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2007-04-06
A demarcação da Terra Indígena (TI) Cachoeira Seca, no Pará, continua inacabada e anda a passos lentos mais de 20 anos depois de sua interdição (o primeiro passo na regularização das TIs). A ineficiência do governo para oficializar a terra vem abrindo espaço para ações judiciais e invasões. Grupos de posseiros estão tentando obstruir os procedimentos demarcatórios. Em pouco menos de um mês, expira o prazo legal para a apresentação de contestações ao novo laudo sobre a área, aprovado por um despacho do presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) de 27 de fevereiro.

Quase 25% dos 734 mil hectares da TI estão invadidos por mais de 1,2 mil famílias não-indígenas, segundo a Funai e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Aproximadamente 54% da área invadida estariam nas mãos de pouco menos de 60 pessoas – grileiros e fazendeiros com posses acima de 500 hectares.

O pior de tudo era a indefinição sobre a situação. Agora, com a última decisão da Funai, temos uma referência para conversar com os segmentos interessados”, explica Marco Antônio Delfino, procurador federal em Altamira. Ele vai promover algumas reuniões com as lideranças dos posseiros. A intenção é dar informações sobre os trâmites de oficialização da terra, inclusive os procedimentos para encaminhar as contestações. Delfino garante que o tamanho e o perímetro da área não estão em discussão. “O direito à informação é constitucional. Estamos tentando prevenir conflitos”.

Em janeiro, a Funai encaminhou ao procurador uma denúncia sobre desmatamentos recentes destinados à exploração madeireira e pastagens na TI. O responsável seria Vicente Nicoloddi, dono de um posto de gasolina em Uruará, um dos municípios onde está localizada a terra. Além de uma grande derrubada, o empresário estaria abrindo estradas, o que sempre estimula novos desmatamentos. Delfino pediu ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) a vistoria do local para ajuizar uma Ação Civil Pública contra Nicoloddi. O procurador já apresentou uma ação contra uma serraria que estava atuando na região. Em 2004, mais de 9,5 mil hectares de florestas foram destruídos na área.

Transamazônica
A construção da rodovia Transamazônica (BR-230) estimulou a ocupação de vários territórios indígenas no Pará, entre eles o do povo Arara, habitante da TI Cachoeira Seca. No início da década de 1980, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) assentou 200 famílias no local. O órgão alega que não tinha conhecimento da existência da TI.

A interdição do território e o contato com os Arara datam de 1985, mas a portaria declaratória só saiu em 1993. Em 1997, dois mandados de segurança pedidos por invasores foram aceitos pela Justiça, o que obrigou a Funai a refazer o laudo antropológico. Ocorre, porém, que o órgão federal só tomou conhecimento da decisão judicial em 2004, quando finalmente resolveu fazer a demarcação física. Na época, os funcionários responsáveis tiveram de se retirar da região ameaçados por uma mobilização apoiada por políticos locais que interditou a Transamazônica por cinco dias para protestar contra o processo demarcatório.

Além dos pequenos agricultores que foram assentados pelo Incra, outros entraram na área a partir dos anos 1980. Grileiros e madeireiros ilegais acabaram se aproveitando da situação e também têm explorado a terra. As ocupações e a degradação vêm aumentando. Em comum, a maioria dos posseiros pretende inviabilizar a regularização do território conforme o último desenho estabelecido pela Funai. Lideranças não-indígenas e políticos têm feito declarações na imprensa local contrárias à demarcação. As manifestações são um sinal de que os ânimos na região podem acirrar-se mais uma vez.

Desmatamento identificado pela Funai em dezembro de 2006. Quase 25% dos 734 mil hectares da área estão invadidos. Em 2003, Cachoeira Seca foi a segunda TI mais desmatada do país.

Cachoeira Seca também abriga ribeirinhos descendentes dos “soldados da borracha”, migrantes, geralmente nordestinos, que foram enviados à Amazônia pelo governo federal para trabalhar nos seringais entre o final do século XIX e metade do século XX. Cerca de 15 famílias devem ser levadas para a Reserva Extrativista do Iriri, contígua à TI, mas a transferência, de responsabilidade do Ibama, também se arrasta a passos lentos.

