A agroindústria canavieira é a mais antiga atividade econômica não-extrativista do Brasil. Seu produto principal, de meados do século XVI (1540/50) ao final do século XX (1979/80), foi o açúcar. O álcool carburante tomou esse lugar por pouco tempo. Depois da reversão da tendência altista dos preços internacionais do petróleo a partir de 1983/4 e depois de alguns anos de dificuldades, o açúcar retomou sua primazia na década de 1990, com a grande ajuda das exportações. Recentemente, contudo, seja em função do novo patamar dos preços do petróleo, seja em função, principalmente, do problema ambiental, tem sido muito comentada a possibilidade de que o Brasil possa ser um grande exportador de etanol de cana. Convém lembrar que os EUA tornaram-se rapidamente o maior produtor mundial de álcool, mas utiliza o milho para obtê-lo. Nosso presidente e o daquele país tem conversado muito sobre isso, restando saber se eles conversam sobre como são produzidos tais matérias-primas e derivados.
Deixando essa dúvida, o milho e os americanos para outra oportunidade, cabe aqui lembrar que nossa cana, nosso etanol e nosso açúcar têm sido produzidos de forma bastante problemática, para dizer o mínimo. E a expansão dessas produções, seja em São Paulo, seja no Brasil, podem não contribuir para que venhamos a ter, mais do que crescimento, desenvolvimento, principalmente se quisermos que ele seja sustentável, em termos ambientais e sociais, já que elas são e serão economicamente viáveis para alguns.
Isso porque há aspectos negativos na estrutura de produção de nossa agroindústria canavieira, herdados do passado, os quais necessitam ser modificados, seja no que já se tem de produção, seja naquela que já está sendo ampliada, seja na que virá nos próximos anos. Tais aspectos negativos concentram-se em três dimensões: a da concentração fundiária, a dos aspectos relacionados ao uso de força-de-trabalho e a dos impactos ambientais.
Quanto à concentração fundiária é amplamente sabido que as usinas e destilarias são empreendimentos empresariais que congregam tanto a produção de cana como sua transformação (que na teoria econômica recebe o nome de “integração vertical”), sendo que em São Paulo ela atinge a média anual de 75% da cana moída. Outra faceta é que uma boa parte da produção ocorre com base na prática do arrendamento de áreas por parte dos proprietários e/ou produtores maiores e/ou capitalizados/tecnificados. Parece não ser necessário apontar que tais características implicam a exclusão e redução de fornecedores/produtores autônomos, o que perpetua a apropriação concentrada da renda gerada pelo agronegócio da cana. É urgente estimular formas mais democráticas de expansão, evitando-se a aquisição de terras pelas usinas/destilarias e seus proprietários, assim como estimulando-se alternativas que viabilizem uma exploração (lucrativa) a ser feita pelos proprietários/produtores menores e/ou menos capitalizados. A situação atual quanto à concentração fundiária vinculada à lavoura canavieira poderá ser devidamente conhecida apenas depois de concluído o censo agropecuário que está para ser realizado este ano, já que o último (e não completo) foi feito em 1995/6.
Quanto ao uso da força-de-trabalho tem-se que a maior parte dele concentra-se na lavoura canavieira e se trata de uma ocupação temporária, viabilizada por um deslocamento de brasileiros entre e dentro das regiões, geralmente desprovidos de outras oportunidades de ganho perene no ano. Estima-se que em São Paulo o número de migrantes, vindos principalmente do Nordeste para cortar cana, chegue a cento e vinte mil. Infelizmente, ainda tem sido muito comum o desrespeito à legislação nesse procedimento, ocorrendo uma intermediação (terceirização) espúria que foi revigorada nos últimos anos, o que é reconhecido pelos empresários mais conscientes. Ela já se faz presente também nos estados que vêm aumentando suas áreas de cana, como o Mato Grosso do Sul, Goiás etc. A UNICA (União da Agroindústria Canavieira do Centro/Sul) recomenda aos usineiros e fornecedores que respeitem a legislação e que não usem a terceirização na contratação de trabalhadores, mas reconhece que nem sempre isso é acatado. O problema é saber em que medida isso ocorre, já que o ilegal e o espúrio não fazem parte das estatísticas, sejam ou não oficiais.
