Parece até coincidência. Na mesma semana em que o Ministério do Meio Ambiente (MMA) apresentou o livro com as
"Áreas Prioritárias para Conservação, Uso Sustentável e Repartição de Benefícios da Biodiversidade Brasileira", técnicos do ministério estiveram em Porto Alegre anunciando o plano para a criação de uma nova Unidade de Conservação no RS. Até aí tudo bem. O problema é que a nova reserva prevê um corredor ecológico no Rio Pelotas, na região dos Campos de Cima da Serra envolvendo 14 municípios de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, incluindo a área onde está prevista a construção da hidrelétrica (UHE) de Pai Querê. Técnicos do MMA e ambientalistas acreditam que se aprovado, o corredor inviabilizará o licenciamento da hidrelétrica para o local.
A idéia da reserva não é nova. Dois são os principais fatores a impulsionar a proposta. O primeiro é o
Plano Nacional de Áreas Protegidas (PNAP), um instrumento para planejamento e gestão de um sistema de áreas protegidas, assim como para promoção de acesso e repartição dos recursos advindos da conservação da natureza. O PNAP tem até 2015 para ser estabelecido.
O segundo fator é o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado em 15/09/2004 entre o Ministério do Meio Ambiente (MMA), Ministério Público Federal (MPF), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), Ministério das Minas e Energia (MME), Energética Barra Grande S.A. e a Advocacia Geral da União, para o licenciamento da hidrelétrica de Barra Grande. Localizada 60 quilômetros rio acima de Pai Querê, Barra Grande ficou conhecida como uma das maiores fraudes no licenciamento de hidrelétricas no mundo. Imposta pela política do fato consumado, pois as irregularidades só foram descobertas quando a barragem já estava quase pronta, a obra foi legalizada por um acordo entre as instituições responsáveis. O TAC estabeleceu o compromisso para a criação de um corredor ecológico no Rio Pelotas, garantindo "o fluxo gênico à montante da área de inundação da barragem de Barra Grande, interligando a região da calha do Rio Pelotas e seus principais afluentes, aos Parques Nacionais de São Joaquim e Aparados da Serra".
Passo a passoOs trabalhos para a elaboração da proposta da nova UC começaram no primeiro trimestre de 2006. Para apresentar um plano de conservação à região, dentro dos princípios participativos estabelecidos pelo PNAP, foi reunida uma equipe de cinco pessoas do MMA, com a colaboração nas expedições à campo de técnicos da Fepam/RS, Fatma/SC, Ibama, ambientalistas e estudiosos da UFSC, FEEC/SC, prefeituras locais e também de prorietários da região.
O técnico especializado da Diretoria de Áreas Protegidas do MMA e coordenador da equipe de campo do estudo, Emerson Antônio de Oliveira, afirma que foram analisados aspectos como geologia, hidrografia, clima, fauna e vegetação da região. Também foram verificados fatores de ameaça à Mata Atlântica, como drenagem de banhados, queima de campos, plantação de pinus e caça a animais em extinção. "A situação é mais grave do que imaginávamos", enfatiza ele. "No relatório que elaboramos constam todas as fotos de toda a nossa observação durante as idas à campo".
Emerson explica que foram realizadas cinco saídas a campo. A primeira em julho de 2006 para o reconhecimento da área. "Nessa expedição foram apresentados os responsáveis pelos estudos para todos os envolvidos, incluindo proprietários das terras que envolvem o corredor, priorizando a transparência dos objetivos e resultados", explica. No início de setembro de 2006 o helicóptero do Ibama apoiou a expedição. "A área era maior do que imaginávamos", conta Emerson, explicando também a necessidade de um rafting feito no Rio Pelotas. Ainda no final de setembro foi realizada em São José dos Ausentes (RS) uma reunião de nivelamento, nome dado ao encontro para mostrar o andamento dos estudos aos interessados. Em novembro, outra força-tarefa envolvendo estudiosos da UFRGS, UFSC, PUC-RS, FEEC-SC, Ong Amigos da Terra, proprietários e também técnicos e pesquisadores das prefeituras municipais de Bom Jesus e Vacaria (RS) se encontrou. Em meio aos trabalhos de campo, também foram realizadas diversas reuniãos com os prefeitos das cidades envolvidas e com os proprietários das terras que fazem parte da área proposta para a formação do corredor ecológico. Emerson afirma que há muito interesse econômico por parte deles devido ao interesse não apenas da preservação e sustentabilidade da área, mas também da rentabilidade com o turismo, por exemplo.
A PropostaNa terça-feira passada (22/05) foi apresentado, em Porto Alegre, o relatório com a proposta de criação de um "Refúgio de Vida Silvestre (RVS) na extenção 250.000 hectares da Bacia do Rio Pelotas". "Essa é uma proposta de Unidade de Proteção Integral que está na lei 9.985/2000. A partir disso o objetivo é estimular o povo local a ampliar a proteção", diz o colaborador técnico do MMA, João de Deus Medeiros.
