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amazônia
2007-05-28

Uma consulta à página na internet do Centro de Biotecnologia da Amazônia, em Manaus, revela que os 12 mil metros quadrados da instalação contêm espaço para 25 laboratórios, mas abrigam só nove doutores e, ao todo, menos de cem funcionários. Se a Amazônia fosse de fato o Celeiro de Genes do mundo, o Pulmão Molecular do planeta, seu Eldorado Tecnobiológico, como explicar que permaneça vazio o elefante branco no Distrito Industrial da Zona Franca de Manaus?

Há muitas explicações, decerto, a começar pela carência de recursos humanos qualificados na região. No passado, em 2000, também fracassou um acordo entre a iniciativa BioAmazônia e a empresa Novartis, firmado à revelia do governo federal e por ele anulado. Havia sido moldado em acordo similar firmado uma década antes, e dado como paradigma da bioprospecção, entre a empresa Merck e o INBio, do governo da Costa Rica, pela quantia de 2,8 milhões de dólares, do qual hoje ninguém mais fala.

Do acordo brasileiro se pode dizer que naufragou por impróprio e por força da saudável reação social aos seus termos e condições. Mas o que dizer dos parcos resultados colhidos pelo INBio e, provavelmente, do futuro acanhado do CBA?

Com certeza, que a bioprospecção não tem rendido nem uma fração do que prometia em 1992. Naquele ano se negociou no Rio de Janeiro a versão final da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica, consagrando o generoso princípio da repartição de benefícios pelo uso de saberes tradicionais. O objetivo, aqui, é precisamente este: questionar a idéia feita de que a Amazônia represente uma espécie de Paraíso Genético, imagem fadada a se desfazer, assim como se desfizeram as do Pulmão Verde do mundo e do Celeiro de Alimentos.

Ativos em excesso
Há outra figura poderosa em gestação, a do Armazém Global de Carbono. Só que essa o país cuida de desmontar materialmente, não simbolicamente, por meio do desmatamento.

Não se trata, é claro, de negar à Amazônia a condição de maior província de megadiversidade do globo terrestre. Cerca de um décimo das espécies de mamíferos, aves e anfíbios da Terra têm seus habitats na maior floresta tropical, assim como mais ou menos um quarto dos peixes de água doce.

Em matéria de bioprospecção, porém, quantidade pode ser problema, não solução. Como encontrar a cura do câncer entre centenas de milhares de proteínas e metabólitos produzidos por centenas de milhares de organismos pluri e unicelulares, a maioria dos quais nem sequer se conhece? Como tornar racional essa busca?

Decerto o conhecimento de índios e comunidades caboclas pode dar pistas, mas a tentativa de desenvolver quadros de referência para promover uma valorização eqüitativa desses saberes para uso tecnoindustrial se tornou uma espécie de pesadelo prático, ético e jurídico para definir quem ou qual grupo é detentor de tais direitos e pode tanto aliená-los quanto auferir renda com eles.

Não é só por tais dificuldades, no entanto, que a bioprospecção não avança, mas também porque ela é intrinsecamente ineficiente. À indústria biotecnológica (fármacos e agroindústria, principalmente) interessam poucos compostos capazes de gerar rendimentos extraordinários. A imagem corrente diz respeito a uma Amazônia como celeiro de genes de impacto mundial, não de matérias-primas tradicionais.

Exemplos como o do curare e seus relaxantes musculares, usados em cirurgias no mundo inteiro desde os anos 1940, não passam de exemplos -poucos e raros. O tesouro da biodiversidade na ponta do arco-íris lançado pela Rio-92 não se materializou: continua enterrado na forma de grãos de ouro genético sob toneladas de ganga e pirita biológica.

Mesmo que uma pepita biotecnológica seja encontrada na Amazônia, a origem geográfica não dá garantia de nada. Nessa nova e ilusória corrida pelo ouro, o que importa é obter a patente e descobrir um processo para fazer a síntese industrial do composto de interesse. Com ela, tornam-se obsoletas as máquinas pesadas, úmidas e pegajosas que são os organismos.

