O segmento da construção civil, representado pelos sindicatos da indústria (Sinduscon) e de trabalhadores (STICC) aprovou – e vetou –, conforme seus interesses, todas as 107 resoluções votadas na audiência para revisar o Plano Diretor de Porto Alegre, no sábado, 26 de maio. A predominância era tamanha que o grupo podia aprovar o que bem entendesse.
Ao todo, serão apreciadas 454 propostas, ou seja, faltam mais de 300 a serem discutidas. Os assuntos mais polêmicos – alturas máximas e áreas especiais de interesse cultural – ficaram para o próximo sábado, 2 de junho. Mas o resultado é previsível: vai prevalecer a tese do Sinduscon, de que não deve haver mudanças no Plano Diretor, ou seja, nem as alturas dos prédios devem ser reduzidas, nem os recuos aumentados.
O outro fato marcante do evento foi o público: quase 2 mil pessoas. Ao todo, 1773 se credenciaram para votar. Trata-se, disparado, do maior público de reuniões sobre o Plano Diretor, desde o início da revisão, no final de 2002. Desta vez, ao invés de um equilíbrio no embate Sinduscon-Associações de Moradores, houve uma diferença brutal. O Sindicato da Indústria da Construção Civil atropelou o movimento comunitário, que luta por reformulações no Plano.
Os empresários levaram um bom contingente, mas não foram eles que fizeram a diferença. Quem garantiu a superlotação do Salão de Atos da UFRGS foi o STICC – Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil de Porto Alegre. Na véspera, o grupo realizou reuniões em diversos pontos da cidade. A partir das 5h30 da manhã de sábado lotou dezenas de ônibus e garantiu a vitória na audiência do Plano. A organização foi de grande competência e incluiu transporte, café da manhã, almoço e vale-lanche.
Para que ninguém se atrapalhasse na hora de votar, um esquema explícito de orientação à massa trabalhadora. O informativo do STICC, o “Marreta”, edição de maio, deixa claro o sistema: “Colegas do nosso sindicato estarão uniformizados organizando como você deverá votar”.
No meio da terceira fila da platéia baixa, bem em frente à mesa que coordenava os trabalhos, diretores-técnicos do Sinduscon e diretores do STICC eram os primeiros a levantar o crachá. Logo em seguida, integrantes do STICC, posicionados em locais estratégicos erguiam seus crachás e em seguida eram copiados pelo grande público.
Revoltados, líderes de associações de moradores deixaram o auditório e protestaram no saguão, com palavras de ordem: “Audiência Comprada! Cidadania Roubada!”. Na parte da tarde, nem era preciso combinação – as votações foram quase unânimes. Só não foram pela presença de alguns integrantes do Instituto dos Arquitetos do Brasil.
“Eles que não me venham com sopa”Sábado, oito da manhã, temperatura de oito graus. Uma fila de 400 metros serpenteia entre os prédios do campus central da Universidade Federal, em Porto Alegre. Na ponta, junto à porta do auditório que recém abriu, está o povão: mulheres da periferia com suas roupas surradas, operários com seus bonés e suas caras cansadas, jovens que parecem ter vindo de um baile funk... uma mistura heterogênea que ocupa dois terços da fila. Trazem na mão a carteira de identidade e uma conta de luz ou telefone, para comprovar a residência.
No terço final, a classe média e acima: senhoras de casaco de couro, senhores de sobretudo e luvas, estudantes de classe média, professores, engenheiros, arquitetos, advogados, funcionários públicos... Muitos trouxeram seu chimarrão. Conversam em grupos, discutem os folhetos que estão sendo distribuídos.
Uma das senhoras elegantes se exalta: “É um absurdo, essas pessoas foram arrebanhadas e trazidas, nem sabem porque estão aqui”. Ela mostra um panfleto que o sindicato da construção distribuiu convocando os operários para as sete horas da manhã. “Vão encher o auditório, aí ninguém mais entra”.
Na ala da periferia pode-se ver um mulato de gorro, jaqueta de nylon e calça de abrigo portando seu violão. Ele parece inquieto: “Enfrentá esse filão, já pensou?”. Outro comenta “Se amarrá muito, eu vou vazá”. Um terceiro, de cabelo rasta, chega perguntando. “O bagulho é aí dentro?”.
Duas donas de casa conversam. “Deixei o tanque cheio, poderia tá aproveitando esse solzinho”. A outra diz que também está pensando em ir, “mas só depois do almoço”. Uma terceira que ouve o diálogo intervém. “Por favor, né? Não me venham com sopa”.
A fila começa a andar lentamente, à medida que as pessoas vão entrando e recebendo seus crachás. Novos grupos vão chegando. “Quantos vieram?”, alguém pergunta. Um homem com uma planilha na mão responde: “Cinco ônibus com 40 cada um”.
No pequeno stand que o sindicato instalou junto à entrada, os coordenadores recebem instruções sobre a distribuição dos tickets para o almoço. “É para entregar na saída para quem tiver com o crachá”. Um outro leva, mais um grupo para o café da manhã.
Eles atravessam a rua e entram no parque, onde uma Kombi da Nutricional Refeições Coletivas está estacionada. Recebem o lanche e se espalham para comer entre as árvores. Uma moça puxa a colega pelo casaco, para voltarem. Outra que vem chegando, tranqüiliza: “Aquilo lá antes das onze não começa”. (E.B.)
(Por Guilherme Kolling e Elmar Bones,
Jornal JÁ, 28/05/2007)