Com os resultados alarmantes dos dois últimos relatórios do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês), é inevitável pensar as causas das recentes mudanças climáticas que atingem o planeta. O trabalho internacional de pesquisa aponta, com 90% de probabilidade, que o homem é o grande responsável pela emissão de gases de efeito estufa (GEEs) na atmosfera. O que fazer, então, para reverter esse quadro?
A resposta para essa questão recolocou no centro do debate um tema que andava meio esquecido: o Protocolo de Kyoto. Esse mecanismo é um tratado entre países da comunidade internacional que visa restringir a emissão de GEEs de acordo com metas pré-estabelecidas, vigentes a partir de 2005 até 2012. Mas, após sua implementação, qual tem sido o papel do protocolo e qual o seu nível de eficiência hoje?
Nesta entrevista à Carta Maior, o professor Wagner da Costa Ribeiro, do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), desenha um panorama sobre o Protocolo de Kyoto. Para ele, o tratado consegue propor metas, mesmo sem a adesão da maior potência mundial, os Estados Unidos. “Nós não precisamos dos Estados Unidos, e isso é muito importante, porque muda de certa forma as relações de poder”, afirma.
Especialista em relações internacionais sobre questões de meio ambiente, Ribeiro é autor de vários livros, entre eles “A ordem ambiental internacional e Relações Internacionais: cenários para o século XXI”. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Carta Maior – De forma panorâmica, na sua opinião, o que dá certo e o que falha nesse mecanismo?
Wagner da Costa Ribeiro – O que dá certo é que, apesar da ausência da principal potência militar, econômica e emissora do gás estufa, o mundo está sensibilizado e acordado para tomar uma atitude. Nós não precisamos dessa principal potência, e isso é muito importante, porque muda de certa forma as relações de poder. Mas o que está de errado e o que há de mais frágil no Protocolo de Kyoto, é uma questão técnica: a dificuldade e a demora para que o processo [de projetos de MDL] seja reconhecido como retentor de gases de efeito estufa. É uma questão difícil, que passa por uma série de protocolos, de resultados de pareceres. Uma empresa, que quer fazer um projeto de MDL, tem que enviar para a autoridade nacional competente, que envia para o Secretariado Geral, que vai mandar para um grupo de trabalho, que vai analisar e vai dizer se é ou não é e estabelecer quantidades. É um processo moroso, porque não há ainda uma metodologia clara de retenção de gases de efeito estufa. Há diversas formas de reter esses gases e por isso a questão demora.
CM – Mas as metas ainda não foram atingidas.
WCR – Eu tenho uma impressão diferente. Ele entrou em vigência em fevereiro de 2005, portanto quase três anos do que deveria estar em vigência. O protocolo passou a vigorar apesar da recusa do principal país do mundo em emissão de gás estufa: os Estados Unidos da América não aderiu ao acordo. Penso que, diferente do que se diz, o Protocolo de Kyoto tem representado uma contribuição na perspectiva não da eficácia da redução – sabemos que, hoje, os níveis que ele vai alcançar de redução são insuficientes –, mas ele é eficaz na medida em que, apesar da ausência do principal país em emissão, ele já consegue ter resultados concretos. Para se ter uma idéia, há uma ordem de 180 projetos na Índia, do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, o MDL, e, no Brasil, já temos 85 projetos em andamento. Esses são os dois principais países em captação de projetos para retenção de gás de efeito estufa (GEE). É pouco diante do que é preciso alcançar ainda, mas como marco e referência de um apoio internacional que envolve questões tão difíceis, eu penso que, ao contrário do que todo mundo diz, o Protocolo de Kyoto é um sucesso.
CM – No plano do debate de idéias ele ganhou a batalha?
WCR – Exatamente. Já que estamos num processo de negociação, ele avança em relação à Conferência do Clima, que simplesmente apontava que precisávamos fazer algo a partir de 2000. Mas o Protocolo foi além: ele já criou metas, ele definiu um princípio bastante importante, que é o da responsabilidade comum, porém diferenciada. E ele flexibilizou [essas metas]: a proposta brasileira era de que apenas os países do anexo I (países desenvolvidos e com responsabilidade de atingirem metas de redução de GEE de acordo com Kyoto) deveriam receber investimentos para retenção do gás estufa. Essa proposta não foi vencedora. Há também um fluxo de negócios envolvendo países do anexo I e que, de certa forma, gostemos ou não, há uma comercialização e uma mercantilização desses chamados “negócios cinzas”.
CM – Mas alguns países que aderiram ao Protocolo tiveram seus níveis de emissão superados e não reduzidos. Como lidar com o não alcance dessas metas?
