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2007-03-27
Carta Maior apresenta a segunda parte da entrevista feita por Flávio Aguiar e Bernardo Kucinski com os professores Ignacy Sachs, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, e Ladislau Dowbor, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Neste trecho, ambos os especialistas debatem mais a fundo sobre que modelo de produção e de organização social deveria emergir da crise anunciada pelas prováveis alterações climáticas em escala planetária. Para Sachs, o Brasil tem condições extraordinariamente propícias para criar um novo ciclo includente de produção de energia, combinando-a com outros tipos de produção, desde que haja a criação de alianças econômicas e políticas entre a diversidade dos atores envolvidos.

“O que está em jogo”, ressalta, “é o modelo social que foi construído em cima da cana. Esse modelo tem que ser mudado. Favorecer pequenos fornecedores, cooperativas, o consórcio da cana com outras atividades, o aproveitamento da cadeia da cana para maximizar sempre que possíveis oportunidades para pequenos negócios e para emprego, os serviços de acompanhamento, o problema do aproveitamento dos subprodutos, e em geral, o problema da integração da bioenergia com a produção alimentar. Parar de raciocinar por cadeias justapostas. Partir do território, dos biomas, e definir padrões e estratégias de produção integrada de alimentos e energia em espaços”.

Já Dowbor ressalta a importância de pensar em espaços integrados: “Cada município que produz tem que pensar: tudo tem uma parte de alimentos, uma parte de produção de energia. Vou absorver a mão-de-obra excedente, vou reduzir as favelas, vou equilibrar e integrar os processos produtivos. O objetivo nosso não é aumentar as exportações. É melhorar a qualidade de vida da população. Esse é o processo. Isso envolve alianças que são de novo tipo. Porque eu sou sensível aos argumentos de que as forças tradicionais, que tem formas antigas de organização da produção, são fortemente dominantes, mas nós temos possibilidade de alianças entre as universidades, entre os ambientalistas, no próprio governo, nos movimentos agrários, para abrir espaço para uma política que aproveite essa nova demanda. Ela exige de todos nós pensar de uma maneira diferente e renovada. Isso é o básico”.

Essa entrevista faz parte de um projeto de longo alcance da Carta Maior voltado para a discussão das prováveis alterações climáticas no planeta e ao mesmo tempo das alternativas para a produção e aproveitamento de energia.

Flávio Aguiar – Vamos à segunda parte do nosso debate. Lembremos que, ao fim da primeira parte, nós chegamos à seguinte questão: essa discussão sobre modelos alternativos de energia é uma oportunidade também para se discutir modelos alternativos de produção e padrões alternativos de consumo. Professor Ignacy, como o senhor vê essa questão? É possível chegar realmente a um consenso ou avanços neste campo?

Ignacy Sachs – A questão não é se é possível. É absolutamente necessário colocar essa questão: que modelo social estamos tendo em mira ao propor um aumento extremamente forte da produção dos biocombustíveis num país como este? Aqui tem tudo: terra, clima propício e uma vantagem comparativa natural para produzir biomassa em boas condições. Pode-se certamente potencializar essas vantagens comparativas naturais, através de vantagens comparativas construídas, através de pesquisa e através da organização do processo de produção. Por um dos caminhos, haverá um novo ciclo de desenvolvimento rural socialmente includente e ambientalmente sustentável. Pelo caminho oposto, haverá mais um episódio do desenvolvimento concentrador e excludente, que tão bem conhecemos no passado.

Bernardo Kucinski – E como garantir que seja o primeiro caminho e não esse segundo caminho?

Sachs – Olha, essa é uma questão unicamente política. E no caso, temos que distinguir o etanol do biodiesel. O biodiesel está no comércio e houve por parte do governo sinalizações positivas, que provavelmente têm que ser reforçadas.

Kucinski – O governo tomou uma certa dianteira, para definir uma política?

