Ondas gigantescas, cidades submersas, devastaçăo de quilômetros de costa. As imagens, dignas de Hollywood, săo usadas com freqüęncia para ilustrar as previsőes sobre o futuro do planeta, a permanecerem os níveis de aquecimento global verificados nos dias de hoje. Uma projeçăo extrema, mas conveniente para tentar convencer governos e sociedades ao redor do mundo sobre a importância de se conter a elevaçăo da temperatura no globo.
De acordo com relatório recente divulgado pela ONU, a dilataçăo da água dos oceanos e o derretimento das geleiras poderia elevar, em um espaço de cem anos, entre 20cm e 50cm o nível dos mares. Segundo o professor do instituto de geocięncias da Ufba, José Maria Landim, a previsăo reduz a pouco mais da metade a projeçăo feita no estudo anterior, de 2001, quando a ONU alertou o mundo para os riscos dos oceanos subirem até 90cm. Landim, mestre em geografia pela Ufba e doutor pela Universidade de Miami, nos EUA, é também pesquisador e tem trabalhos publicados sobre a degradaçăo do litoral baiano.
Ele conta que mais de 25% da costa do estado se encontra em processo de erosăo e faz um alerta: nos locais mais próximos do nível do mar, o risco de inundaçőes é maior. Mas ele esclarece que năo apenas o aumento do nível dos oceanos ameaça as comunidades costeiras – a ausęncia de sedimentaçăo nos litorais contribui decisivamente para o avanço das águas. “Os rios trazem areia para a beira do mar. Com os barramentos realizados pelas construçőes, os rios deixaram de desembocar no mar e as ondas continuam quebrando no litoral e arrastando a areia para o fundo”.
Alarmismo - O professor Landim acredita que, mesmo com todo alarmismo, é provável que o cenário năo se agrave. Para ele, o quadro mais pessimista, com a inundaçăo de cidades inteiras, só se concretizaria se houvesse o derretimento completo da Groenlândia, o que elevaria o nível dos oceanos de 4m a 6m.
Seria o retorno ŕ realidade de cinco mil anos atrás, quando a Colina Sagrada, onde se encontra a Igreja do Bonfim, era uma ilha, segundo o professor. Mas ele considera positiva a avalanche de previsőes catastróficas. “Estas notícias estimulam a reduçăo de gases, o uso de biocombustíveis e o recuo das construçőes”, avalia. Uma das medidas eficazes para prevenir o avanço dos mares, inclusive, é a criaçăo de faixas de recuo das construçőes próximas ŕs praias. “No litoral norte, por exemplo, o CRA (Centro de Recursos Ambientais) exige 60m de recuo”, lembra o professor.
Faixas de areia ameaçadas
Uma amostra do que poderia acontecer ŕs localidades litorâneas em caso de elevaçăo do nível do mar pôde ser vista em 1998, em Sergipe. O povoado de Vila do Cabeço, a 140km ao norte de Aracaju, próximo ŕ foz do Rio Săo Francisco, foi devastado pelo oceano. O farol, erguido no século XIX, ficou completamente submerso.
Para o professor e pesquisador José Maria Landim, este risco năo atinge a costa de Salvador. Ŕ exceçăo do litoral da cidade baixa, toda a orla – da Barra até Itapuă – se encontra bem acima do nível do mar. Mas o avanço das águas pode provocar o encurtamento e até o desaparecimento de algumas praias.
Foi o que aconteceu no bairro do Rio Vermelho, onde a faixa de areia próxima ao Largo da Mariquita e na encosta por trás do Mercado do Peixe foi invadida pelo mar. “Em Salvador, o efeito mais provável da elevaçăo do oceano seria o estreitamento das praias. Boa parte da faixa de areia seria coberta pela água e as barracas de praia (independentemente de qualquer decisăo judicial) seriam extintas”. Praias onde a faixa de areia já é estreita, como a do Porto da Barra, simplesmente deixariam de existir.
O pesquisador afasta a hipótese de invasăo das casas pelo mar, mas prevę que o avanço da maré sobre as pistas que margeiam a orla devem se tornar mais freqüentes. “Isto vai aumentar em muito o custo do poder público”, alerta, referindo-se ŕ manutençăo e recuperaçăo das proteçőes de alvenaria erguidas ao longo da praia.