WCR – Entre 2008 e 2012, está estabelecido que eles devem chegar nos níveis. O fato de eles não terem alcançado os níveis agora não os fazem passíveis de nenhuma punição. Agora, se você me perguntar se vai ocorrer algo com relação a esses países, eu diria que muito possivelmente “não”. Então, você vai me dizer: “O protocolo não tem eficácia porque não constrange os países”. Na verdade, há um constrangimento da opinião pública internacional. O Protocolo, se ele for bem encaminhado pelos setores pró-redução de gás estufa dentro de cada país, pode se tornar uma bandeira de luta política e de metas de ações sociais. Eu não tenho dúvida que será com esse tipo de engajamento que nós teremos a implementação do Protocolo, inclusive, estabelecendo metas mais rigorosas. Claro que a Espanha e os EUA aumentaram; são países importantes e isso não deveria ter ocorrido, mas há outros países também importantes seguindo outra linha. O caso da União Européia, por exemplo, é ilustrativo, porque eles criaram restrições ainda maiores do que as do Protocolo de Kyoto. E o Reino Unido, em especial, já está anunciado a redução de 20%, ou seja, o dobro do que deveria reduzir em média antes mesmo de 2008. Então, eu acredito que há sinais [positivos]. Na política externa entre os Estados Unidos e o Reino Unido, a única grande questão em que eles divergem é justamente o Protocolo de Kyoto. É o único momento em que não há alinhamento. Me parece que a União Européia vai ter uma liderança importante no meio ambiente para induzir ações mais objetivas.
CM – Há ainda cientistas que contestem o fato de emissão de gases ser responsável pelas mudança climáticas?
WCR – Não. O documento do IPCC mostrou os 90% de possibilidade de confirmação da nossa participação. Acho que ninguém mais questiona [a responsabilidade humana], como se questionava na Rio 92. A questão que está posta é a seguinte: nós estamos num processo de escala natural mais amplo, no qual estamos só acelerando o processo ou somos os responsáveis pelo começo do aquecimento? Agora, ninguém mais duvida da participação humana. Se estamos aquecendo, se não vamos poder controlar processos naturais em larga escala, nós vamos ter que fazer a nossa parte, segundo o princípio da precaução. Já que não vamos conseguir reverter o período de aquecimento do planeta, eu controlo a minha parte que é a emissão de gases de efeito estufa.
CM – O Protocolo de Kyoto, para ter efeito, faz com que os países tenham a suas condições de produção e consumo alteradas. Na sua opinião, essas mudanças são possíveis?
WCR – Esse debate estava muito presente nas reuniões preparatórias da Rio 92 e, na própria conferência do Rio, havia uma discussão expressiva e importante para as mudanças de padrões de consumo e de estilo de vida. Hoje, a infância de uma criança de 10 anos de idade é muito diferente da sua ou da minha. Ela fica à tarde toda na frente de um computador, gastando energia, pagando uma taxa de serviço e todos os outros custos. Essa é uma mudança no estilo de vida muito maior do que se discutia na Rio-92. Essa criança é muito mais consumista de energia do que há algumas décadas. Isso me deixa preocupado. Não é uma questão dos EUA, é uma questão de estilo de vida que está sendo difundido em larga escala. A China quer entrar nessa corrida, a Índia também... Nós não temos fôlego, não temos recursos naturais efetivamente para suprir isso. Eu diria que essa mudança de modo de vida vai se impor de duas formas: ou pela escassez e conflito de recursos naturais, ou por algum tipo de regulação de mercado, do qual eu sou descrente. Os minerais, principalmente os não renováveis, serão mais raros e mais valorizados, e nessa expectativa a exclusão, nesse universo, será cada vez mais recorrente a exclusão digital. Porém, eu sou mais otimista e penso que podemos equilibrar melhor os acessos e esses recursos, desde que pessoas que tenham muitos privilégios, que são poucas, passem a ser coagidas para abrirem mão de um estilo de vida perdulário, especialmente de recursos naturais e de energia. Existem possibilidades e alternativas, mas tudo isso passa pela política, e nela nem sempre as discussões são fáceis.
CM – Como as questões ambientais vêm sendo apreendidas pelos governos? E como elas são incorporadas nas suas agendas para a formulação de suas políticas?
WCR – Após 15 anos da Rio92, qual a grande contribuição que ela trouxe em escala mundial? Ela institucionalizou as questões ambientais. Claro que há críticas, porque representa burocracia, mas, por outro lado, permite a elaboração de políticas públicas. Quando um país entra num tratado multilateral, ele passa a ter que indicar uma autoridade competente sobre o assunto e que enviar relatórios periódicos. Isso tudo mobiliza, em cada país, técnicos, pesquisadores, cientistas que se dedicam a levantar essas informações e torná-las disponíveis ao público. No caso brasileiro, a ministra Marina Silva já anunciou uma mobilização para criar uma política do país para mitigação dos problemas do aquecimento global. Eu não tenho dúvida de que a questão ambiental deixou de ser um modismo e uma coisa romântica do ambientalismo que queria proteger o mico-leão dourado. Ela virou negócio e hoje ela cresceu bastante. O meio ambiente chegou ao segmento empresarial: se for analisar, por exemplo, o que a Fiesp tem discutido e a sua preocupação em relação a temas ambientais, percebe-se que é um segmento que está muito inquieto com essa questão e para eles são alimentos vitais para a manutenção da atividade deles. O setor agrícola é um pouco mais refratário a qualquer tipo de discussão ambiental, mas eu diria que ele é refratário a qualquer tipo de discussão que não seja a própria produção deles, mas em outros segmentos eu vejo a questão ambiental chegando com muita força.