Sachs – É, ele está querendo definir uma política. Definiu alguns instrumentos desta política. Podemos discutir até que ponto estes instrumentos são suficientes ou se devem ser complementados. Mas estamos ainda numa situação em que as margens de liberdade são muito maiores. Isso, se não deixarmos que até o problema do biodiesel seja atropelado por uma corrida das grandes empresas multinacionais de soja. Agora, no etanol, a situação é mais complexa. Nós estamos começando tendo a herança maldita da época colonial. Eu sempre lembro nestas ocasiões aquele desabafo de José Bonifácio. Em um de seus textos, ele escreve: “Se tivesse algum poder com Deus, pediria que chegasse uma geada para acabar de uma vez com os males da cana-de-açúcar”. É claro que é uma boutade (1). Não é a cana a culpada. Ao contrário, a cana é uma planta milagrosa que devemos aproveitar ao máximo. O que está em jogo é o modelo social que foi construído em cima da cana. Esse modelo tem que ser mudado. Favorecer pequenos fornecedores, cooperativas, o consórcio da cana com outras atividades, o aproveitamento da cadeia da cana para maximizar sempre que possíveis oportunidades para pequenos negócios e para emprego, os serviços de acompanhamento, o problema do aproveitamento dos subprodutos, e em geral, o problema da integração da bioenergia com a produção alimentar. Parar de raciocinar por cadeias justapostas. Partir do território, dos biomas, e definir padrões e estratégias de produção integrada de alimentos e energia em espaços. É um pouco a mensagem dos trabalhos do grupo que foi encarregado de propor uma política de desenvolvimento local. Chegaram as mesmas conclusões. Nós temos que inverter as perspectivas. Parar de raciocinar com cadeias. E começar a raciocinar por espaços, em cima dos quais existem sociedades, e tentar ver como articulamos o conjunto das produções de um espaço dado, maximizando as sinergias entre as diferentes produções, e sempre tendo em vista como um dos critérios fundamentais a maximização das oportunidades de trabalho decente. Porque nós estamos hoje discutindo um dos grandes desafios do século, que é a mudança climática. Mas o outro desafio social, tão grande como este, é o problema de como sair do déficit agudo de oportunidades de trabalho decentes no mundo, em geral, e no Brasil, em particular.

Kucinski – Professor Ignacy, veja, nós vivemos num país onde uma das forças organizadas importantes hoje é o sindicalismo, principalmente nas indústrias metalúrgicas e montadoras. Eles querem mais automóveis, e não menos automóveis. A outra força organizada são os ruralistas. Tanto assim que eles têm uma bancada quase oficial no Congresso, que consegue bloquear toda a legislação que contraria interesses deles. E eles se constituem numa força social importante. Eles comandam o processo. Nós não temos sequer, até hoje, uma política mínima, por exemplo, de estoques de álcool. É totalmente livre esse setor. Eles fazem o que eles querem. E quando eles entram em crise, exigem que o Estado socorra. Então como é que se dá esse salto?

Sachs – Primeiro, não creio que a gente deva, neste debate, colocar a questão do mais automóveis ou não. Dá para ter mais automóveis no Brasil, muito mais do que os 20 milhões que existem hoje. É um outro debate.

Kucinski – O que estou querendo colocar é a questão de que forças políticas e sociais...

Sachs – Essa força deveria ser um aliado na construção...

Kucinski – Mas ela não é naturalmente nossa aliada.

Sachs – Mas escuta. As alianças se costuram. Primeiro, acho que não se deve fazer essa análise mais simplista de que não há interlocutores possíveis dentro do mundo do agronegócio. Há grandes proprietários que também sabem o quão perigoso seria construir uma nova fase de desenvolvimento rural baseada no aprofundamento das desigualdades. Sempre lembro que quando Kennedy lançou a “Aliança para o Progresso”, e é bom lembrar isso para as gerações mais novas, havia duas condições para participar dela, na época: fazer a reforma agrária e planejar (2). Claro que a reação aqui foi: “Como? Reforma agrária? Os gringos pedem a reforma agrária?” Um dos conselheiros do Kennedy, ex-embaixador na Índia, disse: “Às vezes é bom tirar do dedo um anel, para não perder os dedos”(3). Bom, existe entre os grandes proprietários uma corrente, que não é totalmente desprovida de influência, que entende que temos que construir uma coisa que seja menos exclusiva do ponto de vista social. Um outro exemplo: as grandes companhias de produção de papel e celulose, que dependem do abastecimento do eucalipto. Elas estão se abrindo cada vez mais para a idéia de contrato de fomento aos pequenos agricultores. Porque os bilhões que estão sendo investido na expansão industrial em papel e celulose podem ser totalmente prejudicados. Portanto, acho que existe no Brasil um espaço para negociar. E existem vários interlocutores, dos quais os movimentos sociais são muito importantes. Celso Furtado insistia ao longo dos últimos anos da vida dele que o MST é o mais importante movimento social que houve na história do Brasil. Então, estamos falando de uma situação em que existem movimentos sociais que pressionam, existem interesses econômicos que necessitam de uma certa paz social, o que não é compatível com uma situação explosiva no campo. Existe uma série de iniciativas de cooperativismo no Brasil. Não é o que talvez nós sonharíamos, mas elas existem. A situação é mais complexa. Coloquemos o problema. Podemos aproveitar essa conjuntura extraordinária no mundo que se abre para a bioenergia, para ir consertando as mazelas sociais no campo. Por uma série de coisas. Aproveitar os assentamentos da reforma agrária. Aprender que a reforma agrária apenas começa com a distribuição da terra. E depois tem que se transformar num processo de construção gradual da transição do assentamento para uma vila agroindustrial. Ter uma política sobre isso. Reforçar os pequenos produtores, através de cooperativas, associações. Voltar aí com uma força ainda maior no Sebrae, neste tipo de atividade. Pensar o que se faz com os subprodutos. Porque quando se fala, por exemplo, “vamos produzir oleaginosas”, na verdade vamos produzir uma certa quantidade de óleo e montanhas de tortas (4), de farelos e rios de glicerina. O que fazer com rios de glicerina, eu não sei. Agora, o que fazer com as tortas, eu sei. Podemos passar de um padrão de pecuária extensiva a um padrão de pecuária semi-intensiva e liberar pastos para a agricultura de alimentos.

