IntroduçãoA cultura da cana-de-açúcar é a terceira mais importante na agricultura brasileira em área colhida, ficando atrás da soja e do milho. Em termos de valor bruto da produção agrícola, no entanto, a cana-de-açúcar salta para o segundo lugar, superando a cultura do milho.
Nos últimos anos houve forte expansão da área e da produção da cana-de-açúcar e, em menor intensidade, do rendimento médio da mesma. O comportamento bastante favorável dos mercados nacional e internacional do açúcar e do álcool combustível influenciaram positivamente o desempenho da cultura da cana-de-açúcar no período recente. A conquista e ampliação de mercados internacionais para o açúcar, a recuperação dos preços internacionais dessa commodity, o aumento das exportações de álcool combustível após a assinatura do Protocolo de Quioto e, mais recentemente, o grande aumento das vendas de automóveis com motores flex no mercado nacional são fatores que certamente contribuíram para a forte expansão da atividade.
Quando se observam as diferenças regionais, é possível perceber que, em termos de participação na área total colhida, o Sudeste continua sendo a maior região produtora, tendo, inclusive, aumentado sua participação no período recente. Como é sabido, o maior estado produtor de cana-de-açúcar está localizado na região Sudeste: trata-se de São Paulo (1). A região Nordeste, segunda maior produtora nacional, vem perdendo espaço para outras regiões no tocante à expansão da cultura da cana-de-açúcar. Além do próprio Sudeste, as regiões Sul e Centro-Oeste também apresentaram crescimento em suas participações na área com cana-de-açúcar.
Conseqüentemente, as regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste ampliaram suas participações na produção, ao passo que o Nordeste registrou perda relevante e o Norte manteve sua participação em níveis pouco significativos (ao redor de 0,2% - 0,3%). Na evolução do rendimento médio da cultura, vale destacar que as regiões Norte e Nordeste estão bem abaixo da média nacional (2). As demais regiões apresentaram valores sistematicamente superiores à média nacional, sendo que a performance mais estável foi registrada para o Sudeste.
Nos anos mais recentes, particularmente 2004 e 2005, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, captou um contingente de cerca de 500 mil empregados ocupados na cultura da cana-de-açúcar no Brasil. Segundo a definição do IBGE, empregado é a pessoa que trabalha para um empregador (pessoa física ou jurídica), geralmente obrigando-se ao cumprimento de uma jornada de trabalho e recebendo em contrapartida uma remuneração em dinheiro, mercadorias, produtos ou benefícios (moradia, alimentação, roupas etc). Este conjunto de trabalhadores, os empregados, é que forma o chamado mercado de trabalho assalariado nessa atividade. Em função do tipo de inserção, os empregados podem ser permanentes ou temporários.
Qualidade do empregoO objetivo do presente artigo é trazer algumas informações sobre a qualidade do emprego nas atividades agrícolas relacionadas com a cana-de-açúcar (emprego agrícola direto), de modo a subsidiar as políticas públicas voltadas para um setor da economia que apresentou e, ao que tudo indica, continuará apresentando forte tendência de expansão no futuro próximo em função dos promissores mercados (nacional e internacional) para o açúcar e para o álcool combustível.
As análises sobre o mercado de trabalho assalariado na cana-de-açúcar mostram que se trata de um mercado com características bastante complexas. Se, por um lado, são facilmente perceptíveis os avanços na qualidade do emprego, inclusive pela pressão do movimento sindical organizado e pela fiscalização por parte dos órgãos públicos competentes, por outro, assiste-se ainda a fatos relacionados com a exploração e com o desrespeito aos direitos trabalhistas mais elementares dos empregados.
Entre os principais avanços na qualidade do emprego, podem ser citados a redução do trabalho infantil, o aumento do nível de formalidade, os ganhos reais de salário, o aumento de alguns benefícios recebidos e o aumento da escolaridade dos empregados. De acordo com os dados da Pnad, em 1992, o uso de trabalho infantil chegava a 14,7% e 10,8%, respectivamente, do total de empregados temporários rurais e urbanos ocupados na cultura da cana-de-açúcar. Em 2005, essas participações caíram para 3,3% e 0,5%, respectivamente, e, para os empregados permanentes era ausente o uso de trabalho infantil.
Na questão da formalidade, chama a atenção o elevado percentual de empregados com carteira assinada, o que gera importantes benefícios para os mesmos em termos de contribuição previdenciária e acesso à aposentadoria. Em 2005, 89,6% dos empregados permanentes com residência urbana tinham registro em carteira (contra 75,3%, em 1992). Para os permanentes rurais, temporários urbanos e temporários rurais, os valores foram 68,4%, 73,9% e 47,1%, respectivamente (contra 60,3%, 47,9% e 19,3%, em 1992). Certamente, a cultura da cana-de-açúcar é uma das atividades com maior nível de formalidade do emprego, em todas as categorias de empregados (permanentes e temporários, urbanos e rurais), pois, segundo dados da Pnad, 32,1%, em média, dos empregados na agricultura brasileira tinham carteira assinada em 2005.
