O papel de liderança do Brasil na produção de combustíveis alternativos aos derivados do petróleo, em destaque na atualidade pelas discussões sobre mudanças climáticas e reduções de emissão de gases poluentes, é fruto de um processo histórico. Embora o uso do álcool combustível, iniciado há mais de três décadas por aqui, tenha sofrido uma crise de desabastecimento nos anos 80 e 90, as pesquisas nessa área têm continuamente avançado no país, tanto nas instituições públicas quanto na esfera privada. E ganharam um novo impulso com o sucesso dos carros bicombustíveis no mercado. A cada ano, surgem novas espécies de cana mais resistentes a pragas ou à seca e com maior produtividade de açúcar e álcool. A maior promessa para um futuro próximo é aproveitar também o bagaço resultante da moagem da cana – hoje usado para geração de energia térmica ou alimentação animal – para produzir álcool combustível, o que dobraria a produção total sem necessidade de expansão da área plantada.
Atualmente, o álcool brasileiro é produzido a partir da garapa ou caldo da cana-de-açúcar moída. O caldo é levado para dornas, grandes recipientes semelhantes aos usados para pisar uvas no processo de produção de vinhos. Nas dornas, um fermento com microorganismos, como os que uma padaria usa para fermentar o pão, transformam a sacarose, um tipo de açúcar presente no caldo de cana, em etanol, nome químico do álcool etílico. De forma mais simplificada que o petróleo, que passa por um processo de refino para obtenção de derivados como o gás, a gasolina e o diesel, o álcool é destilado para purificação, em processo que o separa da água e de outras substâncias. Agora, laboratórios públicos, como os das universidades estaduais paulistas, e privados, como o da empresa Dedini, em associação com o Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), estão avançando nas pesquisas para conversão da celulose do bagaço da cana em açúcar adicional na produção de álcool.
“O bagaço deve ser desestruturado, ou seja, submetido a um processo para descolar a lignina, um material que funciona como uma cola entre as estruturas de celulose”, explica Adilson Roberto Gonçalves, do Grupo de Conversão de Biomassa Vegetal da USP de Lorena, no interior de São Paulo. Uma vez livre da lignina, a celulose passa por um processo de hidrólise, que é a decomposição feita a partir da reação com uma substância em solução aquosa. “Essa etapa poderia ser feita com ácidos, a chamada hidrólise ácida, mas os estudos mostram que com enzimas é muito melhor”, avalia. Ao ser hidrolisada, a celulose do bagaço da cana é convertida em um outro tipo de açúcar, a glicose. “Daí pra frente, o processo é o mesmo feito para o caldo da cana: a glicose é fermentada, obtendo-se o álcool, que é destilado”, completa Gonçalves.
O primeiro estágio, que é o pré-tratamento do bagaço, ou seja, a sua desestruturação para deixar a celulose exposta à hidrólise, já está bem desenvolvido. Na hidrólise ácida, o ácido ainda precisa ser muito controlado para não levar a reações paralelas indesejáveis, mas o processo já está sendo testado e aprimorado. A Dedini já usa a hidrólise ácida na produção de cinco mil litros de etanol por dia, e prevê a comercialização da tecnologia em dois anos. Já a hidrólise enzimática, embora seja mais eficiente, é mais complexa e só deve ser comercializada em 15 ou 20 anos. “Para a ação das enzimas, ainda há problemas com a quantidade de inibidores formados”, afirma o pesquisador da USP, referindo-se a substâncias que inibem os microorganismos de metabolisarem a glicose. “Se o processo global vier a dar resultados, é possível dobrar a quantidade de etanol produzida com a mesma quantidade de cana cortada”, prevê.
Cana transgênicaO Brasil tem uma vantagem em relação a países como Estados Unidos, Canadá e Japão, que já avançaram no conhecimento da hidrólise: a nossa matéria-prima, a cana, é mais barata que a utilizada por eles. Além disso, as pesquisas em melhoramento genético realizadas nos últimos trinta anos no Brasil aumentaram em mais de 30% a produtividade média da cana-de-açúcar na relação entre quilos de açúcar e litros de álcool por tonelada de cana moída. A cada ano, as universidades federais que integram a Rede Interuniversitária para Desenvolvimento do Setor Sucroalcooleiro (Ridesa) lançam novas variedades de cana no mercado. Em 2005, a Universidade Federal Rural de Pernambuco lançou cinco e, no ano passado, a Universidade Federal de São Carlos apresentou mais quatro. Outras instituições públicas de pesquisa também têm tradição em melhoramento genético da cana, como a Embrapa, que realiza parcerias com universidades e com o CTC, e o Instituto Agronômico de Campinas (IAC), ligado à Secretaria de Agricultura de São Paulo, que promete quatro novas variedades de cana para o segundo semestre deste ano.
