Que o semi-árido nordestino será uma das regiões brasileiras mais afetadas pelas mudanças climáticas globais, os cientistas vêm alertando há meses. A área, já carente em recursos hídricos, econômicos e sociais, parece ameaçada por mais uma má notícia: os estudos revelam que, no processo de aquecimento global, não só choverá menos e as secas serão mais intensas, mas há outro perigo - alguns indicadores apontam que o processo de aquecimento global também significará uma redução no nível de água dos reservatórios subterrâneos.
O mesmo pode acontecer na África Ocidental, região igualmente pobre em recursos hídricos e castigada pela aridez. O alerta foi feito ontem pelo pesquisador José A. Marengo, do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC), órgão ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, durante exposição feita por pesquisadores do IPCC, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU, realizado ontem, no auditório do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo.
A redução de água nos aquíferos nordestinos pode chegar a 70% até o ano 2050, disse Marengo. "O projeto de transposição do rio São Francisco com certeza não incluiu os cenários sobre mudanças climáticas", prosseguiu. Nem, provavelmente, nada que esteja no PAC, o Plano de Aceleração do Crescimento. "Esperamos que, daqui pra frente, estas variáveis entrem nos planos das grandes obras", continuou. "O clima dos anos 60 não é mais o clima que temos hoje."
Na outra ponta, com as geleiras derretendo e o nível do mar subindo, Marengo lembrou as populações vulneráveis nas áreas costeiras e pinçou outro dado: 60% das 37 megacidades no mundo estão em áreas a cerca de 100 quilômetros do mar. No Brasil, repetiu o pesquisador Carlos Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e membro do IPCC, estudos de vulnerabilidade são pífios. Já no Canadá, a Confederation Bridge foi construída um metro acima do nível normal, considerando o aumento dos mares, avisou Antonio da Rocha Magalhães, do Banco Mundial, que participa dos estudos de avaliação das práticas adaptativas ao aquecimento global.
A Amazônia segue objeto de polêmicas. Os cenários do IPCC indicam que a floresta corre sérios riscos de virar savana na parte oriental, mesmo sem considerar incêndios e desmatamento. "Em quatro capítulos diferentes do relatório, a savanização da Amazônia é colocada", disse Philip Fearnside, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), e também do IPCC. O geógrafo Aziz Ab'Saber, que tem outro entendimento sobre o efeito do aquecimento global na Amazônia, e estava na platéia, reagiu à ausência de mapas que mostrem as correntes marítimas e o efeito da ação do homem sobre a floresta. Nobre adiantou que um estudo do Inpe recém-concluído (e que não entrou na revisão de publicações feita pelo Grupo de Trabalho 2 do IPCC, cujo sumário para tomadores de decisão foi divulgado na sexta-feira, em Bruxelas) e que levou em conta 16 modelos climáticos, aponta para um "resultado robusto de savana empobrecida no centro e leste da Amazônia."
A platéia de pesquisadores e interessados em aquecimento global escutou outras notícias sombrias. Os cientistas já observaram alterações na distribuição de vetores (mosquitos e carrapatos) na Escandinávia e regiões montanhosas da Europa Central. As previsões são de aumento da desnutrição, da incidência de doenças, da mortalidade. A continuar como está, a ocorrência de doenças cardiorrespiratórias aumentará nas cidades poluídas, a malária será mais forte na África, a região do Sudeste brasileiro pode sofrer mais com a dengue. "A capacidade de se adaptar aos efeitos das mudanças climáticas precisa ser melhorada em todo o mundo", disse o médico Ulisses Confalonieri, da Fiocruz, e coordenador do capítulo de saúde humana nos trabalhos do IPCC.
País não faz pesquisa, diz Nobre"Não somos atores importantes nos estudos de mudanças climáticas." A frase de Carlos Nobre se refere ao baixo protagonismo da América Latina quando o assunto é o monitoramento físico e biológico das mudanças climáticas. Nobre apontava para um mapa-múndi e uma tabela com o número de estudos feitos nos últimos anos. Fora algo no Chile e Equador, o continente latinoamericano passa batido. "O Brasil é zero. Somos um enorme vazio de monitoramento do que está acontecendo", registrou. "A pergunta relevante é: se não há estudos, como podemos ter conclusões?", alertou.
A base dos estudos do relatório do grupo de trabalho 2 do IPCC vem da ciência européia. Dos 29 mil dados de observações, 28 mil são europeus. Não foi assim no grupo de trabalho 1, que veio a público em fevereiro, e onde mais de 50% dos estudos eram de norte-americanos. "Foi uma decisão de George Bush-pai, que queria mais precisão nos cenários das mudanças climáticas, disse. "Destinou-se mais verbas para pesquisa básica e menos para os impactos."
Segundo Nobre, talvez em cinco nos o Brasil consiga ter um bom mapa de vulnerabilidades às mudanças climáticas. Há luz no fim do túnel, acredita: "O governo federal está criando uma rede de pesquisa nacional para melhorar os modelos." (DC)
(Por Danilea Chiaretti,
Valor, 13/04/20007)