O Brasil tem um gigantesco buraco em seu histórico de dados meteorológicos, o que prejudica o estudo da mudança climática no país. A conseqüência mais imediata disso é que o IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas), que se reúne hoje em Bruxelas, terá neste ano pela quarta vez um relatório concluído com acesso precário a informações brasileiras, sobretudo da Amazônia e do Nordeste.
O problema se deve, em sua maior parte, ao atraso do Brasil em publicar dados meteorológicos do século 20, que estão arquivados com acesso restrito no Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia), em Brasília.
Cientistas ouvidos pela Folha dizem que o buraco de dados nas séries históricas sobre o clima nacional é comparável ao da África subsaariana e deixa o Brasil atrás do Uruguai e da Argentina nos estudos sobre impacto e adaptação ao aquecimento global. Hoje só é possível fazer projeções razoáveis sobre Sudeste e Sul do país porque algumas instituições regionais publicam seus dados, mesmo não tendo os mais antigos.
"O buraco é um escândalo", diz o físico Gylvan Meira Filho, do IEA (Instituto de Estudos Avançados) da USP. Ele atribui a falta de acesso à série histórica do Inmet a "uma visão um pouco cartorial de repartição pública", que já foi superada em outras instituições do governo, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Para o climatologista do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) Carlos Nobre, existe mesmo "uma política de não-disponibilização" dos dados no país. "A comunidade científica brasileira não tem acesso a todos os registros climáticos e meteorológicos que existem no Brasil coletados por órgãos públicos."
O Inpe (ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia) e o Inmet (da Agricultura), entraram em conflito várias vezes nos últimos 25 anos. Em diversos episódios, o Inmet foi acusado de reter dados e cobrar -caro- por informações públicas.
Cobrança do Getúlio
Segundo Cristina Costa, funcionária do Inmet ouvida pela Folha, a política de cobrança é padrão no instituto e segue uma instrução normativa que vem sendo reeditada desde o último governo Vargas, de 1951 a 1954. "Um ano de dados diários custa R$ 135 por parâmetro", por estação, afirmou. "É a cobrança do Getúlio Vargas."
O Brasil tem hoje cerca de 320 estações meteorológicas (muitas delas novas) e cada uma pode medir até nove parâmetros: temperatura mínima, máxima e média, direção e força do vento, umidade, pressão atmosférica, chuva e radiação solar. Levando isso em conta, o preço do histórico meteorológico do Brasil inteiro no século 20 sairia por algo da ordem de alguns milhões de reais.
Quando um pesquisador solicita dados, uma isenção de taxa pode ser negociada, mas funcionários do instituto encaminham o caso direto à direção.
"Pelo menos com o novo diretor, o Inmet nunca tem dito não, mas muitas vezes diz que não tem os dados prontos", diz o climatologista José Marengo, do Inpe. Segundo Antônio Divino Moura, que está à frente do Inmet há quatro anos, os dados são todos abertos ao público, mas boa parte do acervo antigo ainda não passou por controle de qualidade e não está digitalizado.
Entrevero em Maceió
Em 2004, Marengo presenciou um episódio de mal-estar entre pesquisadores, durante simpósio do IPCC em Maceió.
"Serviços meteorológicos de todos os países da América do Sul foram convidados, e todos eles levaram dados [digitalizados] ao evento, mas depois muitos não queriam deixar os dados com os outros pesquisadores", diz o cientista. Entre aqueles que relutavam em compartilhar informações estavam bolivianos, peruanos e os brasileiros do Inmet. "O que foi usado pelo IPCC e veio a público foram os índices [médias], mas a informação meteorológica mesmo não foi liberada."
Apesar de lembrarem episódios de má vontade em fornecer dados, críticos do Inmet reconhecem que parte da dificuldade vem da falta de dinheiro para investir na modernização do acervo. Quase todo o orçamento do instituto é consumido na manutenção e operação de estações meteorológicas.
"Eu acho que o Ministério da Agricultura é, de certa forma, responsável por isso", diz Marengo. "Ele deveria destinar um orçamento maior ao Inmet."
Na opinião de Nobre, porém, é preciso que haja uma iniciativa do próprio Inmet. "Eles têm de pedir ajuda", diz. "A comunidade cientifica ajudaria num trabalho braçal de transcrever e corrigir dados, mas isso teria que ser um esforço nacional."
Só dados dos anos 1960 estão abertos
Os dados do Inmet só foram colocados à disposição dos cientistas uma vez, nos anos 1970. Eles se referiam só a dez anos de medições (os anos 1960), mas essa pequena fatia das informações do instituto, dizem pesquisadores, inaugurou a meteorologia brasileira moderna.
O fato aconteceu por iniciativa de Gylvan Meira Filho, então diretor do Inpe, e Roberto Venerando Pereira, seu colega do Inmet. "Ele tinha dinheiro não-executado no Orçamento e, para não perdê-lo, nos propôs um convênio", lembra Meira Filho.
O que se seguiu foi um trabalho braçal imenso, de passagem dados das estações meteorológicas, todos em cadernetas, para fitas magnéticas.
"O Gylvan ficava numa mesa, enterrado em pilhas de papel de mais de um metro", diz Carlos Nobre.
A série dos anos 1960 permitiu a realização dos primeiros estudos meteorológicos brasileiros publicados internacionalmente. Mas, quando criou o CPTEC (Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos), em 1989, Meira Filho não escapou de ter de comprar dados brasileiros dos EUA. "Saía mais barato que comprar do Inmet."
Falta dinheiro para digitalizar banco de dados
Segundo o atual diretor do Inmet, Antônio Divino Moura, a retenção de informações sobre as séries históricas climáticas do instituto não existe. "O Inmet é o guardião desses dados, mas os dados são do país", diz.
"Não são dados secretos, escondidos. Eles estão disponibilizados, só que não na forma mais conveniente para os pesquisadores, para processar no computador", afirma. "Desde que eu entrei aqui, nunca cobrei um dado de algum pesquisador ou estudante para tese de mestrado ou doutorado."
Segundo Divino, a equipe que o Inmet tem no acervo histórico é "insuficiente" para conduzir em tempo razoável um trabalho de digitalização de dados que estão em fichas de papel e sem controle de qualidade. "Nós temos seis pessoas aqui", diz "Fizemos um cálculo vago, e isso levaria de dez a quinze anos, nesse ritmo que estamos."
Parte da dificuldade em modernizar o acervo, diz Divino, é porque o Inmet está concentrado seus esforços em ampliar o número de estações meteorológicas automáticas, que fornecem dados em de hora em hora na internet para previsão do tempo.
Segundo o diretor do instituto, ainda não é possível ter idéia de quanto seria o investimento para qualificar e digitalizar os dados do acervo histórico. "Se custar 50 milhões, ou 20 ou um, quem vai pagar essa conta? Do meu orçamento não dá para tirar." Mas essa dúvida, diz, poderá ser resolvida dentro de alguns meses.
"Conseguimos recursos da Finep [Financiadora de Estudos e Projetos] no ano passado para contratar uma firma que entenda de processamento de grande massa de dados", diz. "Aí vamos saber como prosseguir."
(Por Rafael Garcial, Folha de S. Paulo, 02/04/2007)