As propostas de aumento da produção de álcool combustível, oriundo da cana-de-açúcar, têm gerado expectativas de muitos negócios e mais empregos. Em especial a chegada de novas usinas em determinadas localidades é motivo para a imprensa começar a falar em aumento do mercado de trabalho. A União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Unica), entidade que reúne os produtores de álcool e açúcar prevê um investimento de cerca de US$ 15 bilhões para a criação de 89 novas usinas até 2012, principalmente em regiões do interior do Mato Grosso do Sul, no Triângulo Mineiro, sul de Goiás, e norte do Paraná. No entanto, alguns especialistas revelam sua preocupação com as desigualdades que marcam esse mercado de trabalho e sinalizam que o aumento de empregos direciona-se, especialmente, aos profissionais com maior formação e melhor remuneração.
De acordo com Isaías de Carvalho Macedo, pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Energéticas da Unicamp (Nipe) e assessor da presidência da Unica há uma redução clara no número de empregos por tonelada de produto, mas como a produção aumentou muito, no número global os empregos também aumentaram. Ele afirma isso baseando-se nos dados da Pesquisa Nacional de Amostras de Domicílio (PNAD) que avalia os empregos a partir de taxas do trabalho formal e informal. “Segundo a PNAD, teríamos em 2005, 982 mil empregos diretos formais no setor, sendo que cinco anos antes, esse número era de 782 mil aproximadamente. Então há uma evolução de emprego”, diz Macedo.
Apesar disso, o assessor da Unica avalia que está ocorrendo, de fato, uma mudança no perfil de trabalho neste setor, já que está aumentando o número de empregos para trabalhadores com maior formação e melhor remuneração, ou seja, no setor industrial, em áreas técnicas, administrativas, de pesquisa e desenvolvimento. Ele destaca, nesse sentido, uma grande diminuição de empregos no corte manual de cana em função da mecanização do trabalho agrícola na região centro sul, especialmente em São Paulo, o principal produtor de cana do país. “Paralelamente, o aumento de trabalho que ocorre no campo também é aquele que exige formação, como por exemplo, para tratoristas ou pessoal de manutenção de equipamentos, mas não para o corte manual da cana”, diz ele.
Com relação à qualificação e quantidade de profissionais que vêm sendo exigidos para esse setor, Macedo avalia que a formação está adequada, mas que o número desses trabalhadores é menor do que a demanda e, em sua opinião, não há quantidade suficiente de cursos e profissionais para a expansão prevista para o setor. “Hoje a usina que quer criar uma filial em outra região, não encontra mão-de-obra no local. O que tem sido feito é dobrar o número de trabalhadores em controle de processos e instrumentação por um período, para que uma parte permaneça na usina, e a outra seja direcionada para a filial. Esse não é o caso dos engenheiros de formação superior, mas é o que ocorre com o pessoal técnico, que necessita de um treinamento para trabalhar numa usina nova. A área de produção responde por um milhão de empregos diretos”, explica Macedo.
Já o setor de pesquisa e desenvolvimento abarca aproximadamente dois mil profissionais e exige alta qualificação. Macedo explica que nessa área ocorreram distintas fases. No início do Proálcool, na década de 70, quando a Copersucar criou a área industrial nos centros de tecnologia, enviou dez engenheiros para serem formados nas Ilhas Maurício, que tinham uma excelente condição de produção de açúcar. “Ao retornar, esse pessoal foi trabalhar no centro de tecnologia junto com pessoas que tinham o pós-doutorado. Esse desenvolvimento foi estimulado e sustentado por universidades como Unicamp e Esalq”, explica Macedo. Hoje o pessoal mais qualificado vem das próprias universidades brasileiras.
No entanto, esse quadro positivo de formação, qualificação e aumento de oportunidades de trabalho em novas usinas não encontra paralelo quando se trata dos cortadores de cana, que até pouco tempo representavam a maior parte da mão-de-obra das usinas. Essa redução, na opinião de Macedo, não é somente devido à mecanização, mas em parte à diminuição das áreas de queimada das plantações. “Não é possível cortar a cana manualmente se ela não for queimada antes. Apenas o corte mecanizado pode fazer isso”, diz ele.
