Falta transparência nas ações pretendidas pelo Plano Estadual de Irrigação. Como estamos falando de um plano de governo, que não tem e não terá um documento formal para ser folheado, nem audiências públicas para avaliação da sociedade, a especulação corre solta entre técnicos da área, academia e pequenos agricultores. Afinal, um plano cuja meta é a construção de 9 mil açudes e microaçudes por ano de governo e pelo menos três barragens em 2007, cujo mote não é o uso racional da água, e que está tentando transferir atribuições do Departamento de Recursos Hídricos para a Secretaria de Irrigação, não passa despercebido.
O secretário Rogerio Porto tem se apegado à idéia de "salvação da lavoura gaúcha", sem explicar de onde virá o dinheiro para as obras. A governadora Yeda também prometeu ajudar a resolver o impasse jurídico com a criação da Câmara Setorial da Irrigação, que reúne as pastas Irrigação, Agricultura, Planejamento, Obras Públicas, Infra-estrutura e Logística, Meio Ambiente, Habitação, Casa Civil e Casa Militar. Contudo, a inundação de terras de Área de Preservação Permanente (APP) para açudagem e barragens esbarra na legislação ambiental. A
Resolução Conama 369/06 não enquadra a irrigação como atividade de utilidade pública ou interesse social, da mesma forma que a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam).
Porto está sendo acusado de pressionar o órgão ambiental para liberar as licenças das primeiras obras do plano: barragens nos arroios Taquarembó, em Dom Pedrito, e Jaguari, na divisa de Lavras do Sul e São Gabriel, ambas na bacia do rio Santa Maria. Além disso, tem se pronunciado publicamente sobre questões que só cabem à Fepam, como quando afirmou que os estudos entregues à fundação eram suficientes para a liberação da Licença Prévia, durante cerimônia no gabinete da Secretaria do Meio Ambiente (Sema). Sem o sinal verde, a Irrigação perderá os R$ 88 milhões alocados no Programa de Aceleração de Crescimento (PAC) para a construção dessas obras e pode enfrentar problemas para financiar as próximas.
Técnicos de órgãos ambientais do Estado não autorizados a falar afirmam que a Fepam recusou os estudos de impacto ambiental apresentados pela Irrigação por falta de informações. Embora temam um
canetaço por parte do alto escalão do governo, não querem voltar atrás na decisão. Caso isso ocorra, os técnicos alimentam a esperança de o Ministério Público inteferir. A assessoria de imprensa da Fundação diz que "ainda não há nada de oficial relativo à liberação das duas licenças" e evita estipular prazos. O presidente Irineu Schneider é o único que pode dar entrevistas sobre o assunto.
O silêncio acometeu até a Farsul, entidade representativa dos agricultores, cuja direção não quis se manifestar sobre o plano para esta reportagem. Em janeiro, o presidente da Comissão de Recursos Hídricos da Farsul, Francisco Schardong, declarou ao jornal
Correio do Povo que antes de criar projetos, é necessário dar conta das demandas atuais e destacou a importância de dar maior agilidade à Fepam, porque há registro de produtores que solicitaram licença para açudes e que esperam há mais de dois anos.
Parece ser consenso de que a Fepam não tem, no momento, condições estruturais para acompanhar sequer as ações de açudagem do plano. "É muito temerário que um setor do governo crie um fato consumado em cima da construção dessas barragens e uma expectativa de salvação do agronegócio. Isso cria um peso político sobre um órgão ambiental desfalcado para que se abram todas as portas para o projeto", afirma o professor Paulo Brack, do departamento de Botânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro da ONG Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (Inga).
Uso irracionalA maior crítica que o ex-diretor do Departamento de Recursos Hídricos do Estado, Rogério Dewes, tem ao plano é a colocação em segundo plano do uso racional da água. Lembra que existem culturas de arroz que consomem em torno de 8 mil m3 de água por hectare/ano usando tecnologias de uso racional e de retorno de agua às lavouras, enquanto outras gastam até 17 mil m3. "É um programa de construção de obras e capactiação de agricultores. Mas e quanto ao treinamento de técnicas de irrigação ou pra uso racional? Aplicar tecnologias de cultivo mínimo e manutenção da umidade do solo não seria melhor do que plano de irrigação?", questiona.
Se a irrigação não é feita de forma adequada, ela diminui a taxa de infiltração do solo para os lencóis freáticos, ou seja, qualquer chuva provoca enchentes. Para regular essa quantidade de água – evelada no inverno e seca no verão – a preservação das mata ciliares e o plantio de espécies na região que não consumam tanta água são as alternativas mais sustentáveis.
