A produção em escala industrial de etanol pelo Brasil levanta questões sobre os riscos que a ampliação da plantação de cana pode trazer para outras culturas agrícolas, para a pecuária e mesmo para importantes biomas brasileiros como floresta amazônica, o cerrado e o pantanal matrogrossense. O que vai acontecer com esses biomas se a previsão do etanol virar uma commodity se realizar?
Alguns efeitos já podem ser sentidos em partes do território brasileiro. A região do pantanal, por exemplo, localizada nos estados do Mato Grosso (MT) e Mato Grosso do Sul (MS), foi palco de uma batalha, em 2005, entre o governo do MS e o Fórum Permanente de Defesa do Pantanal, que integra 15 organizações ambientalistas. A proposta de derrubada da Lei nº.1581, de 1982, que não permitia a instalação de usinas de álcool na região, provocou insatisfação entre os ambientalistas que questionaram os danos ambientais e sociais que a instalação de usinas traria. As usinas e as plantações seriam instaladas nas partes mais altas, ou seja, as áreas de planalto do pantanal. Nesse caso, o impacto ambiental causado, entre outros, pela geração do vinhoto, seria muito significativo, pois as partes altas são as áreas de nascentes, trazendo sérias conseqüências para a bacia do rio Paraguai, um dos rios que formam a bacia do Prata (rios Paraná, Paraguai e Uruguai). O vinhoto é um sub-produto do processo de obtenção de etanol a partir da cana que, lançado na natureza, prejudica lençóis freáticos. O vinhoto prolifera microorganismos que consomem oxigênio.
Edvaldo César Moretti, professor de geografia da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), entende que a proposta da Assembléia Legislativa do MS de derrubar a lei de 1982, mostra bem o pensamento da sociedade dita moderna. Segundo ele, o que interessa é a plantação de cana para geração de energia para suprir a necessidade do mercado global e não o pantanal. "Em que sentido o pantanal interessa ao mercado global?", questiona Moretti. "O local só tem um significado se tiver um valor com relevância planetária”.
Nesse jogo de relações de poder é possível identificar pontos de vista muito diferentes. Há quem acredite que seja possível alcançar um grande número de vantagens com o aumento da produção de etanol sem, necessariamente, trazer prejuízos aos biomas. De acordo com José Nilton de Souza Vieira, diretor-substituto do Departamento de Cana-de-açúcar e Agroenergia do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (Mapa), o setor sucro-alcooleiro é o mais dinâmico do agronegócio e da própria economia brasileira. “O crescimento do consumo doméstico, motivado pela frota de veículos flex-fuel, combinado com a eventual abertura de mercados para a exportação, deve contribuir para a intensificação dos investimentos”, analisa.
No entanto, para estabelecer essa dinâmica, Vieira destaca que a ocupação de novas áreas é praticamente certa. Segundo ele, há uma grande disponibilidade de terras ociosas (áreas de lavouras e de pastagens, atualmente desocupadas ou subutilizadas), que podem permitir o aumento da produção de cana, da produção de oleaginosas (para o biodiesel) e da produção de alimentos, sem a necessidade de desmatamentos, seja na Amazônia ou nas regiões de cerrado e pantanal. “Há, porém, o desafio de intensificar as fiscalizações e o trabalho de conscientização, a fim de que os produtores invistam na melhoria das técnicas de manejo, visando ao aumento da produtividade das terras já desmatadas, em vez de optarem pela comodidade da prática da agricultura e da pecuária extensiva, desmatando novas áreas”.
Lia Osório Machado, professora de geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é cética. Ela afirma que os problemas decorrentes da produção de cana, já conhecidos, se multiplicarão, trazendo uma série de efeitos com a expansão da monocultura e suas seqüelas. Ela destaca que a produção de etanol pode estimular novas fronteiras agrícolas no país pela combinação de três fatores: a disponibilidade de terras (como a terra roxa no centro-oeste e Amazônia); os incentivos governamentais; e o estímulo a uma agroindústria voltada para o mercado externo. Nada de novo na história da expansão das fronteiras agrícolas no Brasil. Recentemente (década de 1990), a expansão da soja nas áreas de cerrado e floresta amazônica comprometeu parcelas importantes desses biomas visando a exportação dos grãos para outros países. No entanto, Osório destaca que agora estamos diante de uma outra realidade que comporta uma importante mudança de escala, “pois não se trata apenas de soja, e sim de combustível, que necessariamente deverá ser produzido em escala industrial e com uso intensivo de recursos naturais, compatível com a demanda crescente dos mercados internos e externos”, analisa. “Despovoamento do campo, decadência de pequenas cidades que dependem de serviços e comércio para a população local, esgotamento da fertilidade do solo com dependência crescente de insumos químicos; desaparecimento ou redução do cultivo de alimentos, com conseqüente aumento de preço no mercado interno”, é o cenário descrito por Lia Machado.
