Nos dois últimos anos a estiagem tem castigado o município de Bagé, na região da Campanha. Dados do Centro de Pesquisas e Previsões Meteorológicas da Universidade Federal de Pelotas (CPPMet/UFPel) comprovam: se consideradas as máximas do intervalo histórico mensal de chuvas, o déficit ultrapassa os 700 milímetros. Ao invés de terem caído até 2.868 milímetros entre 2005 e 2006, choveu um total de 2.090.
No Dia Mundial do Meio Ambiente, celebrado na terça-feira (5/6), uma contradição no entanto chama a atenção e preocupa. Em meio à seca, o Departamento de Água e Esgotos de Bagé (Daeb) joga no sistema milhões de litros a serem desperdiçados. Engolidos pelas perdas ao longo da tubulação antiga, pelas ligações clandestinas e pela falta de hidrômetros e o conseqüente uso irracional desse bem esgotável. Estimativas do próprio Executivo indicam que 8,64 bilhões de litros por ano seriam suficientes para abastecer a população. Para suprir o consumo, todavia, a Estação de Tratamento de Água (ETA) produz e distribui 14,1 bilhões de litros por ano; 64% acima do necessário. É o mesmo que aproximadamente três mil piscinas olímpicas cheias e sem utilidade.
Desde março de 2006 os cem mil moradores da zona urbana de Bagé convivem com o racionamento de água, instituído em sistema de rodízio, para evitar um colapso no abastecimento. Depois de permanecer cerca de um ano com as torneiras secas por 18 horas diariamente, hoje será o 67º dia com mais duas horas de fornecimento. Nada que elimine os transtornos à população de periferia, que não dispõe de reservatórios. As famílias ficam limitadas ao período curto em que o líquido chega, mas não raro a falta de pressão - devido à escassez - faz com que a água não atinja as pontas de rede mais distantes e alimentação, higiene e limpeza se restringem à passagem dos caminhões-pipa.
Entre março e abril a situação se amenizou e os veículos puderam praticamente suspender os roteiros diários; claro mantidas as escalas de fornecimento. A precipitação de maio, de apenas 33 milímetros, coloca a Prefeitura novamente em alerta, já que anda na contramão da recuperação do nível da Barragem Sanga Rasa, que segue mais de cinco metros abaixo do normal. Nem mesmo as baixas temperaturas, como os dois graus negativos registrados no dia 29, sinalizam o fim do racionamento.
“Faz anos que a gente sofre”, conta a bageense, moradora da localidade de São José, Veriolina Linhares Lacerda, 52 anos. O medo da dengue fez desativar a caixa d’água, que só serve de recipiente; não está instalada. “Agora com mais duas horas de água está bem melhor, mas só de pensar no verão, a gente já se apavora”, projeta.
Medidas e resultados
1- Nova Barragem
O Governo busca recursos junto à União, para acabar de vez com os repetidos problemas de abastecimento em Bagé e construir uma quarta barragem. Apesar de o levantamento topográfico ainda não estar finalizado, a previsão é de que a nova estrutura se localize próximo à Barragem Emergencial que, dependendo dos níveis, poderia ser temporariamente suspensa, já que consome energia elétrica devido ao bombeamento. O orçamento não está fechado, mas fala-se num investimento entre R$ 25 milhões e R$ 30 milhões.
2- Caixas d’água
Aproximadamente cinco mil casas, de 18 bairros, serão contempladas com a instalação de reservatórios com capacidade para 500 litros. O projeto de R$ 3 milhões, via Ministério da Integração Nacional, irá beneficiar famílias carentes, de preferência que ganhem até dois salários mínimos e meio e vivam em residências com até 40 metros quadrados de área construída - conforme sugere o relatório da Defesa Civil. “Sabemos que são sempre estas mesmas pessoas as mais prejudicadas com o racionamento; como não sabemos quando a nova barragem estará pronta, precisamos implementar medidas com resultado mais imediato”, justifica a engenheira civil e superintendente operacional da Daeb, Nívea Schiavon. Licenças como a ambiental devem retardar o início dos trabalhos.
3- Hidrômetros
Das 36 mil economias de Bagé, 13 mil estão hidrometradas e outros dez mil aparelhos estão em fase de instalação. Hoje o Daeb não tem como precisar o quanto é desperdiçado em cada uma dessas moradias, mas não tem dúvida: o equipamento traz efeitos positivos: em localidades, como São Domingos, Santa Terezinha e Aeroporto - abastecidas por poço artesiano - o consumo sofreu queda de aproximadamente 40% após a instalação.
