A guerra das papeleiras, apelido dado ao contencioso entre Argentina e Uruguai em razão da construção de uma fábrica de celulose às margens do rio Uruguai, parece ter contaminado o território gaúcho. Ministério Público, Fepam, ONGs e empresas não se entendem sobre a definição de áreas ao plantio de eucaliptos para alimentar os megaprojetos da Aracruz, Votorantim e Stora Enso, indústrias dispostas a desembolsar US$ 4 bilhões para produzir celulose na Metade Sul do Estado. As divergências sobre o plantio de florestas, que na semana passada resultaram nos pedidos de demissão do presidente da Fepam, Irineu Schneider, e da secretária do Meio Ambiente, Vera Callegaro, não são as únicas. Outros projetos polêmicos, principalmente na área de energia, aguardam licenças ambientais. Mas não é só no Rio Grande do Sul que os conflitos entre preservação e desenvolvimento geram controvérsias. Também o governo federal enfrenta dificuldades com o Ibama para liberar a construção de hidrelétricas no rio Madeira.
Nos últimos meses um debate ganhou destaque no País e, em especial, no Rio Grande do Sul. O meio ambiente pode ser protegido ao mesmo tempo em que os investimentos em infra-estrutura, necessários para o crescimento da economia, são realizados? Essa discussão é mantida por ambientalistas, empresários e políticos. No Estado, embora a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) não apresente esse dado oficialmente, a questão envolve mais de US$ 5 bilhões em investimentos nas áreas de silvicultura, energia e logística.
Entre os empreendimentos que aguardam solução sobre licenças ambientais, é possível citar os processos de florestamento das empresas Aracruz, Stora Enso e Votorantim (VCP) que serão responsáveis por investimentos estimados em US$ 4 bilhões. Na usina termelétrica Jacuí 1, localizada em Charqueadas, o valor total pode chegar a US$ 500 milhões. No prolongamento dos molhes de Rio Grande, os recursos necessários são estimados em R$ 600 milhões. Todos esses projetos, entre outros, estão sendo submetidos a uma longa análise quanto aos reflexos ambientais que implicarão.
Algumas dessas iniciativas são consideradas fundamentais para a economia do Estado. O prolongamento dos molhes, por exemplo, permitiria o aumento do calado do porto do Rio Grande para 60 pés. Com isso, segundo o presidente da Associação Brasileira de Terminais Portuários (ABTP), Wilen Manteli, seria possível elevar em torno de 10 milhões de toneladas ao ano a movimentação de cargas pelo porto, ou seja, um acréscimo de 50%. Manteli afirma que Rio Grande poderia atrair cargas como minérios e grãos da região Central do Brasil e até mesmo da Bolívia.
O coordenador do grupo temático de energia da Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (Fiergs), Carlos Faria, argumenta que a questão ambiental é delicada. "Os investimentos são necessários, mas não é possível que as obras sejam feitas sem levar em conta a preocupação com a natureza", enfatiza Faria. Segundo o dirigente, uma das soluções para agilizar o processo de licenciamento ambiental, sem prejudicar a análise, é aumentar o número de técnicos da Fepam.
A entidade ambiental admite que não tem pessoal suficiente para atender à demanda. Em 1999, quando a Fundação foi criada, seu plano de cargos e salários previa 655 funcionários, entre técnicos e administrativos. Hoje, a Fepam tem 223. Há pouco tempo, durante audiência sobre silvicultura realizada na Assembléia Legislativa, a promotora Ana Maria Marchezan disse que o órgão ambiental do Paraná tem mais de mil servidores para realizar o mesmo trabalho que é feito pela entidade gaúcha.
O órgão licenciador do Estado registra atualmente cerca de 12,5 mil processos em tramitação. Nos quatro primeiros meses de 2007, foram concedidas 2.361 licenças. Além de liberar licenças, os técnicos da Fepam também emitem certificados de cadastro de laboratório ambiental, declaração de isenção de licenciamento, declaração de licenciamento municipalizado, pareceres técnicos, atendem a emergências ambientais, entre outras funções. A Fepam ainda responde a pedidos do Ministério Público Estadual, Ministério Público Federal, Poder Judiciário e Polícias Civil e Federal. Muitas destas solicitações requerem inspeções e vistorias em diferentes locais do Estado.
