A humanidade e o planeta Terra vivenciam uma era de níveis preocupantes de aquecimento global, de destruição da natureza e de sua biodiversidade e da crescente escassez da água, além do aumento de conflitos socioambientais, políticos e religiosos. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), será possível reverter muitas das catástrofes resultantes do aquecimento do planeta, várias delas já em curso, mas também será preciso investir muito para a mudança dos padrões de desenvolvimento, consumo e economia. Alguns cientistas já prevêem futuras guerras pela água, o "ouro azul" deste século.
Uma das maiores riquezas do Brasil está no Cerrado, bioma que é o berço das águas das principais bacias hidrográficas do país e detentor de biodiversidade única no mundo, composto por um rico mosaico de savanas e florestas. Apesar de sua importância, o Cerrado vem sendo desmatado e destruído em mais de 3% ao ano. De sua área original (23% do território do Brasil), restam hoje menos de 43% de remanescentes. E embora tenha enorme diversidade de ecossistemas, de espécies e potencial infinito de plantas medicinais, pouco se sabe sobre suas riquezas biológicas.
No bioma, vivem cerca de três milhões de agricultoras(es) e agroextrativistas familiares, cujos meios de vida dependem da conservação e preservação do Cerrado. Muitas dessas comunidades tradicionais e locais encontram-se hoje sob forte ameaça promovida pelo avanço de diferentes frentes de expansão: soja, pecuária, eucalipto, cana-de-açúcar e mais recentemente os "biocombustiveis", que entre outras atividades, geram impactos ambientais, conflitos agrários, exclusão social, violação de direitos trabalhistas, degradação cultural, concentração de renda e êxodo rural. Nos últimos 40 anos, a população rural do Cerrado diminuiu de sete para 3,5 milhões.
Mas algumas destas comunidades que vivem no Cerrado se organizaram, se informaram sobre as questões socioambientais, políticas públicas e sobre o quadro atual do aquecimento global e suas conseqüências catastróficas para a humanidade e estão trabalhando para reverter o quadro negativo e incerto para nosso futuro.
O assentamento Andalucia e o Ceppec A 220 km de Campo Grande, no município de Nioaque, um grupo de pequenos produtores do assentamento Andalucia decidiu replicar seus conhecimentos (tradicionais e científicos) adquiridos há uma década, para geração de renda, melhoria da qualidade de vida e diversificação da produção no campo com a conservação e recuperação do Cerrado. A idéia foi aprovada através de um projeto com recursos de R$ 150 mil da Secretaria da Agricultura Familiar (SAF), do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).
O assentamento Andalucia já é uma referência no estado de MS em função da proposta de diversificação da agricultura familiar desenvolvimento sustentável implementado. Desde 1997, quando um grupo de famílias participou de um projeto da Ong Ecoa – Ecologia e Ação, o assentamento iniciou diversas ações para implementar um modelo de desenvolvimento sustentável para o Cerrado, voltado para assentamentos, comunidades e agricultores familiares ou agroextrativistas. Através do Centro de Produção, Pesquisa e Capacitação do Cerrado (Ceppec) os trabalhadores fortalecem a agricultura familiar para uma atuação política frente às ameaças do avanço das fronteiras agropecuárias. O centro trabalha com educação ambiental, extrativismo sustentável, Sistemas Agroflorestais (SAFs), artesanato em tecelagem e turismo rural, ações de combate à desertificação e recuperação de áreas degradadas, contra as queimadas e desmatamentos no Cerrado.
Desenvolvimento sustentável Até dezembro deste ano, o programa proposto pela Ong A Casa Verde e executado pelo Ceppec, vai oferecer assistência técnica e extensão rural especializada com ênfase no agroextrativismo sustentável, visando articulação e fortalecimento de Arranjos Produtivos Locais (APLs). O manejo e beneficiamento da "Castanha do Cerrado", conhecida como Combato ou Baru (Dipteryx alata Vogel) além de propostas de produção que garantam a permanência na terra, o uso sustentável dos recursos naturais e a geração de renda para agricultores serão colocadas em prática. "Um dos objetivos da oficina e do programa é articular com agricultores familiares a implantação do Corredor do Extrativismo no Território da Reforma, que é justamente fazer uma rede entre esses municípios onde existe uma freqüência maior do cumbaru, e então fazer seu uso, manejo e beneficiamento sustentável", afirma a Bióloga coordenadora do programa, Rosane Bastos.
Além do extrativismo sustentável e diversificação na produção rural, o programa divulgará boas práticas de manejo extrativista em um guia, realizará recuperação de áreas degradadas e ações contra a desertificação no Cerrado. O cumbaru, por exemplo, pode enriquecer a produtividade das áreas de pastagens. O gado se alimenta do fruto, que cai justamente entre agosto e setembro, época de estiagem. "Por ignorância, a maioria dos produtores corta as árvores de cumbaru", relata Rosane Bastos. Além de identidade visual (logomarca) para produtos sustentáveis, serão criados no projeto um site, jornal impresso, programas de rádio e materiais de divulgação.