Além disso, o mundo inteiro é uma federação de províncias garimpáveis: numa única coleta no mar dos Sargaços, o prodígio genômico Craig Venter bateou mais de 1,2 milhão de genes inéditos, de 1.800 espécies (mínimo de 148 desconhecidas), identificados com base unicamente em análise por métodos computacionais.

Muitas outras amostras foram colhidas por Venter a bordo do veleiro Sorcerer-2, numa viagem de volta ao mundo que deveria prosseguir pelo rio Amazonas. O plano terminou abortado, após as complicações políticas e diplomáticas surgidas com sua incursão bioprospectiva nas ilhas Galápagos.

Só no Brasil, estão à disposição para bioprospecção também mais de 8 mil quilômetros de costa, a mata atlântica, o cerrado, a caatinga... Um reles cupim de qualquer um desses biomas pode fornecer a pista para enzimas capazes de digerir celulose e produzir álcool também a partir do bagaço de cana e da palha de milho, não só da sacarose. Viraria de pernas para o ar a tecnologia de produção de biocombustíveis, na qual o Brasil tem hoje algumas vantagens comparativas.

Nas fontes termais do oceano, em rochas de até três quilômetros de profundidade e nos gêiseres de Yellowstone vivem micróbios ditos extremófilos. São inventores ou usuários de vias metabólicas inimagináveis por espécies amazônicas. Basta um deles para originar uma droga arrasa-quarteirão.

Ninguém depende da cornucópia amazônica para "bamburrar", como se dizia nos garimpos de chão, de rio e de rocha. Tampouco se trata de negar que exista biopirataria, mas de indicar que ela só é de fato disseminada se entendida em sentido muito amplo. Não faltam casos de turistas duvidosos presos pela Polícia Federal com caixas de aranhas e outros bichos -mas isso é tráfico de animais, um crime antigo.

Também há o precedente do registro da marca "cupuaçu" por uma empresa de alimentos no Japão - mas isso é pirataria cultural, não biológica. Por fim, não resta dúvida de que amostras de sangue de índios da Amazônia se encontram à venda por empresas estrangeiras, como a Coriell Cell Repositories - mas tudo indica que houve nesses casos negligência grave de normas éticas da prática da medicina, como o consentimento informado. Não se conhece, todavia, produto ou medicamento desenvolvido a partir dessas células.

Se por "biopirataria" se entender o furto ou apropriação indevida de informação genética para patenteamento e obtenção de lucros, pela indústria farmacêutica ou agrobiotecnológica, os casos são raros, se não inexistentes. A CPI da Biopirataria pediu até a prisão de madeireiros por contribuições eleitorais ilegais, mas não produziu casos documentados de biopirataria em sentido estrito.

Só cinco itens sob essa rubrica foram investigados pela comissão: saída irregular de aranhas do Instituto Butantan para o exterior; suposta patente de compostos da rã-da-castanha; atividades suspeitas da ONG ACT entre indígenas do Parque Xingu; venda de terras estaduais do Parque Chandless; venda de sangue indígena Karitiana e Suruí. Todos descartados no relatório final.

Insuficiência
Parafraseando o título do clássico livro da arqueóloga americana Betty Meggers -"Amazônia, a Ilusão de um Paraíso"- sobre a capacidade de suporte de sociedades humanas pela floresta, pode-se dizer que a imagem da região hoje é refém da Ilusão do Paraíso Biotecnológico.

Apesar de muito criticada no passado pelo que comporta de determinismo ecológico na interpretação do registro etnográfico e arqueológico, a perspectiva inaugurada há meio século por Meggers vem sendo parcialmente corroborada por estudos sistemáticos da nutrição de caboclos amazônicos. Eles revelam uma crônica insuficiência de calorias, ainda que não de proteínas.

Prosseguindo com o paralelo, é o caso de dizer também que a biodiversidade amazônica não carece de "sustança" genética, abundante como é na floresta, mas de calorias capazes de acelerar o metabolismo de sua apropriação pelo capital. Os genes estão lá, mas indistinguíveis contra um pano de fundo de variabilidade orgânica, bioquímica e taxonômica quase infinita, monótona por força da quantidade, por saturação.

