Toda divisão em "cracias", da religiosa à profissional, representa a segregação de grupos com interesses ou formação comum, que resulta na defesa ou proteção dos interesses destes grupos frente ao restante da sociedade. E até mesmo, no caso de teocracias, entre sociedades e nações.
O setor ambiental brasileiro público organizado no último século nasceu da iniciativa dos próprios empresários aliados a uma tecnocracia, inicialmente envolta na questão florestal, dos primórdios do Serviço Nacional do Mate para o Serviço Nacional do Pinho, depois Instituto, posteriormente IBDF, e que ao surgirem às outras linhas tecnocratas fundiu os interesses da Pesca com os difusos da antiga SEMA e o corporativo da borracha na Sudhevia. O resultado, o IBAMA, tomou o cuidado de incluir em sua denominação não ser um Instituto só de meio ambiente, mas também dos recursos naturais renováveis, parte esta já esquecida na escolha de sua sigla ainda no inicio da gestão do então presidente Fernando Cezar Mesquita.
Mesmo o IBAMA somou castas ambientais, mas não conseguiu englobar outros interesses como a água ou a mineração, e por suas dificuldades institucionais e graves distorções ideológicas, ao invés de conquistar estes setores criou um emaranhado de conflitos onde uma Secretaria com status de Ministério como a SEAP cuida da Pesca, mas só pela metade, pois fiscalização e controle são do IBAMA. A perda da pesca para a SEAP é só o inicio de outras, como as florestas que começam a migrar para outras instâncias e até Ministérios, já reivindicadas pela Agricultura, sem contar o recente desmembramento da área de Unidades de Conservação.
Como este artigo não visa tratar deste mérito, esta indicação serve para demonstrar como a mistura de grupos não foi conseguida nem mesmo em um ato institucional forte como a criação do IBAMA pelo então presidente José Sarney, e nem conseguiu evoluir conceitualmente quando seu filho, o amigo deputado Sarney Filho (PV-MA), foi seu ministro.
Várias foram e são as causas, e o mais grave é a que tem afetado milhares de profissionais, de biólogos a engenheiros, que todos os dias vêem desconsiderados seus direitos e obrigações, garantidos pela Constituição, e sua respectiva responsabilidade técnica, em função de algo que não sei ser uma imposição ou conluio entre os tecnocratas de plantão e a neo-legiscracia que se impôs pelo terror da imposição de normas, etc, sem a devida base de sustentabilidade. (só no banco de dados de AmbienteBrasil existem mais de 8 mil (!), geradas a maioria nos últimos 20 anos).
A lei e a norma existem exclusivamente para garantir o convívio das pessoas e suas atividades em sociedade, e no caso ambiental, com padrões de garantia da qualidade de vida para as próximas gerações etc. A lei não é uma "verdade", e nem precisa ser, é apenas uma "necessidade" no caso da ausência da verdade ou do limite de convivência, sendo verdade ou não. Mas não pode ser a negação ou substituição da verdade e, no caso da ciência ambiental, mais relevante pelos interesses difusos envolvidos.
A tecnocracia sempre tenta impor seu conhecimento como argumento balizador do caminho a seguir, e comete e cometeu muitos exageros, especialmente quando a serviço de interesses da burocracia, de políticos ou de segmentos econômicos. Mas a neo-legiscracia vem superando todos os exageros anteriores. Pareceres dos departamentos técnicos do IBAMA não são mais a opinião de um engenheiro, biólogo, veterinário ou outro profissional que opina a luz de seu conhecimento, nos limites da tecnicidade, deixando que a procuradoria e outros jurídicos complementem o parecer sobre os limites legais. Os técnicos se repetem em citar resoluções ou portarias, sem questionar sua responsabilidade e juramento perante a profissão e à sociedade de defender a sua verdade.
Com isto, seja por um conluio em função de interesses ideológicos superiores, ou por uma submissão ou até mesmo medo de ações punitivas, não dão ao cidadão nem o direito de contrapor tecnicamente e muito menos de usar o argumento técnico junto a instâncias legislativas e normativas como o Congresso e o CONAMA ou nos tribunais para demonstrar a existência de uma realidade técnica diferente da norma. A soma do parecer da maioria dos técnicos dos órgãos ambientais hoje se traduz nas citações do manual de fiscalização ou de qual norma, esta seguindo, referendando o circulo vicioso do desconhecimento e da negação.
A faixa de APP, uma mágica do empirismo generalista, após 40 anos do Código Florestal, não conseguiu ainda trocar os “x” metros pelo padrão de qualidade desejado tanto para a água como para seu entorno na forma de corredor gênico ou outra função, deixando estes “x” metros apenas como indicativo daqueles que não desejam usar da ciência e dos profissionais devidamente habilitados.
