O segundo relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC, na sigla em inglês), divulgado há poucos dias, em Bruxelas, não é muito diferente do primeiro, que foi apresentado em fevereiro. As terríveis previsões sobre secas, inundações, tempestades, doenças, extinção de espécies, aumento do nível do mar e desgraças afins estão todas lá. Esse novo relatório, no entanto, trouxe uma importante novidade ao tocar diretamente em uma questão crucial: quem é que vai pagar a conta do caos climático?
A resposta, dada pelo próprio IPCC, é tristemente óbvia. Quem mais vai sofrer com o aquecimento global são os pobres, sejam eles países ou pessoas. Enquanto a América do Norte, a Europa, o Japão e a Austrália podem se valer de suas riquezas e infra-estrutura para, desde já, mitigar os efeitos das mudanças climáticas em curso, o resto do mundo não tem para onde correr e parece aguardar o acirramento do caos climático como um condenado à espera do verdugo.
O pior cenário, outra lamentável obviedade, é aguardado para a África. Segundo o IPCC, daqui a somente 15 anos o número de seres humanos vivendo em estado de penúria crônica de água no continente pode atingir a estarrecedora marca de 250 milhões. Nossos irmãos africanos, maiores vítimas do capitalismo global e já parcialmente dizimados pela fome, verão a falta d’água reduzir ainda mais suas áreas cultiváveis e fazer entrar em colapso sua agricultura. As populações costeiras mais pobres, que em sua maioria vivem da pesca, provavelmente terão que se deslocar com o aumento do nível do mar. Imaginem como será esse cenário climático associado ao atual quadro de miséria, conflitos armados e avanço descontrolado da epidemia da Aids que caracteriza os mais pobres países africanos...
Pobre África. E pobre Ásia. Segundo o IPCC, um quinto das geleiras do Himalaia estará derretido até 2030, fato que, após um primeiro momento de “grandes inundações”, vai gerar escassez na oferta de água em vários países do continente e deixar em estado de penúria crônica cerca de um bilhão de pessoas. Os países do sudeste asiático, sobretudo os insulares, também deverão padecer com o aumento do nível do mar e da ocorrência de chuvas torrenciais e tempestades. Alguns estão ameaçados até mesmo de desaparecer do mapa.
O relatório pouco fala da América Latina, apesar da grande presença de brasileiros entre os dois mil cientistas que compõem o IPCC. Em todo caso, o cardápio de desgraças climáticas para o continente é conhecido. Ele inclui a perda de boa parte das espécies existentes nas florestas tropicais, a desertificação de áreas hoje consideradas semi-áridas e a inundação de partes do território desde a Argentina até El Salvador e México, entre outras coisas.
Existem outros problemas que afetarão de forma mais grave os mais pobres (países e pessoas) desses continentes, como a expansão de doenças (malária à frente, mas também cólera, dengue e outras doenças associadas à falta de saneamento básico) e o aumento da pobreza e da favelização causadas pelos deslocamentos populacionais e pela concentração excessiva de gente nas grandes cidades.
A questão é ideológica
A constatação, feita pelo IPCC, de que os pobres é que vão pagar a conta do caos climático pode não ser exatamente surpreendente, mas serve para chamar a atenção para a dimensão ideológica do problema, que muitas vezes é ignorada ou até mesmo deliberadamente deixada de lado pelos cada vez mais numerosos lobos em pele de ambientalista.
Quando se chega a esse ponto, não basta dizer que o capitalismo é o culpado histórico pelas mazelas ambientais. Não basta denunciar que os países que são os principais culpados pelo aquecimento global serão (in)justamente os que menos vão sofrer suas conseqüências. É preciso ter visão e coragem para dizer que, se o atual modelo de produção e consumo capitalistas não for profundamente alterado, vamos todos para o saco, ricos e pobres (esses primeiro, claro).
