Parece que foi num passe de mágica que, nos últimos anos, a produção de etanol se converteu de um programa quase falido concebido durante o regime militar a uma panacéia para o combate à escassez do petróleo e ao aquecimento global. Mas a verdade é que será preciso muito mais que mágica para que esse biocombustível se converta de fato na solução global que seus defensores pregam. No olho do furacão está a necessidade de desenvolvimento de novas tecnologias que permitam que a produção seja abundante e realmente "limpa", no maior número de lugares possível.
Para discutir o futuro dessa fonte de energia, acontece nas próximas segunda e terça-feira, em São Paulo, o Ethanol Summit 2007. Trata-se do principal evento mundial destinado a debater os rumos do álcool combustível. Agora, uma coisa que nem entra nessa série de debates é o fato incontestável de o Brasil ser uma ilha de prosperidade no que diz respeito à produção do etanol.
Como aqui o biocombustível é obtido a partir do processamento da cana-de-açúcar, o país se vê às voltas com a potencial criação de um novo "ciclo da cana", produto que foi força motriz brasileira durante o período colonial. Caso isso venha a acontecer, colocará o Brasil como uma superpotência no crítico mercado de energia ao longo do século XXI.
Em compensação, com as tecnologias atuais, os poderosos Estados Unidos se vêem reféns das circunstâncias geográficas. Lá, o plantio de cana não emplaca, e o etanol é produzido a partir do milho. Ocorre que o nível de eficiência das reações de fermentação e processamento que transformam o milho no álcool combustível é muito mais baixo. O que traz um resultado surpreendente: a energia obtida a partir do etanol de milho é apenas 10% superior à que é gasta para produzi-lo. Compare isso com o rendimento do álcool de cana brasileiro: produz-se 370% mais energia do que se gasta.
O quanto se gasta de energia na produção é o que pode ser traduzido em termos da poluição ambiental. O processamento da biomassa em etanol exige várias etapas que requerem calor -- e esse calor é produzido, normalmente, pelas atuais formas "sujas" de produção de energia.
Limpeza relativaEsses fatores é que levam ao questionamento do quão ambientalmente correto o etanol é. De fato, o que se emite de carbono na atmosfera durante a queima do álcool combustível de certa maneira é balanceado com o que se seqüestra de carbono pelo plantio da cana -- é a maravilha do recurso renovável, que cria um equilíbrio entre a geração e o consumo.
A poluição gerada pelo etanol, portanto, está no que liga as duas pontas: a produção. Cálculos realizados por Alexander Farrell, da Universidade da Califórnia em Berkeley, publicados no periódico científico "Science", sugerem que a produção americana de etanol, se feita com o uso de gás natural para os processos que exigem calor, é apenas marginalmente melhor do que a produção de gasolina convencional, em termos de emissão de gases-estufa. Se a energia para a produção do etanol vier do carvão, em vez de gás natural, aí a produção do álcool combustível se torna até mais poluente que a de gasolina.
Por conta disso, não são poucos os que criticam, em território americano, o súbito interesse do presidente George W. Bush pelo etanol (que foi, inclusive, o principal tema na pauta de sua visita ao Brasil, no início do ano). Da forma como ele é produzido hoje, o álcool combustível ianque faz muito pouco pelo ambiente.
"A cana-de-açúcar é a fonte vegetal definitiva, muito mais rica do que o milho ou gramíneas nos açúcares que são destilados no etanol, mas os Estados Unidos não têm o clima ou a mão-de-obra barata para explorar as plantações da forma que o Brasil faz", escreve Matthew Wald, jornalista americano especializado em energia, em artigo publicado pela revista "Scientific American".
Uma solução mais interessante para os Estados Unidos, ao menos do ponto de vista ambiental, seria aumentar a importação de etanol brasileiro. Bush já declarou que não são essas as intenções dele. Mas, caso a política americana vire em alguns anos, será que o Brasil conseguiria dar conta do recado? O aumento brutal do plantio de cana-de-açúcar não poderia causar um problema ambiental maior do que o que ele tenta conter?
Espaço está sobrandoSegundo o físico José Goldemberg, da Universidade de São Paulo, isso não seria um problema. Para ele, ainda há muitas áreas no Brasil que são de pastagens degradadas e poderiam ser convertidas em plantações de cana, sem prejudicar outros ecossistemas ou levar a um desmatamento ainda mais acelerado da floresta amazônica.
"A cana não cresce na Amazônia, por exemplo. E, dentro do próprio estado de São Paulo, temos milhões de hectares de pastagens degradadas que poderiam ser aproveitados para expandir o cultivo [sem desmatar mais]", argumenta. Como a atividade econômica nessas áreas de pastagem em mau estado é quase nula, seria relativamente simples convertê-las para o plantio de biocombustíveis.