ONG ambientalista cobra cuidados na concessão das liberações
A ONG Amigos da Terra é uma das organizações mais atuantes no Estado quando o assunto é meio ambiente. Para a vice-presidente da ONG, Kathia Vasconcellos Monteiro, não é possível fazer uma análise técnica adequada sobre impactos ambientais às pressas.
Uma das soluções apontadas pela dirigente para desafogar a Fepam, é municipalizar os licenciamentos ambientais de menor porte. Sobre a silvicultura, Kathia lembra que a licença não abrange apenas o corte de árvores, mas a plantação que precisa de pesquisas de hidrologia, de fauna, de vegetação, de clima, entre outras.
Ela destaca que estudos encaminhados apressadamente só atrasam a implantação de empreendimentos porque, posteriormente, será necessário mandar outros dados para complementar a pesquisa desenvolvida inicialmente. Além disso, uma avaliação mal-fundamentada pode implicar a análise de outros órgãos como o Ministério Público, por exemplo.
Essa preocupação das ONGs colide frontalmente com os interesses da iniciativa privada. O presidente da Associação Brasileira dos Investidores em Autoprodução de Energia Elétrica (Abiape), Mário Luiz Menel da Cunha, é um dos críticos aos entraves ambientais que impedem a exploração de fontes de energia pelos grandes consumidores (como as indústrias de maior porte). Entre essas dificuldade, Cunha aponta a paralisação de obras devido a ações ajuizadas por ONGs e o reassentamento rural. Cunha afirma que, no caso dos produtores de energia, o custo de reassentamento é 6% maior do que o pago pelo Incra.
O dilema é que o crescimento econômico exige uma produção maior de energia, preferencialmente através de fontes de menor impacto ambiental, como a eólica, cuja geração é mais cara. Esse cenário vai levar a mais um embate relativo a um patrimônio do meio ambiente nacional: a Amazônia. O presidente da Empresa de Pesquisa Energética, Maurício Tolmasquim, defende que o País precisa discutir a necessidade de avançar ou não no aproveitamento do potencial hidrelétrico da Amazônia. Tolmasquim lembra que a região Norte concentra 66% desse potencial, que, se desconsiderado, obrigaria o País a implementar usinas térmicas, mais poluentes.
Aneel defende fim das licenças em casos especiais
A questão do licenciamento ambiental chegou aos órgãos de regulação dos serviços públicos no Brasil. Recentemente, o diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Jerson Kelman, defendeu o fim do licenciamento ambiental para projetos do setor energético reconhecidos como de interesse nacional. O objetivo, conforme Kelman, é dar agilidade à aprovação dos empreendimentos que dependeriam da análise de uma comissão pública de alto nível.
O presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Maurício Tolmasquim, afirma que não há risco de faltar energia nos próximos anos no Brasil, mas reconhece que há, sim, um problema de aumento de custo da energia. Segundo Tolmasquim, as dificuldades para se conseguir licenças ambientais têm aumentado a necessidade de uso de energia produzida por termelétricas. "Quanto mais demorarmos a viabilizar os projetos hidrelétricos, mais cara ficará a energia."
O presidente da EPE destaca que, em nome do meio ambiente, o Brasil pode perder uma posição de destaque no mundo, porque 44% de energia provêm de fontes renováveis, e, aumentando a produção térmica, o País corre o risco de virar um grande vilão na emissão de CO2. Nos próximos dez anos, para atender o crescimento do consumo de energia no País, será necessário acrescentar ao sistema atual 2,8 mil MW por ano em energia nova, prevê o presidente da Associação Brasileira das Empresas Geradoras de Energia Elétrica (Abrage), Flávio Neiva. "Temos que agregar ao sistema (o equivalente a) três usinas de Itaipu", salienta. De acordo com o dirigente, a oferta de energia hidrelétrica e térmica a gás corresponderá a 80% da energia produzida no Brasil até 2017. O presidente da Abrage ressalta, no entanto, que a maior parte desses 80% ainda virá de usinas hidrelétricas e que, por isso, é necessário pensar em soluções para o que chama de "travamento da expansão".