Essa discussão não é recente. Há 15 anos havia, em São Paulo, uma pressão dos ambientalistas para reduzir a queimada de cana. No entanto, grupos ligados aos trabalhadores afirmavam a impossibilidade de diminuir esse procedimento. Para os produtores, por outro lado, mecanizar poderia significar reduzir custos. Algumas usinas em Ribeirão Preto (interior de São Paulo) têm 85% de sua produção mecanizada.
Macedo ainda explica que naquele período foi feito um cronograma para redução da queima de cana no estado de São Paulo até 2020. Tecnicamente é o que está sendo aplicado hoje e que prevê a eliminação total da queima nas áreas mecanizadas. Mas isso foi feito pensando num ritmo de mecanização que permitisse uma redução gradual da mão-de-obra, e a capacitação desse pessoal para trabalhar com as máquinas. “Essa idéia estava muito clara há 15 anos para várias comissões de trabalho no estado. Falava-se na readequação da mão-de-obra. Isso em parte foi verdade e as próprias usinas selecionavam cortadores que se distinguiam para receber treinamento para lidar com as máquinas. Mas é claro que ainda assim não havia trabalho para todos. Em São Paulo este problema não foi tão sentido, porque a mão-de-obra vem de outras regiões, então o desemprego também aparece em outros lugares”, diz Macedo, que ainda lembra que a principal dificuldade para qualificar esse setor reside na exigência da fixação desses trabalhadores em novas regiões. Ele revela que é difícil avaliar essa situação mas, apesar de não existirem hoje programas governamentais de readequação de mão-de-obra, há boas expectativas na medida em que as usinas forem sendo alocadas em novas regiões e não mais apenas em São Paulo.
Questões ambientais e sociaisFrancisco José da Costa Alves, economista do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de São Carlos, por exemplo, chama atenção para a necessidade de participação da sociedade civil nesse “momento chave” para a indústria sucro-alcooleira. “Se a sociedade não se organizar agora para reivindicar soluções, os problemas ambientais e sociais desse setor vão se aprofundar”, argumenta o economista.
Alves vem acompanhando a evolução da indústria da cana no Brasil e prevê um futuro sombrio para os trabalhadores se diretrizes firmes não forem tomadas agora. Segundo ele, se esse setor continuar como está, poderá haver um aumento brutal da migração de trabalhadores das regiões Norte e Nordeste para as novas lavouras. Sem condições adequadas de trabalho, a conseqüência será o aumento das mortes no campo durante o corte. Apenas nas últimas duas safras já morreram 20 trabalhadores por excesso de trabalho.
O corte manual de cana tem baixíssima remuneração e paga por produtividade. Em Piracicaba, cidade do interior de São Paulo, o cortador de cana recebe cerca de R$ 3,00 por tonelada cortada, sendo que cada trabalhador colhe, em média, oito toneladas por dia. É comum sofrerem de cãibra, tontura, lesões por esforço repetitivo e acidentes com o facão. Para conseguir mais dinheiro em condições tão adversas, muitos ultrapassam seus limites físicos.
Essa é uma das faces obscuras do álcool brasileiro que o lado glamoroso da "potência mundial do etanol" tem ocultado e que tende a crescer com o aumento da produção. Boa parte da moderna agroindústria canavieira ainda guarda resquícios escravocratas, o que já tem chamado a atenção internacional. Em uma reportagem de dezembro do ano passado, a rede alemã de comunicação Deutsche Welle comparou o tratamento dado aos trabalhadores com as senzalas dos antigos engenhos de cana-de-açúcar. A rede ressaltou o contraste da "produção com tecnologia de primeiro mundo, com condições de trabalho consideradas, em parte, desumanas”. A baixa remuneração, aliada às condições desumanas de trabalho na lavoura, criou uma versão atualizada dos engenhos coloniais, símbolo do sistema produtivo do Ciclo da Cana e que se baseava no trabalho escravo.
Uma explicação para as condições precárias de trabalho das usinas do século XXI vem do período do regime militar, revela Alves. "A indústria sucro-alcooleira de hoje consolidou-se durante a ditadura militar e foi baseada na mão-de-obra barata, proporcionada pela ausência de organização dos trabalhadores, devido à repressão", explica o pesquisador. A realidade dos cortadores ainda carrega essas heranças. A sociedade civil brasileira precisa decidir que tipo de mão-de-obra vai querer ver crescer no país e se o etanol será um combustível para o crescimento ou para o aprofundamento dos problemas do país.
(Por Marta Kanashiro e Fabio Reynol,
revista Comciência, abril 2007)