Kucinski – Tudo isso exige acompanhamento, planejamento, regulação...

Sachs – O zoneamento ecológico e econômico teoricamente foi feito. Não estamos discutindo num país onde não existe o Estado. O Estado existe. Sem um Estado desenvolvimentista, enxuto, porém pró-ativo e atuante, não vai ter desenvolvimento. Vai ter crescimento com efeitos sociais perversos. Como conhecemos no passado. Agora, responder se esse Estado vai ter a capacidade de agir ou vai se omitir, e em que grau vai ter essa capacidade, eu não sei.

Kucinski – Do ponto de vista desse problema, destas tarefas que se colocam, e da sua idéia da dupla revolução verde, os movimentos ambientalistas brasileiros, em geral, eles não estão um pouco lutando as batalhas erradas nesta altura do campeonato?

Sachs – Olha, não dá para numa discussão sobre um tema tão fundamental começar a dizer: tem movimentos ambientalistas que estão numa linha certa, outros talvez não estejam nesta linha certa. Em geral, os ambientalistas no mundo se colocam mais entre os adversários da bioenergia, porque dizem que os automóveis irão ter preferência sobre os estômagos vazios. Isso, aliás, é a posição do Lester Brown, do Worldwatch (5). Uma luta épica de 800 milhões de proprietários de automóveis, que amanhã serão 2 bilhões, contra 2 bilhões de estômagos vazios. Primeiro, isso é demagogia. Os estômagos vazios não vêm da falta de alimento, e sim da falta do poder aquisitivo. Portanto, através de uma boa política de promoção de bioenergia, nós vamos gerar mais renda entre aqueles que hoje estão com fome. Segundo, se a gente partir por essa análise de justaposição de cadeias de produção, uma ao lado da outra, não vai ter terra suficiente. A situação é outra, se se fizer esse trabalho de uma maneira mais inteligente, por exemplo, integrando a pecuária com as oleaginosas, integrando a produção da biomassa para a energia com outras produções em nível da agricultura familiar. Se reconsiderar o papel da agricultura familiar tropical para o futuro. Não esqueçamos que a bioenergia é apenas um dos elementos que eu chamo de civilização moderna de biomassa. Porque a biomassa é o alimento, ração animal, adubo verde, bioenergia, material de construção, insumos industriais, fibras, plásticos, papel, celulose, química verde, fármacos, cosméticos. É um mundo!...

Kucinski – Tudo vem da terra.

Sachs – Não. Virão, cada vez mais, do trinômio: biodiversidade, biomassas e biotecnologia, aplicadas nas duas pontas, para aumentar a produtividade e para abrir o leque dos produtos. Estamos no limiar de uma nova revolução industrial. A revolução industrial baseada nas energias fósseis está se esgotando. Qual será essa nova civilização industrial? Ela pode, e certamente nos países tropicais ela deve ver até onde se pode chegar neste caminho da construção da biocivilização moderna. Não se trata de voltar para trás. A não ser pelo fato de usar, cada vez mais, a energia solar através do processo de fotossíntese. É uma visão intensiva em conhecimentos, intensiva em mão-de-obra, poupadora dos recursos como terra e água. E poupadora dos recursos financeiros que não temos. Esta é a equação que nós estamos querendo colocar no centro do debate sobre a estratégia de desenvolvimento, aproveitando as bioenergias como uma janela de oportunidades. Até onde saberemos andar?

