Na segunda reportagem da série Rios Grandes do Sul, Zero Hora apresenta um retrato do Jacuí, que se estende de Passo Fundo a Porto Alegre. Com a bacia do Rio Taquari, seu principal afluente, os domínios do Jacuí atravessam 176 municípios, onde vivem mais de 2 milhões de pessoas. A série, publicada todas as terça-feiras, encerra-se em 5 de junho, Dia Mundial do Meio Ambiente
Os olhos fundos de Laudares Rosa de Oliveira, 66 anos, de Cachoeira do Sul, contemplam com tristeza as águas vazias do Rio Jacuí. Depois de receber US$ 100 milhões (cerca de R$ 200 milhões atuais) dos cofres públicos para se transformar em uma imponente estrada aquática que escoasse a produção agrícola gaúcha, entre as décadas de 50 e 70, o rio hoje luta contra o abandono.
Dos 250 quilômetros navegáveis, menos da metade é utilizada para transporte. Com o desenvolvimento rodoviário, o Jacuí perdeu demanda e interesse. Da época em que a região de Cachoeira era rota de cargueiros, só sobraram lembranças como as de Laudares, um dos últimos práticos do rio - como são chamados os profissionais que indicam o caminho em cursos de navegação. Nascido quando o leito era permeado por cachoeiras e ilhas, ele cresceu ajudando barcos que encalhavam por ali. Assistiu às explosões de dinamite para remover os obstáculos à navegação, participou do boom econômico trazido pela movimentação das safras de arroz. E hoje se ressente ao ver o rio esquecido.
- Antes, para os barcos passarem, era preciso puxar com um cabo de aço. A gente ficava uma hora puxando. Depois abriram tudo, ficou bem melhor. Não sei por que parou. É triste ver o rio vazio - lamenta.
Mais do que alterar a paisagem, as construções feitas para nivelar o leito, somadas à instalação de hidrelétricas no trecho superior do rio, trouxeram conseqüências ambientais.
- A vazão se altera muito, e os peixes acabam trancados nas escadas das barragens. Muita gente coloca redes e pega os peixes em reprodução - alerta Fernando Bernál, presidente do Comitê do Baixo Jacuí.
Os efeitos são sentidos por José Darci Ferreira Vieira, 63 anos, que literalmente mora dentro do rio. Há um ano, desde a separação da mulher, dorme em uma draga de mineração de areia. Presta o serviço para compensar a falta de peixes.
- Se pudesse, comia peixe todos os dias. Uma vez, o pai dizia: "Vou buscar um peixe e já volto". Hoje, se dependesse disso, a gente morria de fome - aflige-se o morador do rio.
Mineração e desmatamento estão entre as ameaças
Foi-se embora a abundância, ficaram as histórias. Desde abril, um grupo de pesquisa coordenado pela bióloga Andréa Inês Goldschmidt, professora da Ulbra de Cachoeira do Sul, desvenda junto a pescadores como Darci a origem de nomes populares de trechos do Jacuí. Designações curiosas como o ponto quilométrico 100, conhecido como "Deixa pra Mim". Pela crença popular, seria uma frase dita por fantasmas que povoavam as águas. Para os descrentes, não passaria de uma estratégia de assalto: os ladrões ficavam no barranco, e quando os barcos passavam, lançavam a ameaça.
- Devido à curva, os barcos tinham de passar lentamente. Quem se assustava fugia, e os ladrões roubavam sacos de arroz - diz Andréa.
Para temor dos ambientalistas, os fantasmas que ameaçam o Jacuí hoje são bem mais concretos. Preocupam as minerações de areia e carvão, o deslizamento do solo, o desmatamento. Só que faltam estudos para dimensionar os problemas. Um dos motivos é o atraso nos repasses de verbas para os Comitês de Bacia, responsáveis pelo gerenciamento dos rios. Pela lei, cada comitê deve receber R$ 50 mil anuais. A maioria não recebe desde o ano passado.
- Os comitês estão parados há vários meses. Isso compromete os projetos - reclama o presidente do Comitê do Alto Jacuí, Claud Goellner.
Ivo Mello, diretor do Departamento Estadual de Recursos Hídricos da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, garante que a verba será liberada até o fim do mês. O morador do rio torce para que a promessa seja cumprida, para que o murmúrio das águas seja ouvido. Com o Jacuí, ele luta contra a correnteza do esquecimento.
Projeto tenta recuperação hidroviária
Para tentar retomar o transporte no Jacuí, o governo do Estado começou a construir um porto em Cachoeira do Sul no início da década de 90, orçado em R$ 600 milhões. O cais nunca chegou a operar e se transformou em símbolo do abandono. Segundo o diretor superintendente de Portos e Hidrovias do Estado, Roberto Falcão Laurino, a perspectiva é de que a instalação da Aracruz na cidade garanta o funcionamento do porto e a retomada do Jacuí como hidrovia. O transporte hidroviário é considerado 30% a 40% mais barato do que o rodoviário, com a vantagem de ser menos poluente.
- Nossa sociedade ainda não acordou para esse enorme bem, nossos rios são pouquíssimo utilizados. Temos potencial e não estamos usando - avalia o superintendente da Administração das Hidrovias do Sul, ligada ao Ministério dos Transportes, José Luiz Fay de Azambuja.
O presidente da Farsul, Carlos Sperotto, apóia os investimentos em hidrovias para o escoamento da safra de gaúcha, estimada em 22 milhões de toneladas.
- O investimento em hidrovias desafoga as rodovias e é altamente vantajoso. Mas é preciso reestruturar o sistema, tornando a gestão mais ágil - diz.
Taquari, o afluente gigante
Afluente do Jacuí, o Taquari se impôs ao longo do tempo como um dos mais proeminentes rios gaúchos. Iniciada pela foz, a colonização às margens do Taquari originalmente era prevista para começar pelas nascentes, segundo o pesquisador Genuíno Ferri, autor do livro A História do Rio Taquari/Antas. Em 1738, o governo havia destinado três sesmarias na região das nascentes para lusos. Como eles não apareceram para tomar posse das terras, o lugar ficou conhecido como Vila dos Ausentes, hoje São José dos Ausentes. O descaso inicial deu lugar à prosperidade econômica que marca a região cruzada pelo Taquari, que nasce como Rio das Antas, na Serra. Em conseqüência do progresso, o rio recebe uma das maiores descargas de poluentes do Estado. Como tem corredeiras, ainda resiste e consegue diluir os esgotos.
(Por Leticia Duarte, Zero Hora, 15/05/2007)