O estado de Alagoas, que já foi o segundo maior produtor de cana do país e chegou a quase 10% de toda a produção brasileira na safra de 2000/2001, é um dos que podem se beneficiar com as pesquisas de melhoramento genético. Além de buscar variedades que contenham uma maior concentração de açúcar ou que sejam mais resistentes a pragas, as pesquisas também estudam variedades de cana mais resistentes à seca, que atinge Alagoas de setembro a fevereiro. É lá que se localiza a Estação de Floração e Cruzamento da Serra do Ouro, ligada à universidade federal do estado, que abriga o banco de germoplasma da Ridesa. Esse banco reúne mais de 2.000 genótipos (grupos de genes) de plantas, entre variedades de cana utilizadas no Brasil, clones ou réplicas, variedades importadas de diversas regiões canavieiras do mundo e outras espécies relacionadas ao gênero Saccharum, da cana-de-açúcar. Ali se iniciam pesquisas realizadas em diversos estados, a partir do cruzamento de genótipos superiores, com características como alto índice de tonelada de cana por hectare ou alta porcentagem de sacarose no caldo da cana.
Esses estudos duram anos e passam por pelo menos três safras de plantio. “O melhoramento genético é feito por uma ‘seleção natural’ forçada, ou seja, selecionam-se os melhores indivíduos, que são replicados, e pegam-se das linhagens posteriores os melhores e assim sucessivamente, até se chegar em conjuntos de indivíduos muito semelhantes e de qualidades melhoradas em relação ao indivíduo original”, diz Gonçalves, da USP. Na escolha de um genótipo, os pesquisadores esperam que sua superioridade inicial permaneça constante durante todo esse ciclo de cruzamentos e clonagens. Outra técnica que tem sido estudada tanto em instituições públicas, como a Embrapa, quanto privadas, como o CTC ou a empresa CanaVialis, é a transgenia, em que genes de um indivíduo ou espécie com melhores condições são transplantados para outro indivíduo ou espécie que se quer melhorar.
“As principais etapas para a transformação de um organismo são a identificação do gene, o seu isolamento ou extração, a sua clonagem ou multiplicação e a sua introdução no organismo receptor”, explica Márcio Gomes Squilassi, pesquisador em melhoramento de plantas da Embrapa Tabuleiros Costeiros, em Rio Largo (SE). A Unidade de Execução de Pesquisa e Desenvolvimento de Rio Largo coordena o projeto “Produção Sustentável da Cultura de Cana-de-Açúcar para Bionergia em Regiões Tradicionais e de Expansão no Norte e Nordeste do Brasil”, envolvendo uma rede de pesquisa com dez unidades da Embrapa e outras instituições públicas e privadas. Ali, o uso da transgenia tem como objetivo, entre outros, aumentar a resistência da cana-de-açúcar à seca e a uma praga conhecida como broca gigante. Segundo Squilassi, uma das principais contestações contra os transgênicos é o risco que está relacionado com a transferência do gene transgênico para espécies não transgênicas próximas, o que se torna mais grave no caso de espécies de fecundação cruzada como o milho, o algodão e a cana-de-açúcar.
Riscos“Considere um agricultor que cultive uma lavoura de não transgênicos ao lado de uma de transgênicos. Grande parte do pólen contendo o gene exógeno transgênico cairá na lavoura não transgênica, resultando em grãos geneticamente modificados, pois o pólen era oriundo de material modificado. Daí a importância de se delimitar áreas para cultivo de transgênicos isoladas das áreas de cultivo de não transgênicos, permitindo assim o controle do material colhido”, ressalta o pesquisador da Embrapa. Gonçalves, da USP, reforça a necessidade desse controle: “Sempre que uma espécie adentra um habitat, pode causar distúrbios. No caso da cana, que não é natural do Brasil, veio da Índia, a própria monocultura já é um distúrbio. Uma regra fundamental é não cultivar transgênicos onde há alguma espécie nativa semelhante. Se for uma cultura controlada, é ainda melhor do que manter terra nua ou pasto com braquiária para alimentação do gado”.
Para Squilassi, da Embrapa, o controle não deve se restringir ao isolamento no cultivo. “Deve-se, a partir desta etapa, ter uma rede de comercialização distinta para os dois materiais o transgênico e o não transgênico, para que não haja mistura”, defende. Gonçalves, da USP, observa que não há, até o momento, relatos de problemas que possam ter sido causados pelo uso de cana transgênica, mas lembra que é necessário constante monitoramento e avaliação de riscos. “Pesquisas muito sérias são feitas com esse objetivo, mas o impulso econômico deve ser controlado, para evitar catástrofes ambientais”, conclui. No que diz respeito à produção de álcool, os pesquisadores consideram que não há risco, caso seja feito o isolamento da cultura. Mas enquanto as pesquisas se aprimoram para que o bagaço da cana também seja voltado para esse fim, os riscos, no caso da cana transgênica, ainda são desconhecidos quando o bagaço é direcionado para alimentação animal.
(Por Rodrigo Cunha,
revista Comciência, abril 2007)