Alagados - Avanço das águas sobre o asfalto năo é novidade para os moradores de Alagados. Mesmo após a substituiçăo das palafitas por casas, eles ainda convivem com a ameaçadora presença do mar, principalmente em tempos de ressaca. Instaladas ao nível do mar, pessoas como Teófilo Rodrigues, 49 anos, e Emiliano Silva, 59, năo perdem o sono por conta da maré. Teófilo, que ajudou a levantar várias palafitas no passado, lembra do tempo em que pescava sentado na entrada de casa. Emiliano, que mora um pouco mais acima, assiste tranqüilo ao espetáculo da arrebentaçăo contra a alvenaria construída em torno da pista. “Para a água chegar ŕs casas, só se o mar subir muito”, avalia.
Para o professor Landim, uma das saídas que evitariam ou retardariam o processo de erosăo do litoral e conseqüente avanço do mar seria o “engordamento das praias”. Diante da ausęncia de rios para transportar os sedimentos necessários ŕ preservaçăo da faixa de areia, a soluçăo seria dragar a areia do fundo do mar e despejá-la na praia.
Aterros na cidade baixa
Despejar no mar enormes quantidades de areia e de todo tipo de material foi a soluçăo encontrada para aumentar a extensăo territorial de áreas estratégicas para o comércio de Salvador. Há pouco mais de cem anos, as avenidas Estados Unidos e da França, na cidade baixa, năo passavam de áreas de atracaçăo de navios, que movimentavam o porto de Salvador, o maior do Brasil até a primeira metade do século XIX. Fotos da época mostram o Mercado do Ouro e a Associaçăo Comercial, tendo ŕ frente o monumento Riachuelo, como pontos de desembarque de mercadorias, ŕ beira-mar.
De acordo com o livro 50 Anos de urbanizaçăo – Salvador da Bahia no século XIX, da historiadora Consuelo Novais Sampaio, os aterros na área do Comércio foram intensificados a partir de 1843 diante da necessidade de construçăo de um cais com maior capacidade de descarga e de uma alfândega nova. Estudos realizados pelo pesquisador Marcos Paraguassu A. Câmara registram o início dos aterros em 1549, quando da chegada de Tomé de Souza. Segundo os registros, foram aterrados cerca de 183,8 mil metros quadrados em Salvador. O principal trecho aterrado é o que se encontra entre a Praça Săo Joăo (hoje Praça da Inglaterra) e a Avenida Jequitaia, na regiăo de Água de Meninos, onde ainda hoje existe o “Cais Dourado”, que năo mais serve de atracadouro, visto que é margeado por duas pistas de asfalto.
Para aterrar a praça Săo Joăo, foi utilizada a terra escavada na construçăo das ladeiras da Misericórdia, Conceiçăo e Montanha, além dos escombros de imóveis que freqüentemente desabavam devido ao avanço do mar entre o Pilar e a Conceiçăo.
Até mesmo o lixo era utilizado para o aterramento, como se verifica em jornal da época, que aborda a acusaçăo contra um empresário de “asseio e limpeza” da cidade, que estaria promovendo incęndios no estaleiro da Preguiça para se livrar dos resíduos coletados. O dito empresário teria declarado que o lixo era “cautelosamente lançado no mar, no lugar em que se precisa de entulho”, vez que, “mergulhado na água salgada, năo pode ele (o lixo) por forma alguma prejudicar a saúde pública”.
Já naquele tempo, o avanço do mar sobre a terra preocupava os governantes. Os desmoronamentos constantes verificados na Ladeira da Montanha ameaçavam colocar abaixo o centro do poder da época, situado no Palácio do Governo, hoje palácio Thomé de Souza. O presidente da província, em 1845, Francisco José de Souza Soares d’Andrea, lançou o ultimato: “É preciso segurar a montanha”. Seu sucessor, Francisco Gonçalves Martins, o visconde de Săo Lourenço, assumiu o desafio de construir, entăo, uma muralha de contençăo, toda em pedra maciça, no entorno da Ladeira da Montanha.
No decorrer da obra, as chuvas por pouco năo colocaram tudo a perder. Em 8 de junho de 1871, a parte central da Ladeira da Conceiçăo desabou, arrastando sobre a ribanceira toda a muralha que a protegia, pelo lado do mar. Para evitar novos desmoronamentos, uma vez que a Ladeira da Montanha cruzava, em certo trecho, por sobre a Ladeira da Conceiçăo, foram erguidos 23 arcos de sustentaçăo, que podem ser vistos hoje, em cujos văos se instalaram várias oficinas.
(Por Alan Rodrigues, Correio da Bahia, 05/06/2007)