Vieira, do Mapa, garante, porém, que “os riscos para a Amazônia são mínimos”, e afirma, que “o clima da Amazônia (muito quente e úmido), é impróprio para o cultivo da cana-de-açúcar, que tende a crescer muito e concentrar pouco açúcar, o que encarece significativamente o processo industrial”.
Para Saulo Rodrigues Filho, pesquisador do Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS) da Universidade de Brasília (UnB), pode-se esperar um fenômeno que seria uma espécie de reação em cadeia, ou seja, uma tendência de expansão da cana-de-açúcar no Sudeste, acompanhada da expansão da produção de grãos no Centro-Oeste e da pecuária no Norte. “Sem dúvida, com o aumento da demanda por biocombustíveis, entre os quais o etanol se destaca, a expansão da fronteira agrícola no Brasil deverá sofrer forte aceleração, implicando em maiores taxas de conversão tanto de cerrado como da floresta amazônica em áreas de produção agrícola”.
Mais tecnologia por metro quadradoHá ainda quem aposte no desenvolvimento de novas tecnologias capazes de dobrar a produção de etanol na mesma área plantada. Isso acabaria com as especulações de novas fronteiras agrícolas se abrirem no território brasileiro. Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura e um dos idealizadores da Comissão Interamericana do Etanol, em entrevista, destaca que esse avanço só será possível através dos investimentos privados em pesquisa e desenvolvimento tecnológico para tornar a cana-de-açúcar mais competitiva.
Para discutir o desenvolvimento tecnológico da produção do etanol, no final de 2006, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), realizou o terceiro workshop do projeto Diretrizes de Políticas Públicas para a Agroindústria do Estado de São Paulo, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). O evento discutiu o desenvolvimento da hidrólise, uma tecnologia que utiliza o bagaço da cana para produzir mais etanol. Ela pode ser de duas formas: a hidrólise ácida ou hidrólise enzimática. A primeira já está funcionando em um projeto piloto do grupo Dedini, um dos maiores grupos mundiais de equipamentos para o setor sucro-alcooleiro. A hidrólise enzimática em curto prazo não pode atingir o estágio comercial.
Antonio Maria Francisco Luiz José Bonomi, da Divisão de Química do IPT, explica que o Brasil aproveita hoje apenas um terço da cana (a sacarose) para produzir álcool. Outro terço, o bagaço, é queimado de forma pouco eficiente para gerar energia para a planta de álcool. E o último terço (a palha) é, na sua maior parte, queimada ainda no campo para facilitar a colheita. “Com a mecanização da colheita da cana será possível não queimar a palha e transportar pelo menos 50% para a usina, uma parte deve ficar para proteger, reciclar nutrientes no solo”, explica Bonomi. “O excedente, bagaço mais a palha, é material lignocelulósico que através do processo de hidrólise pode ser transformado em álcool”, explica Bonomi.
José Nilton Vieira, do Mapa, acrescenta que além dos processos de hidrólise há ainda duas outras formas de aumentar a produção sem necessariamente aumentar a área plantada. A primeira é por meio do melhoramento genético, permitindo variedades mais produtivas, o que possibilitaria um aumento da produtividade agrícola e da concentração de açúcar na cana. “Variedades transgênicas estão sendo pesquisadas, mas ainda não há autorização legal para o seu cultivo”, informa. A segunda é a melhoria das técnicas de manejo, envolvendo a adequada escolha de variedades – variedades apropriadas para cada tipo de solo e clima. No entanto, Vieira destaca que embora permita significativo aumento de produtividade, essa solução apresenta elevada demanda por investimentos em infra-estrutura e exige o uso racional da água, especialmente em regiões em que há escassez.
Lia Machado, da UFRJ, destaca que alguns “especialistas da área de energia, informam que o Brasil ainda não tem condições de competir com os países centrais no desenvolvimento de tecnologias associadas a essa agroindústria, o que pode acentuar a tendência atual de concentrar pesquisas e desenvolvimento de C&T nos países centrais e “exportar” para outros países o uso especulativo de suas florestas, águas e terras agriculturáveis, e abrir novas “fronteiras” de investimento para o stateless money (dinheiro sem pátria) do mercado financeiro mundial, além dos especuladores que manipulam com desenvoltura as bolsas de commodities internacionais”.
A aposta, feita por alguns especialistas, de que para atender a crescente demanda por etanol deve-se investir em tecnologia pode não ser “a vencedora”. Se atentarmos para o que o IBGE nos mostra com as pesquisas, veremos que o aumento da plantação de cana no Brasil se deu pelo aumento da área plantada e não pelo uso de tecnologias. Talvez, seja mais vantajoso economicamente para os empresários o mecanismo da substituição, como já vem ocorrendo no Mato Grosso, onde pecuaristas estão abandonando a criação bovina em favor da produção de álcool.
(Por André Gardini,
revista Comciência, abril 2007)