CM – Como países como o Brasil, que são importantes protagonistas em temas ambientais, mas que não tem metas de redução de GEE, devem se encaixar no Protocolo de Kyoto?
WCR – Por enquanto, o Brasil, até 2012, não precisa reduzir as emissões. É uma situação bastante confortável. Há, atualmente, uma discussão com três posições para o regime pós-2012. Primeira: uma revisão das metas de Quioto, incluindo os países que não estão no anexo I. Teria, então, que analisar o Brasil nessa situação. Uma segunda possibilidade: faz-se um novo documento até que forme uma organização mundial do clima, como a OMC, o que eu acho um pouco provável. E a terceira possibilidade, que é a que o Brasil tem insistido, que é o princípio da responsabilidade comum, porém diferenciada, porque o argumento que se emprega é o seguinte: as emissões que foram geradas no passado ainda são as que são responsáveis pelo aquecimento atual. E, na verdade, o Brasil quer protelar um pouco a necessidade de redução. Digamos que o Brasil tenha que reduzir. Qual a nossa principal fonte de emissão? O desmatamento da Amazônia. Se nós compararmos o nível per capita de combustível fóssil do Brasil com os EUA é brincadeira. Temos uma vantagem comparativa absurdamente positiva para nós. O nosso poder de geração de energia, com todas as polêmicas que possam ter, é baseado na hidroeletricidade, temos alternativa do combustível da cana-de-açúcar para automóveis, temos um país com uma insolação fantástica. Então, temos muita capacidade de manobra. Mesmo que o Brasil tenha que fazer sua lição de casa – e tem feito, nos últimos dois anos tivemos uma redução bastante expressiva do desmatamento da Amazônia, da ordem de 50%. Se isso ocorrer nós vamos fazer a lição de casa sem alterar muito a situação nos grandes centros urbanos, por exemplo, o que é até ruim. Mesmo que tenhamos que reduzir, se fizermos o controle do desmatamento a tarefa vai ficar bastante facilitada.
CM – Como o Brasil tem lidado com as questões ambientais? Ele tem avançado e está preparado para barganhar os seus interesses nessa área?
WCR – A nossa Constituição de 1988 é bastante avançada do ponto de vista das regulamentações ambientais no país. O Brasil já era uma liderança naquele momento pré- Rio 92 e o que me parece mais interessante é que a realização da conferência no Rio de Janeiro mobilizou muito a sociedade civil naquela ocasião. Houve também uma mobilização interessante dos setores da sociedade civil ambientalista com outros setores, como o sindicalista. Essa articulação também resultou em coisas interessantes. Viemos ter, depois, a Lei de Crimes Ambientais, Política Nacional de Recursos Hídricos, o Programa Pró-Bio, que é o programa pró-biodiversidade. Há, portanto, uma série de programas para mostrar o quanto o país tem investido. Temos muito problemas também: a Amazônia é o principal, a poluição do ar em metrópoles, não temos uma política nacional de resíduos sólidos, mas conseguimos avançar em diversos aspectos, e isso me deixa bastante feliz.
CM – O segmento da pesquisa e da academia também reflete o avanço do país na área ambiental?
WCR – Reflete. O próprio programa que coordeno, o Procam (Programa de Pós-Graduação de Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo) é um indicador. Ele mostra uma mudança de perfil. No início vinham técnicos nos procurar que já atuavam na área ambiental, e hoje temos alunos recém graduados de diversas áreas: direito, economia, agronomia, jornalismo, interessados em fazer mestrado e doutorado na ciência ambiental. Isso mostra uma mudança do foco de interesse e me parece que vai trazer conseqüências a médio e longo prazo. No caso do seqüenciamento genético, que é um setor de ponta e tem absoluta relação com a questão ambiental, fez-se o seqüenciamento da praga da amarelinha. Isso colocou o Brasil num nível de excelência e de capacidade de disputar e ganhar concorrências internacionais. No caso de mudanças climáticas globais, nós temos lideranças importantes científicas que vem participado do IPCC com muito destaque. Poderia lembra no passado Pedro Dias, e atualmente Carlos Nobre, Magda Lombardo, Thelma Kruger, Paula Artaxo, enfim, a lista não é pequena. Então, nós temos conseguido uma expressão razoável. Mas, por outro lado, nós temos problemas: não temos base de dados para medir as mudanças climáticas. Mas apesar dos problemas, conseguimos emplacar algumas discussões e influenciar na escala internacional. Não como poderia se tivesse um pouco mais de apoio à pesquisa, mais organização na coleta e na disponibilizarão dessas informações, a contribuição seria muito maior e qualitativa.
(Por Natália Suzuki,
Agência Carta Maior, 17/04/2007)