William James também afirmou, na última carta que escreveu em sua estadia de oito meses no Brasil em 1865-66, que a sonolência produzida pela monotonia florestal fazia parecer que a vida anterior (a de Boston) é que era sonho, e não tanto a experiência amazônica.

Sonho amazônico
Não é o caso de especular sobre o que teria sido de James se tivesse decidido permanecer na entorpecedora vigília amazônica, em lugar de retomar a vida lembrada e a sonhada carreira bostonianas. Nada impede, porém, de especular: qual visão a ciência natural poderia produzir da Amazônia e de sua biodiversidade que não fosse a de sua valorização como jazida de recursos genéticos? Que outro tipo de conversa, menos escuta interesseira e mais diálogo criativo, poderia ela estabelecer com saberes tradicionais?

Com qual Amazônia, enfim, seria melhor sonhar? Eis um sonho possível: um dia, os organismos da Amazônia viverão numa cultura em que não serão julgados pelo tipo de pele genética que vestem, mas pelo conteúdo de seu caráter.

Nesse sonho, peixes também poderiam ser gente. E, quando se encontrassem, gente-peixe com gente-tukano, gente-tuiuka e gente-pesquisador, o sonho poderia materializar-se num livro, onde mais gente ficaria sabendo que foram coletadas por toda essa gente, no Alto Tiquié, 147 espécies de peixes das 2.500 que se estima existirem na bacia Amazônica. Das 147 espécies coletadas sob orientação de tukanos e tuiukas, entre 10 e 15 eram novas para a ciência de além-floresta.

Cinco já ganharam novos nomes, "científicos": Moenkhausia diktyota, o caroço-de-tumu ("tumupe", em tukano, ou "tumuape", em tuiuka); Creagrutus tuyuka, uma piaba ("wero sema põrero ñigu", ou "wegero sukubero põrero ñigu"); Corydoras tukano, uma corridora ("wai pota yutugu", ou "wai pota yudugu"); Callichthys serralabium, o tamoatá ("dita bukawi", ou "dita muka"); e Jupiaba poekotero ("uta sa, uta saku, poe ko'tero niti pe kuogu"; ou "poe kotero niti petigu"). Nomes compridos, mas diretos: piaba-cocô, ou saco-de-cocô (referência a hábitos alimentares do peixe), ou vigia-da-cachoeira-com-pinta-de-carvão.

Para a biotecnologia, nada disso tem valor, é evidente. Mas pode virar ciência, se por ciência se entender algo mais que o conhecimento produzido só com a perspectiva de obter controle tecnológico sobre processos naturais. Mesmo que nenhum cientista apareça por lá, tudo ainda assim estará lá, em si, não para a tecnologia.

Carbono
Assim também o carbono está lá e agora, fixado na biomassa de organismos vivos e mortos. Pouco importa - do ponto de vista da mudança climática global em curso - se vai dar tempo de atribuir-lhe valor num mercado, antes que o desmatamento leve tudo de cambulhada.

A área desmatada na Amazônia brasileira, sobretudo nos últimos 20 anos, já passou de 650 mil quilômetros quadrados. Equivale a cerca da metade da área originalmente coberta pela outra grande floresta tropical nacional, a mata atlântica.

O país com nome de madeira sob ameaça de extinção levou cinco séculos para destruir a mata atlântica, embora tenha se esforçado mais na segunda metade do século 20. Restaram menos de 8%, como a lembrar que o Paraíso Genético é uma ilusão perfeitamente desnecessária.

O que é que a Amazônia tem?
MAMÍFEROS
425 espécies
(9,1% do total mundial)

AVES
1.300 espécies
(13,4% do total mundial)

RÉPTEIS
371 espécies
(5,7% do total mundial)

ANFÍBIOS
427 espécies
(10,1% do total mundial)

PEIXES DE ÁGUA DOCE
3.000 a 9.000 espécies
(27% do total mundial)

BORBOLETAS
1.800 espécies
(24% do total mundial)

ABELHAS
2.500 a 3.000 espécies
(10% do total mundial)
(Por Marcelo Leite, Folha de São Paulo, 27/05/2007)


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