Deveria estar pronto neste mês o plano de gestão do Aqüífero Guarani, maior reserva de água subterrânea do mundo, pertencente a Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. O cronograma inicial, no entanto, atrasou. Agora a previsão é de que o plano seja entregue aos governos e Congressos dos quatro países no fim de 2008. De acordo com o Ministério do Meio Ambiente (MMA), esse documento poderá ser um tratado internacional ou um grande acordo entre os países. Em qualquer caso, deverá ser apreciado por cada parlamento antes de ser validado.
O Projeto de Proteção Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do Sistema Aqüífero Guarani, nome oficial do plano, começou a ser desenvolvido em 1999 e atualmente está em fase de execução. Orçado em US$ 26,7 milhões, financiados pelo Fundo para o Meio Ambiente do Banco Mundial, com apoio da Organização dos Estados Americanos (OEA) e contrapartidas dos quatro países, servirá como base para identificar problemas e soluções para o manancial. Participam da iniciativa organizações não-governamentais, universidades e representantes de governos dos quatro países.
“O projeto teve alguns atrasos, mas isso é normal em processos em que a unanimidade é necessária”, diz Fabrício Cardoso, especialista em recursos hídricos da Agência Nacional de Águas (ANA), do Brasil. Já se previa, há alguns anos, a prorrogação dos estudos necessários para a finalização do plano. A decisão conjunta é obrigatória, nesse caso, devido ao caráter internacional do aqüífero. Os milhões de litros de água contidos nos diversos reservatórios subterrâneos que, juntos, compõem o Sistema Aqüífero Guarani se espalham pelos quatro países, sendo que 80% do líquido encontra-se em subsolo brasileiro. Será preciso, portanto, resolver questões internas e internacionais para formular o marco legal do aqüífero – algo que levará bastante tempo.
Cada um dos quatro países possui um tipo diferente de legislação referente às águas subterrâneas. Porém a exploração dos recursos hídricos por um pode afetar a qualidade e a disponibilidade de outro.
No Brasil e na Argentina, os dois maiores países dos quatro integrantes do sistema, a questão vai além. Tanto aqui quanto lá, a responsabilidade pelo uso e pela ocupação do solo é municipal. As águas subterrâneas, por sua vez, são da conta dos estados, assim como os rios, quando seu curso está dentro de uma única unidade da federação. No entanto, como muitas vezes as águas subterrâneas não estão inteiramente embaixo da área de um estado e até mesmo de um só país, passam a demandar a presença da União. Especialistas afirmam ser necessária, portanto, uma gestão integrada das águas subterrâneas.
"Temos um conflito de competência de gestão e fiscalização", observa Leonardo Morelli, coordenador da ONG Grito das Águas, que acompanha as discussões em torno do Aqüífero Guarani. "E ele se deve, apesar da complexidade da questão, a um motivo simples: a falta de integração das políticas públicas nessa área". Para Morelli, a solução envolve uma série de medidas. Em primeiro lugar, diz, é preciso mudar a visão que os governantes têm da água.
“Por enquanto, é um olhar econômico, e não ambiental e estratégico”, critica. Segundo o ativista, as autoridades municipais devem ser capacitadas sobre a importância da preservação do solo como fundamento para a preservação do subsolo, principalmente nas áreas de afloramento e recarga do aqüífero. Já no âmbito legislativo, acredita que deva haver mudanças para que a gestão possa ser integrada, sem que o pacto federativo seja ferido. “No âmbito internacional, é preciso tirar o Mercosul do papel e realmente integrar os países. A posição de cada um varia muito”.
Para a advogada Ninon Machado, diretora executiva do Instituto Ipanema - que integra o Fórum Brasileiro de ONGs de Meio Ambiente, o FBOMS -, o problema não é grande. O FBOMS, incluisve, participa das discussões sobre o aqüífero como representante da sociedade civil. Segundo Ninon, apesar de ainda não existir um tratado internacional que regule o uso da água, já existem diversos compromissos entre governos e agências de financiamento que asseguram um conjunto de práticas mais sustentáveis. “Os princípios do Direito internacional estão consolidados, mas ainda falta interlocução entre os municípios e estados e mais atenção para o risco de contaminação e uso excessivo desses recursos nos planos diretores”, ressalta.