Pressão
“A maioria das pessoas que entrou lá sabia que aquilo era uma Terra Indígena”, aponta Benigno Pessoa Marques, administrador-regional da Funai em Altamira. Ele lembra que a proposta atual para a TI procurou deixar de fora de seu perímetro a maior parte das posses e já é resultado das reivindicações de prefeitos, sindicatos e associações dos municípios próximos. Mesmo com a pressão por novas alterações, Marques acredita que até o fim do ano seja iniciada a demarcação física.

Desde 2004, a Funai tem se reunido com as lideranças não-indígenas para tentar resolver o conflito. Elas apresentaram várias alternativas, mas todas diminuem ou dividem a área. Uma das principais reivindicações seria manter o acesso dos posseiros a estrada conhecida como Transiriri. Trata-se de uma vicinal da rodovia Transmazônica que corta a TI e passa pela Vila de Canaã, distrito de Uruará e o centro urbano mais próximo ao território indígena.

“Não acredito que os colonos serão reassentados. O governo promete e acaba não cumprindo. Essas pessoas foram trazidas para cá pelo próprio Incra”, critica João Batista dos Santos, o Joãozinho, presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Uruará. Ele reconhece o direito dos índios à terra, mas assume que o objetivo dos posseiros é inviabilizar a proposta atual de demarcação. O sindicalista diz representar apenas os interesses de quem tem posses com até 100 hectares. Admite ainda que a invasão tem sido explorada eleitoralmente por políticos da região e que existem grandes desmatamentos na área. “A Funai tem de corrigir isso sim”, diz. A legislação não obriga o Estado a reassentar quem ocupa território tradicional de comunidades indígenas, mas apenas indenizá-los por benfeitorias construídas de boa-fé.

Santos afirma que a proposta de uma área com pouco mais de 686 mil hectares teria sido feita originalmente pela antropóloga Wilma Marques Leitão, coordenadora do primeiro grupo de identificação e delimitação. Mais tarde, outro laudo ampliou a área para 760 mil hectares, interligando-a a Terra Indígena Arara I, à oeste, pertencente a outro grupo Arara. Santos acredita que a disputa pela terra começou por causa da divergência entre os dois estudos e defende a primeira proposta. “Algumas lideranças indígenas já aceitaram esta alternativa”, garante.

De acordo com a Funai, Vicente Nicoloddi seria o responsável pela abertura das estradas. Elas costumam acelerar o desmatamento. O despacho da Funai que aprovou o último laudo antropológico da TI - estabelecendo uma área de 734 mil hectares - afirma que “a contigüidade das duas terras Arara justifica-se ainda pelas necessidades de uso comum de recursos ambientais dessas áreas, e de interações sócio-culturais entre eles [os dois grupos Arara], o que viabilizará sua reprodução física e cultural enquanto grupos diferenciados."

Cachoeira Seca tem importância estratégica por ser uma barreira ao avanço das frentes de desmatamento que partem da Transamazônica. Localizada ao norte da região conhecida como Terra do Meio (PA), a TI é parte de um dos mais importantes corredores de áreas protegidas da Amazônia e um dos maiores do mundo. Trata-se de um conjunto de TIs e Unidades de Conservação (UCs) de alta importância para a conservação da biodiversidade, com mais de 28 milhões de hectares interligados ao longo da Bacia do Rio Xingu, desde o nordeste do Mato Grosso, atravessando o centro do Pará.

“A solução do caso vai depender de uma ação política firme do governo federal que articule o Ministério da Justiça, Funai, Ministério do Desenvolvimento Agrário e Incra. Não se trata apenas de assegurar o direito do povo Arara, mas também de retirar e reassentar os pequenos agricultores que entraram na área de boa fé”, defende André Villas-Bôas, coordenador do Programa Xingu do Instituto Socioambiental (ISA). Ele considera fundamental também a regularização fundiária dos agricultores familiares que estão em torno da TI, o que vai lhes garantir acesso ao crédito agrícola e renda. “Da mesma forma, é urgente uma medida enérgica contra os abusos cometidos por alguns fazendeiros que estão ocupando áreas maiores do que o permitido pela legislação e se escudando nos pequenos produtores.”
(Por Oswaldo Braga de Souza, ISA, 05/04/2007)

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