A sociedade mundial começa a perceber que o aquecimento global, ou seja, uma mudança significativa no clima da Terra, é um problema real e sério. As terríveis previsões sobre secas, inundações, tempestades, doenças, extinção de espécies, aumento do nível do mar e desgraças afins, fazem parte dos resultados dos estudos recentemente divulgados.
Quando olhamos a história da Terra, podemos ver que mudanças climáticas fazem a regra e não a exceção, e, aparentemente, o gás carbônico tem um papel fundamental nestas mudanças, seja iniciando a mudança, seja ampliando a mudança. Se provocarmos com nossas emissões de carbono, via queima de combustíveis fósseis e desmatamento, uma outra máxima termal, como a que aconteceu 55 milhões anos atrás, não vai ser novidade para a Terra, mas certamente será uma novidade triste para a civilização humana.
A constatação feita pelo IPCC (sigla em inglês para Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), órgão da ONU responsável por estudos sobre transformações do clima, de que os pobres é que vão pagar a conta do caos climático pode não ser exatamente surpreendente, mas serve para chamar a atenção para a dimensão ideológica do problema, que muitas vezes é ignorada ou até mesmo deliberadamente deixada de lado, pois geralmente, a ideologia vem depois do interesse. As mudanças climáticas poderão ter não só implicações econômicas, ambientais e sociais, mas para a paz e a segurança, também. Isto é especialmente verdade em regiões vulneráveis, que enfrentam diversas tensões ao mesmo tempo - conflitos preexistentes, pobreza e acesso desigual a recursos, instituições fracas, insegurança alimentar e incidência de doenças como HIV/Aids.
Quando se chega a esse ponto, não basta dizer que o capitalismo é o culpado histórico pelas mazelas ambientais.
Não basta denunciar que os países que são os principais culpados pelo aquecimento global serão os que menos vão sofrer suas conseqüências. É preciso dizer que, se o atual modelo de produção e consumo capitalistas não for profundamente alterado, todos serão atingidos, ricos e pobres (esses primeiramente, claro). Essa alteração passa pela completa revisão do conceito de crescimento econômico que a humanidade, em sua fase capitalista, adotou como verdade divina. Está provado que a idéia segundo a qual a humanidade pode crescer indefinidamente a partir da “transformação da natureza” vai nos levar ao suicídio global em pouco tempo. É preciso interromper o quanto antes essa corrida ao abismo. Os bens da natureza são para sustentar a vida humana e não para satisfazer os cofres das companhias multinacionais ou nacionais. Que, aliás, nem sempre lembram que o fim último das atividades é manter a vida sobre a Terra e não destruí-la para o benefício limitado de umas poucas pessoas ou entidades.
A Europa parece mais sensível à ameaça do caos climático nos últimos anos, apesar de os maiores países ainda não cogitarem uma profunda mudança no sistema econômico. O alto grau de conscientização dos europeus em relação às questões ambientais nutre a esperança de que, de baixo para cima, a pressão social acabe por consolidar a mudança de postura dos governantes. A face ambiental do esgotamento do capitalismo é muito mais vista e discutida na Europa do que, por exemplo, nos Estados Unidos. Mesmo lá as coisas, ainda que lentamente, parecem começar a mudar. Nos últimos meses, a maior parte da sociedade vem deixando o presidente Bush (e seus aliados entrincheirados nos setores de petróleo, construção civil e indústria bélica), cada vez mais isolados em relação às questões ambientais.
No início de abril, a Suprema Corte dos EUA decidiu, contra a vontade do governo, que a agência federal de proteção ambiental (EPA, na sigla em inglês) tem autoridade para regular e tentar reduzir as emissões de dióxido de carbono provenientes dos automóveis.
E os maiores países ditos em desenvolvimento, o que fazem? A China anunciou há pouco tempo que vai “crescer menos” para, entre outras coisas, reduzir sua contribuição ao aquecimento global. Será?. Previsões indicam que ela deve, ainda este ano, ultrapassar os Estados Unidos no “ranking” de maior emissora mundial de gases provocadores do aquecimento da atmosfera. O governo da Índia, apesar das suas crescentes emissões de gases provocadores do efeito estufa, não tem um programa concreto de combate ao aquecimento global. A África do Sul e a Indonésia limitaram-se a assinar o Protocolo de Quioto e aguardam a “transferência de tecnologia”, para se preparar para as mudanças climáticas.
Nesse cenário, o Brasil cumpre papel fundamental, pois o rumo que seguirá o país nos próximos anos deverá ajudar a definir o encaminhamento global do combate às mudanças climáticas. A posição do governo brasileiro é dúbia. De um lado, o país tem uma das mais avançadas legislações ambientais do mundo e uma ministra do Meio Ambiente reconhecida internacionalmente e consciente da necessidade de mudanças urgentes para evitar à catástrofe. De outro, setores com forte influência no governo brasileiro parecem obedecer a uma mentalidade desenvolvimentista ainda calcada na visão do “mais e maior” e que ignora as dimensões sócio-ambientais do “crescimento infinito”. Temos que nos posicionar contra clichês alardeados e flagrantemente falsos em defesa do país.
No Brasil e no exterior, existe em boa parte da esquerda (seja nos governos, nos partidos ou na sociedade) muita dificuldade de aceitar o fato de que o paradigma do crescimento econômico deve e precisa ser profundamente alterado. À esquerda, precisa se adequar à velocidade dos acontecimentos, pois o caos climático e suas conseqüências se transformarão em poucos anos num fator de contestação global do capitalismo como jamais houve na história. Para estar à altura dos acontecimentos, uma boa idéia é começar a deixar de lado um conceito de crescimento econômico que nos foi imposto pelo próprio capitalismo.. O fato é que jamais haverá, sob o signo do capitalismo, a “salvação ambiental”. Por isso, a luta socioambiental é hoje o instrumento mais importante para a superação do capitalismo antes que o capitalismo acabe com as condições para que a humanidade exista nesse planeta.
Algumas das decisões que as sociedades vão precisar tomar dependerão de uma solidariedade global, especialmente para a redução do fluxo de carbono para a atmosfera. Não adianta um país reduzir o seu fluxo de carbono se isto não está acompanhado por todos. Outras decisões, principalmente de como adaptar as mudanças já em curso, são de caráter regional, local e até individual. Mas, de qualquer maneira, vamos precisar enfrentar o assunto de mudanças climáticas com ações sensatas, ou falhar como outras sociedades falharam no passado.
(Por Heitor Scalambrini Costa (*),
Ambiente Brasil, 04/06/2007)
* É professor da Universidade Federal de Pernambuco.
heitorscosta@terra.com.br