na Lagoa Mirim. Pescaria farta até os anos 80, o peixe-rei-água-doce (Odontesthes sp.) desapareceu.
O bom preço alcançado no mercado interno (R$ 0,77 o quilo nas áreas onde ainda existe) tornou-o alvo preferencial dos pescadores da Z-24 e do canal São Gonçalo. O esforço de pesca aliado ao fato de a espécie se reproduzir entre julho e agosto, fora do período da piracema - quando a captura fica proibida na Mirim - decretou sua extinção na região de Santa Isabel.
Para o diretor do Ibama, Sandro Klippel, o caso do peixe-rei é o retrato mais fiel dos danos causados pela sobrepesca. "O colapso de uma espécie gera um grande esforço de pesca de outra", comenta. De acordo com Klippel, a próxima da lista a seguir o mesmo destino do peixe-rei é a traíra, que além da procura intensa sofre com o desaparecimento dos banhados, transformados em lavouras de arroz.
Eclusa não é a culpada pela falta de peixesAo falar sobre a influência da barragem eclusa do São Gonçalo sobre a decadência da pesca, o engenheiro agrônomo e diretor da Agência de Desenvolvimento da Bacia da Lagoa Mirim, Manoel de Souza Maia, é taxativo: "Nenhuma."
A instituição filiada à Universidade Federal de Pelotas (UFPel) é responsável pela administração da barragem e do gerenciamento das políticas de desenvolvimento planejadas para a bacia. Defensor ardoroso da mega obra de engenharia, Maia argumenta que "a eclusa alavancou o desenvolvimento da região" e os que a apontam como causa do fim dos estoques pesqueiros da Lagoa Mirim, desconhecem seu funcionamento. "Há muita lenda e total desinformação sobre a eclusa", sentencia.
Na tentativa de comprovar isso, lança mão de dados como o de que as comportas são abertas quatro vezes por dia em horários prefixados e em outros horários extras, sempre que há necessidade ou emergência. "Sempre que há uma eclusagem os peixes também passam", diz. O aumento do esforço de pesca é, para Maia, a grande causa da escassez na lagoa.
Testemunha da tragédiaAos 69 anos, José Morossino, o Neneco, é uma testemunha ocular do desaparecimento da pescaria na Lagoa Mirim. Filho de um pescador local, fez suas primeiras incursões atrás dos cardumes ainda criança e de lá para cá viu os estoques de pescado serem reduzidos drasticamente. "Hoje só tem peixe quando a lagoa está cheia, antigamente sobrava, antes se matava tainha, hoje só dá tambica", conta com os olhos vidrados na lagoa.
Em seus aproximadamente 60 anos de pescaria viu desaparecer pelo menos cinco espécies, as quais enumera com voz grave e tom pesaroso: "Bagre, tainha, linguado, corvina e peixe-rei, tudo isso acabou."
O aumento do número de pescadores em atividade, o melhor aparelhamento das parelhas, a construção da barragem eclusa e a expansão das lavouras de arroz são os quatro motivos apontados por seu Neneco para explicar a "morte" da Lagoa Mirim.
O desgosto gerado pela escassez de peixe o fez abandonar a atividade há dois anos e formalizar uma dramática sentença: "Dentro de alguns anos só vai ter água nessa lagoa."
Irga diz que produtores estão dentro da lei"Os produtores não podem impedir o acesso dos pescadores aos canais, pois não são donos deles, isso seria ir contra a lei e por onde ando não vejo produtores transgredindo as leis", declara Marcos Fernandes, diretor regional do Instituto Rio-Grandense do Arroz (Irga). Responsável por atender os produtores de toda a região, Fernandes também afasta a possibilidade de as bombas dos arrozeiros não contarem com as telas obrigatórias para impedir a sucção de peixes. A informação conta com o respaldo do diretor do Ibama, Sandro Klippel, que no final do ano passado varreu a região dos arrozais na Lagoa Mirim e não encontrou irregularidades.
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Diário Popular, 08/06/2007)