Em artigo publicado na "Science", Goldemberg calculou que, se a área de cana-de-açúcar no planeta crescesse para 50 milhões de hectares -- um aumento de 30 milhões de hectares em relação ao montante atual -- seria possível substituir 10% da gasolina hoje consumida no mundo por etanol.
Para Paulo Gustavo do Prado Pereira, diretor de política ambiental da ONG Conservação Internacional, o raciocínio de Goldemberg, ao menos em princípio, está correto. Segundo ele, os dados mais recentes, de 2002, indicam que só o Brasil possui 227 milhões de hectares de pastagens. "As áreas de pastagens degradadas ainda não estão quantificadas com exatidão, mas certamente representam um espaço amplo para esse crescimento."
Entretanto, Pereira aponta que, para que esse plano dê certo em termos ambientais, será preciso fazer valer a lei. Ele lembra que a lavoura de cana, mesmo no caso paulista, muitas vezes avança para as áreas de reserva legal -- os 20% de toda propriedade agrícola que, no estado, deveriam ficar intocados, com vegetação natural -- e para as áreas de proteção permanente, como as de mananciais. "Você tem a cana, muitas vezes, chegando até a beira dos rios", afirma.
O alvo do etanol brasileiroDadas as condições ecológicas da Amazônia, que não são propícias para a lavoura de cana, Pereira vê o cerrado como o grande alvo para a expansão canavieira, como aconteceu com outros ramos do agronegócio, como a soja.
"Ninguém é contra o etanol, mas é preciso pensar muito na pressão que isso vai causar sobre os recursos naturais", argumenta Pereira. A começar pela biodiversidade: o cerrado é considerado um dos "hotspots", as regiões do mundo que combinam alto número de espécies endêmicas (ou seja, que só existem nesses lugares) e alto grau de ameaça. No caso do cerrado, só 21% da vegetação original continua existindo. Coincidência ou não, um dos "hotspots" em pior estado no planeta é a mata atlântica, o ecossistema onde a cana se instalou desde o começo da colonização do país.
O futuro: etanol de celulosePara os americanos, maiores poluidores do planeta, a decisão de apoiar o etanol agora, enquanto ele ainda não é nem mesmo muito melhor que a gasolina por lá, tem fundo estratégico. Primeiro, reduzir sua dependência do petróleo estrangeiro. Segundo, preparar sua matriz energética para quando for possível produzir o álcool combustível de uma forma realmente eficiente.
Para atingir esse fim, muitos pesquisadores estão se concentrando na busca de uma maneira eficaz de converter a celulose diretamente em etanol. Isso permitiria, por exemplo, que papel usado (pense em todos os cadernos escolares que vão para o lixo anualmente de qualquer jeito) virasse combustível para o seu carro.
A celulose é o principal componente estrutural das plantas. Trata-se de uma forma complexa de açúcar que forma a parede rígida das células vegetais. Sua resistência é tão grande que o procedimento exigido para quebrá-la em moléculas menores, que então seriam fermentadas e convertidas em etanol, exige hoje muito esforço e é muito ineficiente.
"Já existe um método de força bruta para fazer isso", diz Goldemberg. "Você usa, entre outras coisas, ácido sulfúrico e alta pressão. Ele tem sido tentado e funciona, mas é caro e pouco eficiente."
Para Michael Himmel, do Laboratório Nacional de Energia Renovável, no Colorado, Estados Unidos, o caminho não é esse. Em artigo publicado em fevereiro na revista "Science", ele relata o fato de que as diversas tentativas de processar a celulose -- incluindo aí esforços que usam enzimas, substâncias produzidas por organismos que são especializadas em "quebrar" moléculas -- não estão atingindo muito sucesso.
A aposta dele para o futuro é a criação de plantas transgênicas que se "autodesconstruam" após a colheita. Tais plantas seriam especialmente vulneráveis a enzimas comedoras de celulose. Se isso se tornar viável, qualquer material de origem vegetal -- de papel jogado no lixo a casca de banana -- poderia se tornar fonte de biocombustíveis.
Mas, para conseguir isso, ainda é preciso entender muito melhor a biologia básica das células vegetais -- um trabalho que pode levar décadas.
Moral da história: o etanol hoje se apresenta como uma alternativa muito promissora para o combate ao aquecimento global, mas ainda está longe de se mostrar uma forma de energia 100% limpa ou 100% eficiente. E exigirá muito mais que um país rico em cana e com experiência em seu processamento para que possa ser aplicado como uma solução definitiva, em escala global.
(Por Salvador Nogueira e Reinaldo José Lopes,
G1, 03/06/2007)