Quanto aos ganhos reais de salário, verificou-se que no período 1992-2005 eles foram de 34,5% para os empregados permanentes com residência urbana, de 17,6% para os permanentes rurais, de 47,6% para os temporários urbanos e de 37,2% para os temporários rurais. Ainda de acordo com a Pnad, em 2005, o salário médio mensal de um empregado permanente com residência urbana e ocupado na cana-de-açúcar era de R$ 537,24. Para o permanente rural era de R$ 346,95, ao passo que para os temporários eram de R$ 436,60 e R$ 309,76, respectivamente, para os urbanos e os rurais.
Nos benefícios recebidos vale destacar o crescimento dos auxílios transporte e alimentação para todas as categorias, além do auxílio moradia para os residentes rurais e do auxílio saúde para os empregados permanentes com residência urbana. Mesmo com um progresso menor do que o verificado para os demais indicadores, pode-se notar que melhorou o nível educacional dos empregados. Em 2005, segundo dados da Pnad, 14,2% dos empregados permanentes com residência urbana tinham escolaridade acima dos oito anos de estudo (contra apenas 1,5%, em 1992). Para os permanentes rurais, temporários urbanos e temporários rurais, os valores foram 5,0%, 9,7% e 7,4%, respectivamente (contra apenas 1,9%, 0,2% e 0,3%, em 1992).
Apesar dos indiscutíveis avanços na qualidade do emprego na atividade, como evidenciado pelos indicadores acima tratados, é sabido que ainda permanecem condições adversas de trabalho, principalmente para os empregados temporários ocupados na colheita manual da cana-de-açúcar. Lamentavelmente, tem havido mortes de trabalhadores nos canaviais, particularmente no estado de São Paulo (3).
“As mortes, a maioria por parada cardiorrespiratória, mostraram a face sombria do modelo de produção que sustenta o setor sucroalcooleiro. Pagos por produtividade, os cortadores de cana se submetem a uma extensa rotina de trabalho para ganhar mais do que o piso salarial, que fica em torno de R$ 300,00 a R$ 400,00, para uma média de seis toneladas de cana cortadas por dia. Para ganhar mais, os trabalhadores cortam de 10 a 12 toneladas de cana por dia” (4).
Esta ampliação perversa do sobretrabalho na colheita da cana já era apontada em estudos dos anos 90, quando se observava que “há uma clara relação inversa entre a queda do valor pago pela cana e a quantidade de cana cortada e amontoada por trabalhador por dia. Isso reflete, de um lado, a tentativa dos canavieiros de compensarem o seu ganho diário intensificando a jornada de trabalho. De outro, mostra que as alterações no processo de corte da cana-de-açúcar introduzidos na região trouxe efetivamente os benefícios esperados pelos usineiros. Além da polêmica mudança no sistema de corte de 5 para 7 ruas, proibido pelo Acordo de Guariba, em 1984, mas que gradativamente foi sendo imposto de novo na região, os usineiros de Ribeirão Preto conseguiram implantar ao longo dos anos 80 sistemas informatizados que permitem o controle individualizado dos trabalhadores, facilitando a seleção dos melhores, seja em termos de produção, seja em termos de submissão e docilidade” (5).
As informações que cobrem uma longa série histórica sobre a remuneração do corte manual de cana no estado de São Paulo, mostram com clareza o problema abordado. “Depois de um patamar em torno de quase R$ 10 (por dia), entre o final da década de 1970 e o início da de 1980, tal remuneração tem-se situado em torno de R$ 7 na atualidade, mas isto graças à enorme elevação do rendimento médio do corte em toneladas por dia, o qual passou de 3, em 1969, para 8 toneladas, em 2005. Estima-se que na atual safra (2006/07) a média atingirá dez toneladas” (6).
Infelizmente, também há constatações de exploração do trabalho na colheita manual da cana-de-açúcar nas novas áreas de expansão da cultura. “Na nova fronteira de expansão da cana-de-açúcar, o sotaque de índios guarani mistura-se ao dos trabalhadores nordestinos. Em franco desenvolvimento no segmento sucro-alcooleiro, mas sem tradição e com escassez de mão-de-obra especializada, Mato Grosso do Sul assiste à explosão de projetos de construção de novas usinas de açúcar e álcool no país. Serão pelo menos 15 até 2010, prevê o governo, o que tende a elevar a área de cana no estado de 150 mil para 600 mil hectares. O boom é impulsionado por forasteiros e produtores locais decepcionados com os mercados de grãos e carne bovina. E já atrai a atenção da Procuradoria do Trabalho do Estado, que passou a receber denúncias de abuso do trabalho indígena e de migrantes nas lavouras. Com o aquecimento dos negócios, nos canaviais de Naviraí índios e nordestinos já são quase artigo de luxo.
