Para inundar 2.430 quilômetros quadrados de florestas e criar em Tucuruí o segundo maior lago artificial do mundo, as Centrais Elétricas do Norte (Eletronorte) tiveram de desalojar 32 mil famílias de agricultores e ribeirinhos. O dano ambiental que isso provocou nunca foi medido. Mas o social repercute ainda hoje. Seu escoadouro foi a invasão da hidrelétrica na madrugada de quarta-feira passada por 600 integrantes do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), Via Campesina, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e outras organizações sociais.
O protesto por pagamento de indenizações aos prejudicados com a construção da usina - sempre renovado a cada ano e protelado pela Eletronorte -, além de outras cobranças como construção de escolas, postos de saúde, criação de assentamentos da reforma agrária e asfaltamento das estradas intransitáveis da região, pareciam fazer parte de uma estressante rotina.
Nos últimos dez anos, o que havia sido incorporado à realidade da conturbada cidade de Tucuruí - passeatas que sempre acabavam em gritos e palavras de ordem no portão da Eletronorte contra a histórica omissão do governo federal em atender singelas reivindicações de moradores expropriados até mesmo de seus direitos - virou de uma hora para outra grande arma nas mãos de líderes do movimento.
Na véspera da ocupação, eles foram informados de que o esquema de segurança para proteger a hidrelétrica de eventual invasão era muito frágil, principalmente à noite. O plano de ocupar as instalações da maior usina de energia elétrica genuinamente nacional foi idealizado com ampla perspectiva de sucesso. Na hora da invasão, pela madrugada, os poucos vigilantes que guarneciam a entrada foram surpreendidos pela chegada em massa de 600 pessoas. No meio delas, alguns furiosos militantes sabiam como amedrontar a segurança. Enquanto manifestantes forçavam o portão de entrada para derrubá-lo, um integrante do movimento atirou uma bomba incendiária. Foi a senha para a ocupação imediata.
Dois dias depois, ao sair da usina com ar de vitória estampado no rosto, um manifestante resumiu o sucesso da invasão com uma frase: 'Agora o governo vai apreender a respeitar a gente'. Pelo visto, não aprendeu e nem vai aprender tão cedo. Como no caso do assassinato da missionária Dorothy Stang, dois anos atrás em Anapu, as providências, se vierem, serão tardias. Enquanto irmã Dorothy era enterrada, tropas do Exército, Aeronáutica, Polícia Federal e polícias locais caçavam os criminosos pela região, prometendo materializar o sonho de reforma agrária e desenvolvimento sustentado da floresta. Ministros concediam entrevistas a toda hora para exaltar as qualidades da freira, sua coragem e outras hipocrisias de quem parecia com a consciência pesada de não ter podido evitar sua morte anunciada.
Em Tucuruí, na semana passada, a presença tímida de agentes do governo federal, menos de 24 horas depois da desocupação da hidrelétrica por manifestantes que pensavam até em atirar bombas para se defender de possível ação do Exército para retirá-los, foi um sinal claro de que Brasília não está nem aí para os desalojados pela barragem. Se tivesse alguma preocupação, não teria delegado a oficiais do Exército a missão de negociar a retirada pacífica dos invasores. Nesse aspecto, nota dez para o Exército, que revelou a competência que faltou ao governo para negociar com os amotinados. Os problemas postos na mesa de negociações, entre governo, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), são simples e poderiam ser resolvidos de uma só tacada. Bastaria mobilizar alguns ministérios e secretarias federais.
Inpa reafirma que efeitos negativos perduramEstudo do Instituto de Pesquisas da Amazônia (Inpa) aponta que as conseqüências sociais e ambientais da hidrelétrica de Tucuruí foram, e continuam a ser, negativas e prejudiciais. Algumas delas: o deslocamento da população na área de inundação e a sua realocação devido a uma praga de mosquitos Mansonia; o desaparecimento da pescaria que sustentava, tradicionalmente, a população a jusante da barragem; os efeitos sobre a saúde devido à malária e a contaminação por mercúrio; e o deslocamento e perturbações de grupos indígenas Parakanã, Pucuruí e Montanha.
Quase dois terços da produção de energia de Tucuruí serve para abastecer a indústria do alumínio. No entanto, as famílias que moram nas ilhas formadas pelo lago da usina estão sem energia elétrica, mesmo após 20 anos de construção da barragem. A reunião entre os atingidos, sem terras e pequenos agricultores com o governo reacendeu a esperança de solução para os problemas que são uma conseqüência do atual modelo energético brasileiro, segundo o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
A entidade mostra que o modelo energético baseado na produção de energia hídrica significa 20% de toda energia produzida no mundo. Esta forma de produção de energia já expulsou de suas terras de 40 a 80 milhões de pessoas no mundo. No Brasil, 92% da energia produzida vem da fonte hídrica, já tendo expulsado mais de 1 milhão de pessoas de suas terras. O País tem mais de 2 mil barragens construídas em vários Estados, alagando uma área de 34 mil quilômetros quadrados.
Do potencial brasileiro estimado em 260,3 mil MW, o país aproveita 61 mil MW (25%). Praticamente dois terços deste potencial (63,6%) está na região amazônica, principalmente nos rios Tocantins, Araguaia, Xingu e Tapajós, onde a geração é de alto impacto ambiental e de elevado custo de transmissão. Outros 20% do potencial encontram-se no Sul, nas bacias dos rios Paraná e Uruguai, onde atingiria áreas de grande densidade populacional e inutilizaria terras férteis.
O Plano 2015 do governo federal prevê a construção de mais 494 usinas hidrelétricas, tendo como estimativa a expulsão de 800 mil pessoas de suas terras. 'A produção de energia de fonte hidrelétrica era tida como limpa e barata. Mas, além de toda a destruição social e econômica que causam, as barragens provocam muitos problemas ambientais', diz o MAB.
Por exemplo, as árvores que permanecem no lago formado pela barragem se decompõem. O apodrecimento do material orgânico forma os paliteiros e emite grande quantidade de gases, como o gás metano e gás carbônico, causadores do efeito estufa (aquecimento global da atmosfera). Foi o que aconteceu nos reservatórios das hidrelétricas já construídas na região amazônica, como Tucuruí, Balbina (AM) e Samuel (RO).
A partir destes exemplos, se todas as barragens que estão projetadas na Amazônia forem construídas, estima-se que serão emitidos cerca de 231 milhões de toneladas, equivalentes de gás carbônico por ano. Esse volume corresponde a 75% ou três quartos da quantidade de emissão líquida total de gás carbônico no ano de 1999, proveniente da queima dos combustíveis fósseis - petróleo, carvão e gás natural, além da lenha e carvão vegetal com origem da mata nativa.
Em 1999, a emissão total de gás carbônico por fontes energéticas foi de 315 milhões de toneladas. Ou seja, a hidroeletricidade que é vista como 'limpa' pode aumentar em muito a quantidade que o Brasil já lança para a atmosfera de gás carbônico, o principal gás causador do efeito estufa.
(
O Liberal, 28/05/2007)