Neiva acredita que uma das alternativas seria a de se buscar soluções para compensar os impactos socioambientais produzidos pelas usinas hidrelétricas. "Porque o crescimento do consumo é inevitável, tendo usina ou não", afirma, observando que a oferta de energia tem que se antecipar à demanda. O diretor do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura (CBIE), Adriano Pires, é cauteloso ao abordar o tema. "Não restam dúvidas de que o licenciamento ambiental é um entrave para a execução de projetos necessários para atender à demanda de energia, mas por outro lado não se pode ir para a política do libera total que provoca danos graves", enfatiza Pires.
Conforme Pires, é necessário chegar a um meio termo, com um aperfeiçoamento da legislação ambiental. "O que está acontecendo é uma política adotada pelo lado do Ministério de Meio Ambiente, um pouco xiita, e outra do lado do Ministério de Minas e Energia e da Casa Civil." Pires afirma que o Brasil, inserido no contexto mundial das preocupações com problemas ambientais, não pode ir contra a maré efetuando projetos de maiores impactos, como foi o caso da usina Balbina, no Amazonas. Para Pires, uma opção para a construção de grandes hidrelétricas naquele estado pode ser o gás natural.
O dirigente salienta que a preocupação com o aquecimento global já está presente na sociedade. Esse cenário fortalece o uso das energias alternativas, pois a variável ambiental começa a ser considerada, mesmo esses empreendimentos sendo mais caros do que os que utilizam as fontes convencionais. "Não dá para preservar o meio ambiente e expandir a produção de energia a preço baixo. O governo tem que dizer qual é a sua política", argumenta Pires. O dirigente defende uma diversificação da geração de energia no País.
Silvicultura vira discussão política e divide opiniões também na Assembleía Legislativa
O setor que concentra os debates sobre licenciamento ambiental no Estado no momento é o da silvicultura, particularmente devido aos grandes investimentos programados pela indústria de celulose. Além da questão técnica, o debate ganhou contornos políticos. As discussões se intensificaram a partir da entrega do zoneamento ambiental da silvicultura, elaborado pela Fepam, ao final do governo Germano Rigotto. O estudo descontentou a iniciativa privada, em especial por apontar várias restrições à plantação de eucaliptos na Metade Sul do Estado. O objetivo dos investidores é fazer com que o documento seja alterado dentro do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema). "Aquele trabalho apresentado foi considerado incompleto, tanto que o governo instituiu uma comissão para analisá-lo, e esse estudo é essencial para definir como seguirá o assunto zoneamento", afirma o presidente da Associação Gaúcha de Empresas Florestais (Ageflor), Roque Justen.
Conforme a líder da bancada do PSDB, deputada Zilá Breitenbach, o governo está atento aos licenciamentos ambientais realizados pela Fepam, que, segundo ela, têm cumprido o atendimento das demandas. Zilá assegura que medidas estão sendo tomadas para agilizar os processos. Essa é a preocupação do deputado Nelson Harter (PMDB) que afirma que os licenciamentos estão sendo analisados, pela Fepam, de forma restritiva, com caráter político e ideológico, com base em uma proposta que ainda não existe. "A intenção, parece, é barrar o desenvolvimento da silvicultura no Estado", enfatiza Harter.
Já o deputado Raul Pont (PT) disse não entender "essa grita toda" uma vez que a Fepam, dentro do zoneamento, disponibiliza 9 milhões de hectares. Para Pont, isso não tem lógica. "A não ser que as empresas queiram escolher as áreas", questiona. O deputado Dionilso Marcon (PT) condena a postura de setores políticos que pretendem alterar o zoneamento para atender a interesses econômicos. "O mundo inteiro está discutindo a questão ambiental. O governo do Estado não pode continuar se fazendo de surdo diante dos alertas, que vêm de todas as partes do planeta, sobre os riscos ambientais da silvicultura", aponta Marcon.
No entanto, o coordenador da Frente Parlamentar Pró-Florestamento da Assembléia Legislativa, Berfran Rosado (PPS), adverte que as excessivas restrições impostas pela Fepam, em muitos casos, inviabilizam a produção por parte de pequenos e médios produtores, dificultando a geração de emprego e renda em regiões carentes do Estado.
(Empresas e Negócios, Jornal do Comércio, 07/05/2007)