Por analogia, médicos que tratam da vida e precisam de decisões a cada segundo não existiriam se tivessem de ter regulado o tamanho das incisões cirúrgicas, ou ao operar um apêndice encontrar mais um problema e ter de fechar o paciente para pedir autorização ao Estado para nova cirurgia. Mas é assim, por exemplo, com o engenheiro florestal que, ao manejar uma floresta vai retirar uma determinada árvore, e encontra outra morta ou senil ao seu lado, e precisa de novo processo para com maior impacto e perda econômica voltar ao mesmo lugar.
É assim com todos que estudam na graduação, na pós, doutorado, pós-doutorado, etc, e depois recebem apenas a reposta de que determinada resolução CONAMA não autoriza algo que ele aprendeu ou descobriu ser absolutamente necessário. E isto não é nenhuma tendência anárquica, e sim a reflexão que existe em todos os demais segmentos das relações sociais, onde o direito dialoga ou discute permanentemente com a tecnocracia em busca de aliança e suporte para seus interesses, a serviço da e para sociedade!
Prazos então, nem falar. Pedidos que envolvem seres vivos (desde árvores até animais) ficam anos em prateleiras, sem que o técnico do órgão ateste em seu parecer que biologicamente o interessado deve ter uma resposta breve por danos irreparáveis ao ambiente e a vida. É corriqueiro municípios perderem suas verbas para instalação da rede de esgoto, pois após dois ou três anos o órgão ambiental ainda não emitiu sua licença. Autorizações de coletas biológicas ou de criadouros da vida silvestre mofam por anos, alguns até com os animais importados enjaulados em algum centro de triagem, morrendo pela falta de tratos.
A norma deve existir, evoluir, restringir ou liberar, mas não pode em hipótese alguma impedir o sagrado direito de pensar, e a obrigação da informação técnica isenta e independente.
Esta situação é tão relevante que conselhos como o CREA exigem no contrato social de empresas do ramo cláusula com a garantia de que o responsável ou departamento técnico possui total independência.
Outro aspecto é o discordar do órgão ambiental do projeto ou laudo feito por um profissional devidamente habilitado e que recolhe sua ART junto ao órgão de classe. Se tecnicamente o órgão ambiental atesta não serem verdade estas informações, deve também fazê-lo através de profissional devidamente habilitado, com anotação de responsabilidade técnica, pois um dos dois, o autor ou quem discorda, deve responder na comissão de ética do órgão profissional.
É algo diferente dos advogados, que podem opinar e ter a tese jurídica que desejam, pois os técnicos podem opinar ou ter teses até o momento que elaboram um documento e assinam a responsabilidade de que suas informações e afirmações são verdadeiras. Por analogia, é como na prefeitura um cálculo de uma laje ser derrubado pelo departamento de urbanismo como não sendo correto. Até pode, mas o calculista tem que imediatamente ser responsabilizado.
Mas a legiscracia ambiental está solucionando este dilema. Diz tudo que é certo em portarias e resoluções, trocando por mágica toda afirmação acadêmica por normas, e até mesmo algumas Universidades discutem mais estas normas para seus alunos do que a base informativa da ciência.
Manejo para rendimento sustentado, desenvolvido há milênios pelos chineses, simplesmente foi “suspenso em toda região de mata atlântica” há 5 anos, como se a vida pudesse ser suspensa, esquecendo situações primárias de que a simples concorrência da floresta determina necessária intervenção até mesmo para sua perpetuação, seja pelo homem ou pela natureza como os incêndios florestais, neste caso, mais danosos do que fazer o processo positivo da seleção do fogo generalizado pela seleção controlada do homem (não falo da defesa do seu uso racional, apenas da sustentabilidade).
Assunto, neste exemplo, tratado por total desconsideração dos departamentos técnicos dos órgãos ambientais, que sabem da verdade, tentam falar, mas são submetidos à força e imposição da legiscracia, neste caso com movimentos ideológicos que manipulam nossa sociedade descrente e na maioria sem a cultura básica.
Para conseguirmos enfrentar desafios como o aquecimento global e a conservação das espécies, precisamos do equilíbrio e respeito ao conhecimento já existente, ante os videntes do apocalipse insolúvel.
(Por Luciano Pizzatto (*),
Ambiente Brasil, 17/05/2007)
* É engenheiro florestal e empresário, Diretor de Parques Nacionais e Reservas do IBDF/IBAMA 88/89, Deputado de 1989/2003, detentor do Prêmio Nacional de Ecologia.