"Bom dia Heiligendamm", saúda a Rádio Livre Anti-G8 do acampamento montado no minúsculo povoado de Reddelich, a 14 km do local onde em poucos dias inicia o encontro governamental dos países mais ricos e poderosos do mundo. Um curto boletim sobre os protestos contra o encontro que acontecerão no dia, e pouco depois das 9h inicia a programação musical, eventualmente interrompida para boletins rápidos em alemão e inglês. Hoje 04/06, a primeira música a tocar, "coincidentemente" é o clássico "War" de Bob Marley.
O moderno helicóptero da polícia sobrevoa várias vezes o acampamento, que reúne cerca de 6 mil pessoas. Os que ainda dormiam despertam com o barulho atordoante do aparelho. "Estão filmando, esses filhos da puta", comenta um ainda sonolento ativista. Após rápida passagem pelos banheiros químicos espalhados pela área, todos tomam café nas cozinhas montadas nos 10 "Bairros" em que se divide o acampamento. Os mais corajosos encaram a ducha gelada num dos dois chuveiros coletivos instalados nos cerca de 5 hectares.
Na noite anterior, sentados à beira de uma fogueira no bairro dos GLS, ativistas discutiam como agir caso a polícia invadisse o acampamento. "Acho que devemos correr naquela direção", diz uma mulher de meia idade com voz rouca apontando para as casas do povoado logo atrás de alguns arbustos onde estão as últimas barracas. "Mas não vão muito pra lá, pois 500 metros adiante há a cerca de isolamento e muitos políciais", alerta ela, referindo-se ao perímetro de segurança máxima que impede a passagem de qualquer pessoa num raio de 13 Km do local onde Bush e companhia se encontrarão.
Outras pessoas sugerem a criação de pontos de encontro em caso de emergência. Há quem se apresente como voluntário para fazer a "ronda de segurança" do acampamento durante a noite. "Mas não se esqueçam de prestarem atenção no sinal de alerta, caso ele soe", enfatiza uma mulher de cabelo curto que parece uma das responsáveis pela organização daquele bairro. Uma menina pergunta: "Como é o sinal?" "Como um sino", responde um punk cheio de piercings vestindo uma saia velha. "Não, como uma sirene anti-aérea", rebate um magrão de preto". "Não sei, só sei que deve ser muito alto", finaliza um baixinho agarrado com o namorado à beira da fogueira para espantar o frio de sete graus.
Confrontos violentos
Mesmo os mais experientes parecem assustados. "Nunca se sabe o que pode acontecer", afirma Ulrike Witte, coreógrafa berlinense de 40 anos. Ela coordena um grupo de teatro de rua que vem se apresentando desde abril durante os protestos anti-G8. O motivo da apreensão são os confrontos de Sábado (02/06) entre policiais e manifestantes na cidade de Rostock, 17 Km de Reddelich.
Com quase 100 mil participantes a marcha era acompanhada por 10 mil policiais. Após provocações mútuas, pequenos focos de violência começaram a se espalhar. De um lado manifestantes mascarados arrancavam lajotas das calçadas, quebrando-as para arremessar contra os policiais, que reagiram com gás de pimenta, bombas de dispersão e jatos de água. Ao final quase 1000 pessoas e mais de 400 policiais ficaram feridos, com 160 manifestantes presos e uma dúzia de carros queimados. "Foram os piores protestos que enfrentamos em pelo menos duas décadas", informa o porta-voz da polícia alemã, Stephan Kirchner.
Justificada pela violência a ação policial se intensifica. Blitzes e revistas se tornam mais frequentes e detalhistas. Membros do grupo de Ulrike foram detidos Domingo (03/06) por 40 minutos, tendo até meias e sapatos revistados. Tudo passa a ser filmado. Na saída do camping de Reddelich uma van da polícia com uma filmadora acompanha o entra e sai de ativistas. "Nosso papel é garantir a segurança e o direito de quem quer fazer a sua manifestação pacificamente", justifica Kirchener.
No acampamento as atividades também se intensificam. Duas vezes ao dia duas centenas de pessoas fazem um "treinamento para confrontos". Ali os manifestantes recebem lições desde como coordenar grupos em protestos, até como resistir à repressão policial. Um rapaz de cabelo curto vestindo calça de guerrilheiro e coturnos orienta o "exercício de campo". Um grupo simula uma investida policial e outro as formas de resistência dos ativistas durante um confronto.
Estrutura Anti
Mesmo que precárias se comparadas ao aparato oficial para a cúpula, as estruturas montadas para os protestos anti-G8 surpreendem. A forma de organização é basicamente a mesma para todos os três acampamentos montados na região dos protestos anti-G8 de Heiligendamm. No maior deles, na cidade de Rostock, onde mais de 10 mil pessoas estão acampadas, existe até uma lona de circo para seções plenárias com capacidade para 3 mil pessoas. Ali são discutidas as ações e estratégias para as marchas que acontecem em diversas localidades até o próximo dia 08.
Os três campings estão divididos em bairros identificados de acordo com suas ideologias, atividades ou regiões. Em Reddelich há, por exemplo, o bairro dos anarquistas, o dos GLS, o dos artesãos, os de Bremen etc. Cada bairro possui um grupo de trabalho autônomo, responsável por providenciar a estrutura básica para as pessoas acampadas ali. Isso inclui cozinha, comida e local para botar a barraca. Banheiros, chuveiros e conexão à internet são providenciados pela coordenação geral do camping formado por aproximadamente 15 pessoas.
O preço diário para ficar em qualquer um dos três é cinco Euros, mais uma ajuda de custo de dois Euros por cada refeição. Como não há controle, paga quem quer, ou quem pode. Os custos de toda essa estrutura montada entre os dias 30/05 até 08/06 são estimados em 200 mil Euros, e foram pagos com doações e contribuições de simpatizantes. Nada comparado com os 128 milhões de Euros gastos pelo governo alemão para os dois dias da cúpula de Heiligendamm.
Como que à margem do sistema onde vivem, todos presentes nos acampamentos tem algo contra o qual protestam. Anti-G8, anti-atômicos, anti-sexismo, anti-transgênicos, anti-machismo, anti-imperialismo, anti-discriminação, anti-capitalismo etc. O fato é que a imensa maioria dos participantes são cidadãos de países desenvolvidos. Uns chegaram ao acampamento dirigindo seus Mercedes, Audis ou BMW. Outros vestem jaquetas Mammut impermeáveis compradas a 300 Euros em lojas especializadas de artigos para camping. Uns gritam durante os protestos do dia: "Anti, anti, anti-capitalismo". De noite fazem festa comprando cerveja barata em um dos bares montados em alguns bairros do acampamento.
Uma contradição muito bem resumida na provocativa frase do artista plástico dinamarquês Jens Gaschiot, participante da marcha de Sábado: "Nós sabemos praticamente tudo. E apesar de sermos os seres mais conscientes e inteligentes que já houveram na face da terra, continuamos nos comportando como estúpidos animais no caminho para a nossa própria aniquilação".
(Por Mariano Senna, Ambiente JÁ, 04/06/2007)