Mata Atlântica: a hora e a vez de proteger o corredor ecológico na Bahia
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2007-05-02
Um trecho de A Carta, de Pero Vaz Caminha, deveria ser reescrito assim: "Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande; porque a estender olhos, não podíamos ver senão pastos, plantações de eucalipto e viveiros de camarão - terra que nos parecia muito explorada..."
Eis a mata atlântica do século 21, a terra "graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo", como previu o português. Nos últimos cinco séculos, a floresta tropical se tornou uma das mais ameaçadas. Os grandes arvoredos sobre a terra ainda existem, porém estão em planícies esparsas.
Está em curso uma derradeira e talvez a mais realista tentativa de conter a exploração predatória. É o projeto Corredor Central da Mata Atlântica. Abrange terras de 12,3 milhões de hectares, incluindo a vista privilegiada que Pero Vaz Caminha teve. Estende-se por mais de 1.200 quilômetros no sul da Bahia e todo o Espírito Santo. Já consumiu dez anos desde o lançamento e começa neste ano a segunda fase, mas o que se viu até agora é que a destruição das matas não parou.
Dados preliminares de um estudo da Associação Flora Brasil indicou que só no extremo sul da Bahia, numa área de 3 milhões de hectares, a perda de mata atlântica foi de quase 100 mil hectares entre 1996 e 2004. Exatamente o mesmo crescimento do plantio de eucalipto.
O desmatamento de um campo de futebol a cada 40 minutos pressionou uma mata atlântica já raleada, porém de alta diversidade. Dois estudos citados por ambientalistas exemplificam a tese. Em duas áreas, Uruçuca (BA) e Santa Lúcia (ES), um único hectare concentra mais de 440 espécies de árvores diferentes. Tal ambiente serve como berçário natural para diversos animais e vegetais.
O que sobrou da mata atlântica está espalhado em diversos fragmentos, tais como ilhas oceânicas. O oceano seriam todas as outras atividades econômicas, como os campos abertos para o gado, as plantações de eucalipto e coco, os tanques de cultivo de camarão, os resorts e hotéis na faixa de areia, as estradas que cortam a mata e atraem novas pessoas à região. O projeto quer unir o maior número possível de fragmentos por meio de corredores ecológicos. Como um jogo de liga-pontos.
Ligar pontos, as ilhas de mata atlântica que restaram, é importante por um motivo: sem isso, animais e vegetais tendem a desaparecer. Veja o exemplo do macaco-prego-do-peito-amarelo (Cebus xanthosternos), espécie exclusiva da mata atlântica. Com o desmatamento ocorrido desde os anos 1970 pela abertura da BR-101, sua morada diminuiu no sul da Bahia. Ficou vulnerável. Pior: criticamente ameaçado de extinção. Os animais adultos alcançam, em média, três quilos, peso suficiente para valer sua caça.
A flora isolada até sobrevive, mas fica sem o viço. Já os animais perdem o vigor genético, os cruzamentos passam a ser interfamiliares, a espécie enfraquece. Daí a ameaça de extinção. Antes comuns na região, o muriqui, a anta, o barbado, o tamanduá-bandeira, o tatu-canastra não são mais vistos.
Florestas replantadas
Uma floresta de eucalipto (Eucalipto sp) está entre as ameaças, mas não precisaria ser assim. Se ao lado da área plantada, uniforme e extensa, existisse um corredor ligando uma mata nativa a outra, as espécies estariam salvas. O corredor poderia ser desde uma reserva legal, uma área de preservação permanente ou uma área de replantio de espécies de mata atlântica. Na prática, as ilhas verdes continuam ilhas, isoladas.
Em 2005, a área plantada com reforma e expansão florestal de eucalipto superou os 100 mil hectares na Bahia e no Espírito Santo. Para ampliar quase o mesmo tanto de áreas destinadas à preservação, os governos levaram dez anos. No período, foram criadas 42 unidades de conservação na mata atlântica num total de 92.157 hectares protegidos. Menos de 2% do corredor são áreas preservadas.