A preocupação faz sentido, dadas as ameaças ao Aqüífero Guarani e o pequeno conhecimento sobre sua estrutura até agora. É o maior reservatório de água subterrânea do mundo e também o de maior recarga. Sabe-se que não é apenas um, mas um conjunto de aqüíferos, por isso especialistas preferem considerá-lo um sistema, que abrange 1,2 milhão de quilômetros quadrados e tem capacidade para abastecer 700 milhões de pessoas. No Brasil estão localizados 840 mil quilômetros quadrados; na Argentina, 225 mil quilômetros quadrados, no Paraguai, 71,7 mil quilômetros quadrados; no, Uruguai, 58,5 mil quilômetros quadrados. Por aqui, o reservatório está sob os estados de Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, São Paulo, Paraná, Goiás, Minas Gerais, Santa Catarina e Mato Grosso.
Ainda não se conhece, porém, todo seu potencial de aproveitamento. Dentro do projeto foram desenvolvidos diversos estudos, financiados por fundos específicos. O fundo de universidades, por exemplo, dedicou-se a estudar afloramento, recarga, descarga e composição dos recursos hídricos em diferentes pontos do Brasil, por exemplo.
Existe água potável em várias áreas, como a que está sob a cidade de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Lá, todos os 560 mil habitantes são abastecidos por água subterrânea pertencente ao aqüífero. No entanto há diversos pontos em que a composição da água é desconhecida e outros em que já se sabe que o aproveitamento só pode ser industrial ou turístico.
É o caso do Paraná. No estado sulino, a água aflora, em alguns pontos, a 30º C. Ou seja, pode ser aproveitada para banhos termais ou mesmo em benefício do potencial granjeiro da região. Com a água naturalmente quente, por exemplo, gasta-se menos energia para depenar frangos.
O uso mais intensivo dos recursos do aqüífero acontece no Brasil, onde a água é utilizada para irrigação, abastecimento de cidades e para fins industriais e turísticos. Esta última forma é mais comum nos outros três países. De acordo com o Ministério do Meio Ambiente, 25% do volume de recarga anual, aproximadamente 40 quilômetros cúbicos, poderiam ser consumidos sem comprometer as reservas. Essa quantidade é suficiente para abastecer 15 milhões de pessoas. Atualmente, apenas 5% são utilizados.
O problema é que, em muitas cidades brasileiras, esses recursos estão sendo mal utilizados. Em algumas cidades, poços estão sendo escavados e explorados sem estudos de impacto ambiental. Além disso, a aplicação de agrotóxicos na lavoura e a construção de lixões em pontos de recarga e afloramento do aqüífero colocam todo o manancial em risco.
Um relatório de qualidade ambiental divulgado no fim do ano passado pelo Projeto Ecoagri, criado no Núcleo de Economia Agrícola (NEA) do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp), mostra isso. Só em Ribeirão Preto há 500 poços artesianos abandonados, e o nível do lençol freático já baixou 60% em alguns pontos.
"Precisamos prestar atenção a esses problemas", alerta Ninon Machado. "Há uma cultura de furar poços, e muitos deles são feitos sem cuidado, até mesmo ao lado de fossas sanitárias. É preciso que haja fiscalização no uso e uma melhor política de gestão de recursos hídricos".
O secretário de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente, João Bosco Senra, foi procurado pela reportagem da Rits, mas estava indisponível, participando de uma reunião sobre o próprio plano, no Uruguai, junto com outros representantes da ANA.
(Por Marcelo Medeiros,
Rede de Informações do Terrceiro Setor- RITS, 30/03/2007)