Dado o pífio crescimento da economia brasileira nas últimas décadas, especialmente no âmbito das atividades urbano-industriais, tem sido reforçada a característica de pagamento por produção, o que se constitui em uma super-exploração da força-de-trabalho utilizada na colheita de cana queimada, não se podendo descartar a possibilidade de que isso foi a causa de recentes mortes em canaviais paulistas, o que tem demandado uma ação de prevenção e de fiscalização por parte dos Ministérios Público e do Trabalho, inclusive no tocante às condições dos alojamentos. É comum a alegação de que, principalmente em São Paulo, a cana é a lavoura que paga os mais altos salários, bem acima do salário mínimo. A tabela que acompanha ese artigo mostra que isso se deve à elevação do rendimento (t/homem/dia) do corte, tendo ocorrido uma perda real da remuneração diária, a qual chegou a quase dez reais no início da década de 1980 e atualmente situa-se em torno de sete reais, em valores de julho de 1994. É sabido que trabalhadores que não atingem um mínimo de rendimento do corte não são contratados e há quem diga que esse mínimo já está na casa das dez toneladas diárias.
Os impactos ambientais constituem-se em uma dimensão mais complexa e estão relacionados tanto com a lavoura como com o seu processamento. Depois de muitos anos, a prática de ferti-irrigação tem sido contestada, e a Cetesb teve que regulamentá-la. A proibição de lançamento de vinhaça nas águas superficiais foi o fator que levou àquela prática, mas ela tem provocado contaminação de lençóis freáticos. É necessário impedir que isso ocorra nas áreas de expansão, cabendo conservar seus mananciais. Nas áreas de ocupação antiga cabe recuperá-los, implantando-se matas ciliares como forma de impedir o assoreamento dos cursos de água. Por sua vez, a recente pressão para mudanças na legislação concernente ao porcentual de reservas de matas nas propriedades pode vir a ser outro problema.
Finalmente, não mais se justifica a queima prévia de cana para a colheita. Isso se constitui em um desperdício de material energético, assim como tem impacto urbano negativo em termos principalmente de saúde humana devido ao agravamento da poluição urbana justamente no período do inverno, em que ocorrem frequentes inversões térmicas. Isso já está devidamente comprovado em pesquisas feitas por médicos pneumologistas. Portanto, é indefensável continuar queimando cana e está certo o governador de São Paulo, Sr. José Serra, ao tomar a iniciativa de propor a antecipação do prazo para o fim dessa prática, já que a lei em vigor a permite até 2031 nas áreas não mecanizáveis e até 2021 nas áreas mecanizáveis do território paulista.
É necessário evitar que tais impactos ambientais negativos sejam expandidos caso a cana venha a ser produzida e se usinas e destilarias forem instaladas em áreas próximas a espaços ambientais que, a muito custo, têm sido até hoje preservados, como o Pantanal.
A lavoura canavieira atualmente é a terceira cultura em termos de área colhida no Brasil, a segunda atividade econômica em São Paulo em termos de área cultivada (atrás apenas da pecuária de corte) e a primeira atividade quanto ao valor da produção do agronegócio paulista. Ocupa muita terra e muita mão-de-obra. Isso indica que dificilmente seus problemas encontrarão solução “interna”, ou seja, no seu próprio âmbito. Esse é o caso do elo entre as duas últimas dimensões: o possível fim da utilização de trabalhadores temporários no corte de cana queimada implica a busca de alternativas de ocupação ou mesmo de sobrevivência para aqueles que disso dependem, total ou parcialmente.
Assim, resta concluir que, por conta desses (e de outros) aspectos, dificilmente pode-se fugir da necessidade de regulação de nossa agroindústria canavieira, queiram ou não os liberais, sejam autênticos ou ideológicos, sejam os de ocasião. Tal regulação pode ser feita tanto pelo governo federal como pelos governos locais (estaduais e municipais). Argumentar que isso pode representar uma volta ao passado, quando existia o IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool) em nada vai ajudar.
(Por Pedro Ramos,
revista Comciência, abril 2007)
Pedro Ramos é economista, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de São Paulo.