Naquele mesmo ano, as empresas que plantam eucalipto, representadas pela Associação Brasileira de Florestas Plantadas (Abraflor), preservaram ou mantiveram intactos 904.027 hectares do corredor. "Em hipótese alguma derrubamos mata nativa. Se houve crescimento, foi em regiões degradadas, pastos abandonados", diz Cesar Augusto dos Reis, diretor.
A bem da verdade, as empresas de eucalipto só mudaram de mentalidade em anos bem recentes. "Nossos avós não foram santos, e alguns dos nossos pais também não", reconhece Reis.
A eucaliptocultura percebeu que manter a mata nativa ajuda a controlar pragas e o clima da região permanece mais estável. Os rios ficam mais fartos. A vegetação retém a água da chuva, que depois vai parar no solo. Além disso, o setor cria programas sociais para agraciar a população local, como escolas, creches e pavimentação de ruas. Por isso mantém o mínimo exigido para preservação.
No Brasil, as propriedades têm de manter 20% do terreno intacto. É a reserva legal. Se os donos de terra ligassem uma área dessa a outra de seus vizinhos, os corredores estariam prontos. Mas essa é uma visão moderna e, por falta de costume e cobrança, poucos cumprem a lei. O Instituto de Estudos Socioambientais do Sul da Bahia descobriu que, nos municípios de Una, Arataca e Ilhéus, 93% das propriedades não têm áreas averbadas. E a fiscalização ou é frágil ou não existe.
O empresário e ex-professor universitário Anderson Morais aprecia da varanda de sua confortável casa um bonito bosque. Seria um privilégio ter num quintal arbustos e arvoretas com bromélias e orquídeas não fosse um detalhe. Morais é um carcinicultor e só mantém 20% desse pedaço de restinga no terreno porque a lei manda. Todo o resto da propriedade de 91 hectares é tomado por viveiros de camarão de até 3 hectares.
Política Pública
Anderson Morais é de Santa Catarina e mora hoje em Canavieiras, sul baiano, porque o governo do Estado convidou. Pela Bahia Pesca, descobriu que havia naquela cidade 5 mil hectares da melhor terra para o cultivo do crustáceo, o Litopenaeus vannamei. À exceção de dois fazendeiros baianos que trocaram o pasto pelo camarão, todos os outros migraram nos últimos cinco anos da Região Sul. Ocupam 400 hectares e têm outros 2 mil já comprados sobre áreas de restinga e mangue.
O carcinicultor Morais, presidente da associação de produtores, tem um terreno vizinho repleto de viveiros. Em cada extremo, estão as reservas legais, uma de 13 e outra de 18 hectares. Estão separadas por várias lâminas d’água dos tanques. Um mico-leão-da-cara-dourada teria de andar muito para atravessar de uma ponta a outra. "Não sou ambientalista para saber se nessa área cabem uma, duas ou dez famílias de mico, mas o que a lei mandou fiz."
Em Caravelas, há um projeto de carcinicultura de 1.500 hectares, hoje em litígio. Num único dia consumiria 880 milhões de litros de água. Pegaria água limpa do mangue, e a devolveria com restos de produtos químicos. Isso pode ser fatal para robalos, meros, vermelhos e ciobas (os preferidos pelos pescadores), camarões sete-barbas e rosa, ostras, sururus e lambretas. Parte ou toda a vida deles depende do mangue. E os recifes de Abrolhos dependem deles para manter o equilíbrio.
"O (camarão) Vanammei já foi encontrado fora dos tanques, competindo com espécies nativas", alerta o biólogo Guilherme Dutra, da Conservação Internacional. Por isso o projeto do corredor inclui 8 milhões de hectares na faixa oceânica.
"Não se pode mais incentivar políticas públicas de forma simplificada. O cuidado deve ser redobrado ao trazer uma atividade de alto risco num ambiente sensível", diz o secretário ambiental da Bahia, Juliano Matos. O recado é claro: os carcinicultores vão ter de se readequar à nova realidade.
(Por Eduardo Nunomura, O Estado de S. Paulo, 30/04/2007)