“Em uma das visitas aos canaviais de Naviraí, a reportagem do jornal Valor Econômico conversou com um cortador nordestino que teve seu dedo arrancado pelo podão (facão) naquele mesmo dia. O trabalhador, que preferiu não se identificar, havia sido medicado, mas voltou para o canavial para esperar o ônibus que o levaria até sua casa. Ele iria ficar por lá ainda por cerca de seis horas. O cortador pernambucano Francisco Carlos da Silva, 34 anos, diz que constantemente tem cãibras na boca do estômago, mas não pára. Ele revela que ganha por volume cortado e que não pode parar. Seu salário é de R$ 700 mensais – boa parte destinado à família, em Trindade. As usinas ao oeste do Mato Grosso do Sul foram alvo de denúncias nos últimos meses por condições insalubres de trabalho, alojamentos precários e maus tratos com mão-de-obra indígena e nordestina, segundo a Procuradoria do Trabalho do Estado” (7).
Obviamente, tais constatações colocam em dúvida a sustentabilidade social da expansão da atividade. Com jornadas de trabalho tão extensas, de modo a obter-se melhores salários, fica comprometida a busca pela redução de acidentes de trabalho e continua pairando no horizonte a triste perspectiva de mais mortes de trabalhadores. Por isso, as negociações entre empresários e sindicatos e entre empresários e trabalhadores deveria ter como um dos focos principais a questão da remuneração do corte manual da cana-de-açúcar, pois é evidente o baixíssimo valor pago por tonelada de cana cortada, que só declinou em valores reais nos últimos anos.
Considerações finaisO presente artigo analisou a qualidade do emprego dentro do mercado de trabalho assalariado na cultura da cana-de-açúcar no Brasil. Os resultados obtidos mostraram importantes avanços na qualidade do emprego para todas as categorias de empregados, principalmente nos indicadores ligados à redução do trabalho infantil, ao aumento do nível de formalidade, aos ganhos reais de salário, ao aumento de alguns benefícios e ao aumento da escolaridade dos empregados.
No entanto, apesar dos indiscutíveis avanços, constatou-se problemas muito relevantes que ainda merecem um melhor equacionamento, destacadamente aqueles relacionados com a exploração e com o desrespeito aos direitos trabalhistas mais elementares dos empregados, verificados tanto nas áreas tradicionais quanto nas áreas de expansão da atividade canavieira.
* As principais idéias deste texto estão baseadas no seguinte artigo: BALSADI, O.V. Mercado de trabalho assalariado na cultura da cana-de-açúcar no Brasil no período 1992-2004. Informações Econômicas, São Paulo, v.37, n.2, fev.2007, p.38-54.
Notas1 Em 2004, respondeu por 57,7% da quantidade total produzida. Somente para se ter idéia da diferença de participação do Estado de São Paulo em relação aos demais, o segundo colocado, em 2004, foi o Paraná, cuja participação na quantidade total de cana-de-açúcar produzida no Brasil foi de 7,9%, segundo dados da Produção Agrícola Municipal (PAM) do IBGE.
2 Em 2004, os rendimentos observados nas duas regiões foram de, respectivamente, 65,2 e 57,6 toneladas por hectare, que corresponderam a 88,4% e 78,1% da média brasileira, que foi de 73,7 toneladas por hectare.
3 Ver a respeito as reportagens publicadas no jornal O Estado de São Paulo: TOMAZELA, J.M. Canavial faz 13a vítima em Guariba. O Estado de São Paulo, São Paulo, 25/11/2005, p:B7.; VIALLI, A. O maior desafio está no campo social. O Estado de São Paulo, São Paulo, 08/11/2005, p:H7, Especial Proálcool 30 anos. Estas reportagens abordam a morte de 13 trabalhadores nos canaviais paulistas nos anos de 2004 e 2005, com suspeitas de que as mesmas ocorreram por excesso de esforço na atividade de corte manual da cana-de-açúcar. Em uma das reportagens é dito que um dos trabalhadores, vindo de Minas Gerais e com 47 anos de idade, morreu após ter cortado 25 toneladas de cana em um dia.
4 VIALLI, A. O maior desafio está no campo social. O Estado de São Paulo, São Paulo, 08/11/2005, p:H7, Especial Proálcool 30 anos.
5 GRAZIANO DA SILVA, J. De bóias-frias a empregados rurais as greves dos canavieiros paulistas de Guariba e de Leme. Alagoas, EDUFAL, 1997.
6 RAMOS, P. A queima de cana: uma prática indefensável. Jornal de Piracicaba, Piracicaba, 15/08/2006, p:A3.
7 SCARAMUZZO, M. Sotaque guarani na nova fronteira da cana. Valor Econômico, São Paulo, 18/10/2006.
(Por Otavio Valentim Balsadi,
revista Comciência, abril 2007)
Otavio Valentim Balsadi é engenheiro Agrônomo, Doutor, Pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). E-mail: otavio.balsadi@embrapa.br.