4- Melhorias na rede
Bagé possui atualmente 450 quilômetros de rede; 51 são constituídos de canos de ferro. Para substituir todo esse trecho, em torno de R$ 765 mil teriam de ser aplicados, para qualificar o sistema e reduzir as perdas de água.
Vivo na lembrança
O ano de 1989 está marcado na história recente de Bagé. Barragens secas, colapso no fornecimento, correria em busca de água mineral e a longa espera pelos caminhões-pipa, que se espalhavam pela cidade, oriundos de outras regiões do Estado. A crise era de tal dimensão, que até trazer água de trem de Rio Grande chegou a ser cogitado, relembra o diretor do departamento de Captação e Tratamento de Água, Léo Izidro Zanini, ao acompanhar o Diário Popular em roteiro pelas Barragens.
Foi também em decorrência da estiagem de 1989 que a Barragem Emergencial - e exatamente por isso recebeu esse nome - foi construída e é ela, hoje, quem evita o caos. Produz a metade do que entra na rede, o equivalente a 150 litros por segundo. Os outros cem partem da Barragem Piray, a mais antiga de Bagé: de 1918. Os 50 litros por segundo restantes vêm da Sanga Rasa, construída em 1969, para suprir o sistema.
Curiosamente, conta Zanini, a capacidade da bacia de captação é inferior a do Piray. São 16 quilômetros quadrados de área, para um volume de 1,7 milhão de metros cúbicos de água contra 24 quilômetros quadrados de área e 2,2 milhões de metros cúbicos de volume total. “Não precisava nem ser técnico, para saber que a obra (viabilizada pela antiga Viação Férrea) não daria o resultado esperado”, afirma o diretor do Daeb e aposentado pela Companhia Rio-Grandense de Saneamento (Corsan).
Como praticamente não conta com contribuintes, a Sanga Rasa acaba limitada às chuvas pontuais. Se a precipitação não ocorre em cima da bacia, a barragem não recupera o nível. Dos 12 metros de profundidade, está cinco abaixo do normal.
Sem reservatório e sem ânimo
“Nós passamos trabalho aqui”, desabafa a moradora da vila Damé, Maria Pereira Pires. Dos 73 anos de idade, 28 foram vividos ali, um dos pontos mais pobres da cidade. A economia familiar que, em geral, acaba canalizada à compra de uma caixa d’água, está longe de caber no orçamento. “No verão ficamos até duas, três semanas sem água, na dependência do caminhão-pipa”, relembra, com olhar perdido, cercada pelas netas, em frente à casa simples.
Marta Oliveira, 48 anos, também viveu o sufoco de morar na Damé e amargar o sentimento de que ficou esquecida: “Foi um dos motivos de ter saído de lá”, admite, ao direcionar a mangueira ao tonel azul que guardará a água para uso na alimentação. “Todas as tardes quando a água chega, corro para armazenar; a que coloco nesta banheira é para limpeza da casa e da roupa”, conta. “É o jeito; já nos acostumamos com banho de caneca no frio.”
Relembre
O racionamento começou em dezembro de 2005, com cortes da meia-noite às 5h em cerca de 30 bairros. Passou a afetar 40% dos habitantes. Em março de 2006, com o agravamento da estiagem, foi decretada situação de emergência e a medida se estendeu a toda a zona urbana, em formato de rodízios. Aos poucos as interrupções cresceram. Saltaram de oito para 12 e, por último, para 18 horas. Em 31 de março de 2007, o racionamento encolheu em duas horas; passou para 16 sem água e oito com o líquido à disposição.
No ano passado, a prefeitura precisou apelar à captação de água em duas pedreiras desativadas, mas com a continuidade da seca, logo a alternativa também se esgotou. Para inibir o uso indisciplinado, o município passou a se utilizar de três instrumentos: advertência, pagamento de multa (em caso de reincidência) e suspensão do fornecimento, caso o cidadão fosse flagrado pela terceira vez. O morador não pode usar água da rede para lavar carros e calçadas ou molhar jardins.
Confira a escala de fornecimento
Zona central: das 6h às 14h
Zona oeste: das 16h às 24h
Zona leste: das 12h às 20h
(Por Álvaro Guimarães, Michele Ferreira e Tânia Cabistany, Diário Popular, 05/06/2007)