Além do apoio da Secretaria da Agricultura Familiar (SAF) do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), o programa tem parcerias da Rede Cerrado, Centro de Apoio Sócio-Ambiental (CASA) e UFMS.
Lançamento Nos dias 5 e 6 de maio, acontece o lançamento e primeira oficina do "Programa de Fomento a Projetos de Assistência Técnica e Extensão Rural para Agriculturas(es) Familiares no Território da Reforma (MS)", no assentamento Andalucia em Nioaque. A proposta beneficia mais de 40 assentamentos de 11 municípios: Nioaque, Guia Lopes da Laguna, Anastácio, Jardim, Bonito, Bodoquena, Sidrolândia, Dois Irmãos do Buriti, Bela Vista, Terenos e Maracaju.
Estarão presentes no lançamento, em Nioaque, os primeiros 30 treinandos dos assentamentos Uirapuru, Guilhermina, Palmeira, Colônia Nova, Conceição, Andalucia, Boa Esperança e Padroeira do Brasil, além de representantes das quatro aldeias indígenas do município. No dia 5 de maio, a abertura da oficina conta com presença de autoridades da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT) do Ministério do Desenvolvimento Agrário, Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Nioaque, Secretaria Municipal de Desenvolvimento de Nioaque, Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural de Nioaque (CMDR), Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural (Agraer), Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Até outubro de 2007 a oficina percorrerá os 11 municípios envolvidos no programa.
Biodiesel que ameaça o Cerrado Os incentivos para plantio de culturas para produção de biocombustíveis / agrocombustiveis (biodiesel e álcool) já são uma forte ameaça ao Cerrado brasileiro e a diversas iniciativas de desenvolvimento sustentável em assentamentos de regiões onde há investimentos no plantio de cana-de-açúcar, mamona ou soja. "Com grandes investimentos através do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento, muitos trabalhadores rurais (homens, mulheres e jovens) dos assentamentos da região já estão deixando seus lotes para trabalhar no corte e plantio da cana, causando um desmonte na reforma agrária" afirma Rosane Bastos.
A realidade no assentamento Andalucia, não é diferente de muitos assentamentos e aldeias indígenas próximas a regiões que estão investindo no plantio da cana. Com uma folga na semana, homens, mulheres e jovens acordam às 3 ou 4 horas da madrugada para enfrentar de 12 a 14 horas de trabalho, durante 3 meses, para o plantio, e depois, com um novo contrato, retornam para a colheita.
Para a coordenadora do programa de assistência técnica, Rosane Bastos, outro fator agravante da produção de biocombustíveis no Cerrado é o arrrendamento dos lotes para o plantio de cana. "Esse plantio acarreta perda de biodiversidade porque é preciso desmatar, ameaça famílias que trabalham e participam de programas que promovem um desenvolvimento sustentável e limpo se beneficiando das espécies nativas locais, degrada os solos, contamina os recursos hídricos e adoece trabalhadores e vizinhança porque ficam muito mais expostas aos agrotóxicos", revela.
Segundo a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos (rede@social.org.br), "historicamente a monocultura da cana-de-açúcar tem se baseado na exploração de grandes áreas territoriais de recursos naturais e da mão de obra escrava. O monopólio da terra gera pobreza, desemprego, exclusão social e mantém o poder das oligarquias rurais. O desemprego causado pelo modelo agrícola baseado na monocultura gera o trabalho escravo e violação dos direitos humanos".
Ainda segundo dados da rede, a indústria da cana, que foi o setor do agronegócio que mais cresceu em 2005, exige que cada trabalhador corte, em média, de 12 a 15 toneladas de cana por dia. Entre janeiro de 2004 a dezembro de 2005, a pastoral dos migrantes registrou 13 mortes de trabalhadores por excesso de trabalho na região de Ribeirão Preto (SP).
A proposta diferenciada da Ong A Casa Verde, executada pelo Ceppec, pretende implementar o extrativismo sustentável nos 11 municípios do Território da Reforma, região denominada e classificada assim pelo Programa Nacional de Territórios Rurais, do governo federal. Esta é uma das poucas vezes que um programa recebe recursos para fornecer assistência técnica e extensão rural voltada para o desenvolvimento sustentável de assentamentos. "O programa todo é pioneiro em MS porque se propõe a consolidar uma rede de produtores familiares de frutos nativos como a nossa castanha do Cerrado, o cumbaru, e iniciativas coletivas dessa natureza não existem ainda", revela Rosane Bastos.
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MS Noticias, 03/05/2007)