"Um programa de irrigação não pode enxergar só a acumulação e a distribuição de água, ele tem que enxergar como a água chega na barragem para que a irrigação seja possível", destaca Dewes. Para isso são necessárias medidas como uso do solo, tecnologias aplicada na irrigação, preservação de matas ciliares e áreas de banhados, cuidado com os processos erosivos e redução nas perdas do abastecimento. Nenhuma barragem substituiria isso.
O ex-diretor acredita que o programa de cisternas da Secretaria de Agricultura é uma solução mais sustentável e barata. Com R$ 6 mil reais é possível construir uma cisterna para 60 m3 de água, o que seria suficiente para a pequena irrigação. Esse projeto não foi incorporado ao plano de irrigação porque, segundo o secretário Porto, ele já estaria funcionando bem na outra pasta.
Comitê exige obras Para o produtor de arroz de Dom Pedrito, Jose Dalizio Marchese, as obras de Taquarembó e Jaguari visam a beneficiar propriedades de membros do comitê de bacia do rio Santa Maria, o qual acusa de corporativista. Taquarembó permite irrigar 20 mil hectares de arroz, e Jaguari atende 17 mil hectares. A área total beneficiada é de 80 mil hectares. Embora existam áreas altamente suscetíveis à erosão e o saneamento básico seja incipiente, a construção dessas barragens é a bandeira da atual direção do comitê.
O benefício concreto das obras - aumento de disponibilidade de água para irrigação - só aconteceria a partir da cidade de Rosário do Sul. Toda a parte superior da bacia, que engloba Dom Pedrito e Santana do Livramento, não teria beneficio direto em termos de regularização de vazão e minimização dos efeito de seca. Rogério Dewes afirma: "O lógico seria fazer uma delas e tentar investir um pouco mais na parte superior da bacia para que tu tivesses um beneficio que não seja a partir da metade".
O Programa de Desenvolvimento da Bacia do Rio Santa Maria, criado no governo Britto e recriado na gestão Rigotto, defende a construção de 14 barragens na região. Dessas, Taquarembó e Jaguari seriam as de maior impacto ambiental.
Marchese é contra a disponibilização de mais água para os produtores, que vêm plantando arroz em coxilhas. "A técnica acelera o processo de erosão do solo e pode comprometer o lençol freático, porque a cultura de arroz nesse tipo de solo consome 50% a mais de água", fala. Ele afirma que a situação dos corpos de água na região é catastrófica - se há 30 anos as enchentes demoravam cinco dias para chegar, hoje chegam em algumas horas com a metade da chuva, e numa altura maior.
A área a ser inundada pelas duas barragens têm matas ciliares com alta sensibilidade ambiental e pelo menos dez espécies de peixes endêmicas que foram descobertas por meio de trabalho feito pela UFRGS sobre a biodiversidade na região. A pesquisa durou três anos e terminou em 2006.
Alteração do ciclo hidrológicoContrariando a opinião do secretário, a acumulação de água em barragens altera o ciclo hidrológico e provoca impacto ambiental na visão do professor Paulo Brack e de Rogerio Dewes. As águas das chuvas que não são represadas em barragens vão para o mar, que precisa receber essa água doce. Existem muitas espécies que vivem nessa água misturada e outras que podem ser extintas quando a vazão de um rio é alterada.
"Há sempre o risco de perdermos espécies que nem conhecemos, pois é senso comum que conhecemos pouco a nossa biodiversidade. Os estudos de impacto ambiental em geral não contemplam nem 50% do que existe no local e, ao mesmo tempo, tem essa avalanche de projetos na mesa dos órgãos ambientais que precisam ser aprovados", opina Brack. Ele explica o ciclo envolvido em uma barragem. No inverno as barragens estão cheias, seguidas por um período de seca. Começa a se usar água retida e ela esvazia. Chove intensamente. A água enche a barragem e não chega ao curso da água porque vai ficar represada. Em outras palavras, aquele curso que está com volume baixo porque não chove, não vai receber a água mesmo que chova, e o vizinho que mora abaixo vai ficar sem água.
Monopólio da águaO Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) receia que as barragens sejam privatizadas, e que, por conseqüência, os produtores tenham que pagar pelo o acesso à água. Dewes diz que há o risco de monopolização porque se o Estado constrói muitas barragens, fica sem condições de administrá-las e fiscalizar para saber se o líquido está chegando em todas as casas. Cabe à sociedade cuidar disso, que vai precisar se organizar.
"Estamos até agora esperando as cisternas do programa da Secretaria da Agricultura", afirma Lecian Conrad, da coordenação estadual do MPA. Ele se mostra favorável à construção de açudes, desde que respeitada a legislação ambiental.
(Por Ana Luiza Leal, Ambiente JÁ, 29/03/2007)