O Gerente de Projetos da Diretoria de Áreas de Proteção (DAP), Fábio França Araújo Silva, e o Coordenador do Núcleo dos Biomas da Mata Atlântica e Pampa (NAPMA), Wigold B. Schaffer, ambos do MMA e integrantes da equipe de estudo, também estavam presentes na apresentação da proposta. Wigold ressalta que este estudo não considerou potenciais projetos de utilização da área, "estamos cumprido apenas a cláusula do TAC com a proposta de criação da Unidade de Conservação".
João de Deus afirma também que o projeto de Pai Querê não foi condicionante ao estudo, mas "uma hidrelétrica como essa é incompatível com o RVS". Ele acredita que uma hidrelétrica vai contra os objetivos de conservação, e que se essa proposta for decretada oficialmente o licenciamento de Pai Querê não será liberado.
Já Alexandre Krob, da ONG Curicaca, teme que apenas a criação do Refúgio, por unir propriedades federais a propriedades privadas, e ser uma área de grande extensão, não seja suficiente para deter interesses políticos e econômicos. "O ideal é criar diversas áreas de conservação como um mosaico ou constar no decreto do RVS áreas intangíveis para uma maior proteção".
A nova hidrelétricaA UHE Pai Querê está prevista para uma área de 3.940 hectares no rio Pelotas, entre os municípios de Bom Jesus/Vacaria (RS) e São Joaquim/Bom Jardim da Serra (SC), a leste da hidrelétrica Barra Grande. Pai Querê é uma das obras prioritárias previstas no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal. O projeto é do Consórcio Empresarial Pai Querê, formado pelas mesmas empresas que construíram a usina de Barra Grande em 2005 (Alcoa Alumínio S.A., DME Energética Ltda e Votorantim Cimentos Ltda).
O rio Pelotas dá origem à maior bacia hidrográfica do Rio Grande do Sul, a bacia do Rio Uruguai. Nas suas margens está uma das áreas mais selvagens do sul do país. As matas ciliares do rio indicam os últimos remanescentes florestais da região nordeste do estado do RS. A área onde está projetada Pai Querê foi considerada como prioritária para a Conservaçao pelo IBAMA (Dec. 5.092/04 - Port. MMA 09/07) e também como Zona Núcleo da Biosfera da Mata Atlântica.
Segundo informações no diagnóstico ambiental do EIA-RIMA de Pai Querê, serão afetados 329 km2 de campos nativos (62,75% da área de influência indireta) e 134 km2 de mata com araucária (25,53%). Já na área de influência direta (o que será inundado, ou seja, totalmente destruído), são 11,8 km2 de campos nativos (19,22%) e 39,4 km2 de matas de araucária (64,17%).
O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e seu respectivo relatório (RIMA) foram apresentados em agosto de 2006 pela Engevix, empresa contratada pelo consórcio.
A Engevix também realizou o EIA/RIMA de Barra Grande, no qual foram comprovadas omissões de espécies e fraudes na demonstraçao da grandeza da biodiversidade na área onde é hoje o lago da hidrelétrica.
Mesma históriaO Instituto Gaúcho de Estudo Ambientais (Inga) junto com outras ONGs realizaram uma expedição (setembro de 2006) no rio Pelotas para analisar as espécies de flora e fauna existentes. O relatório apresentado por eles, após três dias de campo, lista 215 espécies vegetais e 17 espécies de orquidáceas, o que representa quase o dobro das 134 espécies listadas no relatório apresentado pela Engevix, que também diz não existir nenhuma espécie de orquidácea.
O prof. Paulo Brack, do departamento de Botânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordena o estudo sobre o EIA/RIMA da construção de Pai Querê. "O EIA é superficial, e já foi considerado não satisfatório pela Fepam/RS" - afirma ele - "foram analisados apenas aspectos de viabilidade econômica, esquecendo da diversidade de espécies". Brack também reclama da falta de demonstração caso fossem feitas pequenas alterações de deslocamento e também da falta de alternativas considerando impactos menores, como o local e a dimensão do projeto da usina.
Paulo Brack aproveitou a vinda dos servidores do MMA à Porto Alegre e entregou aos técnicos da Diretoria de Áreas Protegidas do MMA um relatório para ser anexada à proposta de criação de uma Unidade de Conservação na região. "O relatório descreve toda análise feita no EIA/Rima de Pai Querê", afirma. Além disso, outros estudos paralelos das universidades do Rio Grande do Sul que comprovam a diverdidade da fauna na área 3.940 hectares de floresta a ser alagada se a hidrelétrica for construída costam no relatório.
O processo de licenciamento de Pai Querê encontra-se em análise no Ibama para concessão da Licença Prévia. A reportagem fez contato com a Assessoria de Comunicação do Ibama no RS, que informou que "todo o processo de licenciamento da usina está centralizado em Brasília, não tendo técnicos responsáveis na Superintendência regional do Rio Grande do Sul". Em Brasília foi informado que o responsável pelo licenciamento ambiental da usina, o diretor substituto do Licenciamento, Valter Muchagata, está sobrecarregado devido a greve dos servidores, e não tem equipe que possa verificar no processo informações sobre a atual situação do licenciamento, ou responder questões sobre o conteúdo do EIA-Rima feito pela Engevix.
(Com reportagem de Flávia Medeiros, Ambiente JÁ, 25/05/2007)