Essa alteração passa pela completa revisão do conceito de crescimento econômico que a humanidade, em sua fase capitalista, adotou como verdade divina. Está provado que a idéia segundo a qual a humanidade pode crescer indefinidamente a partir da “transformação da natureza” vai nos levar ao suicídio global em pouco tempo. Quando Ford disse que “vamos produzir veículos cada vez maiores, cada vez mais rápidos e cada vez mais possantes”, ele exprimia a euforia dos primeiros tempos da produção em série capitalista, mas também nos dava a senha para a morte ambiental. É preciso interromper o quanto antes essa corrida ao abismo.
A Europa parece mais sensível à ameaça do caos climático nos últimos anos, apesar de os maiores países ainda não cogitarem uma profunda mudança no sistema econômico. O alto grau de conscientização dos europeus em relação às questões ambientais nutre a esperança de que, de baixo para cima, a pressão social acabe por consolidar a mudança de postura dos governantes. A face ambiental do esgotamento do capitalismo é muito mais vista e discutida na Europa do que, por exemplo, nos Estados Unidos, apesar dos Al Gores da vida.
Mesmo lá na terra do Tio Sam, as coisas, ainda que lentamente, parecem começar a mudar. Nos últimos meses, a maior parte da sociedade vem deixando o presidente George W. Bush (e seus aliados entrincheirados nos setores de petróleo, construção civil e indústria bélica) cada vez mais isolados em relação às questões ambientais. No início de abril, a Suprema Corte dos EUA decidiu, contra a vontade do governo, que a agência federal de proteção ambiental (EPA, na sigla em inglês) tem autoridade para regular e tentar reduzir as emissões de dióxido de carbono provenientes dos automóveis. Parece um início de mudança, que pode ganhar corpo em caso de vitória do Partido Democrata nas próximas eleições presidenciais.
Decrescimento
E os maiores países ditos em desenvolvimento, o que fazem? A China anunciou há pouco tempo que vai “crescer menos” para, entre outras coisas, reduzir sua contribuição ao aquecimento global. A proposta é vaga e mais parece uma artimanha da máquina de propaganda do governo chinês. O governo da Índia, apesar das suas crescentes emissões de gases provocadores do efeito estufa, não tem um programa concreto de combate ao aquecimento global. A África do Sul e a Indonésia limitaram-se a assinar o Protocolo de Quioto e aguardam sentadas a “transferência de tecnologia”, que nunca chega, para se preparar para as mudanças climáticas.
Nesse cenário, o Brasil cumpre papel fundamental, pois o rumo que seguirá o país nos próximos anos deverá ajudar a definir o encaminhamento global do combate às mudanças climáticas. A posição do governo brasileiro é dúbia. De um lado, o país tem uma das mais avançadas legislações ambientais do mundo e uma ministra do Meio Ambiente reconhecida internacionalmente e consciente da necessidade de mudanças urgentes para evitar à catástrofe. De outro, setores com forte influência no governo brasileiro parecem obedecer a uma mentalidade desenvolvimentista ainda calcada na visão do “mais e maior” de Ford e que ignora as dimensões socioambientais do “crescimento infinito”.
No Brasil e no exterior, existe em boa parte da esquerda (seja nos governos, nos partidos ou na sociedade) muita dificuldade de aceitar o fato de que o paradigma do crescimento econômico precisa ser profundamente alterado. Pioneiro, o economista romeno Nicolas Georgescu-Roegan já falava em decrescimento econômico há 25 anos, mas só agora a idéia começa a ganhar corpo entre intelectuais, militantes e governantes.
A esquerda, no Brasil e no mundo, precisa se adequar à velocidade dos acontecimentos, pois o caos climático e suas conseqüências se transformarão em poucos anos num fator de contestação global do capitalismo como jamais houve na história. Para estar à altura dos acontecimentos, uma boa idéia é começar a deixar de lado um conceito de crescimento econômico que nos foi imposto pelo próprio capitalismo.
(Por Maurício Thuswohl,
Agência Carta Maior, 10/04/2007)