Em que momento vamos levar uma paulada? Quem vai dar a paulada? Essas são perguntas...
Dowbor – ...da Madame Soleil!... (6)

Aguiar – Mas eu queria lembrar o mote da Carta Maior, que é “se hace el camino al andar”, verso do poeta espanhol Antonio Machado. Podemos ter uma visão catastrofista. Um amigo meu (7) disse: nós, os mais velhos, talvez não venhamos a ver a grande catástrofe, mas já estamos olhando nos olhos dos que certamente a verão. Podemos inverter a imagem e pensar que nós não veremos essa notável transformação colocada aqui pelo professor Ignacy, pelo Ladislau e pelo Bernardo, como absolutamente necessária, mas talvez estejamos olhando nos olhos daqueles que verão esse outro mundo possível. Agora, gostaria de pedir aos nossos convidados as suas considerações finais.

Dowbor – Eu retomaria alguns argumentos. O Brasil tem hoje a maior reserva de terras utilizáveis no planeta. Tem gigantescas reservas de água. Nós temos uma população ligada à agricultura da ordem de 20 milhões de pessoas. E há uma gigantesca demanda, por várias razões: ambientais, esgotamento do petróleo etc, de uso energético da agricultura. Isso aqui é uma oportunidade e um perigo, como sempre. Nós podemos acompanhar os que olham para trás e viram como formam os grandes ciclos do café, cacau, açúcar, fazer monocultura, expulsar a população do campo, gerar favelas, e com isso gerar gigantescos custos para toda a população do país. Ou então podemos nos concentrar no sistema de culturas associadas, em que a dinâmica energética se concentra numa outra visão. A outra visão é basicamente o que a gente tinha trabalhado com o conceito de novos indicadores de riqueza e com o conceito de produtividade sistêmica. Cada município que produz tem que pensar: tudo tem uma parte de alimentos, uma parte de produção de energia. Vou absorver a mão-de-obra excedente, vou reduzir as favelas, vou equilibrar e integrar os processos produtivos. O objetivo nosso não é aumentar as exportações. É melhorar a qualidade de vida da população. Esse é o processo. Isso envolve alianças que são de novo tipo. Porque eu sou sensível aos argumentos de que as forças tradicionais, que tem formas antigas de organização da produção, são fortemente dominantes, mas nós temos possibilidade de alianças entre as universidades, entre os ambientalistas, no próprio governo, nos movimentos agrários, para abrir espaço para uma política que aproveite essa nova demanda. Ela exige de todos nós pensar de uma maneira diferente e renovada. Isso é o básico.

Kucinski – As soluções técnicas existem. Tanto para se aproveitar essa grande oportunidade para um salto de qualidade na nossa organização como universo social, já que temos essa posição privilegiada em vantagem comparativa que o doutor Ignacy mencionou, quanto para estancar o processo do aquecimento global, ainda que ele já tenha provocado alguns danos irreversíveis. Então as soluções existem. O problema é sempre político. A Carta Maior e algumas outras organizações deste tipo deveriam investir mais no debate, numa agenda focada neste tema, até no sentido de começar a tentar aproximar forças. Começar a debater como encaminhar politicamente essas soluções. Eu, pessoalmente, há muito tempo estou encantado com o Protocolo de Kyoto. Acho que foi uma ocasião em que os cientistas se colocaram a serviço da sociedade de uma maneira eficaz, muito produtiva, ainda que tenha um escopo limitado. Mas nós tínhamos que conseguir coisas deste tipo. Que o saber científico consiga virar uma ação política mais forte, mais rápida, mais eficaz nesta área. E, evidentemente, vai ter que desembocar numa mudança do padrão de intervenção do Estado na economia, senão não tem solução.

Sachs – Na mesma direção: o problema está na organização de um diálogo político entre os diferentes protagonistas deste processo. Eu gostaria de fazer duas observações. A primeira é que não dá para construir uma economia em um país de economia mista, onde o mercado tem um papel importante, sem priorizar como uma área de debate e articulação de propostas concretas a questão do relacionamento das grandes empresas modernas com os empreendedores de pequeno porte ao montante e à jusante dessas empresas. Essa é para mim uma problemática fundamental. A integração da indústria do agronegócio com pequenos produtores, da integração da indústria do papel e celulose e da indústria metalúrgica que necessita de carbono vegetal com os pequenos fornecedores de madeira. E assim por diante. Acho que o clima está propício a este tipo de diálogo inclusive do lado das grandes empresas. Não só por causa do movimento em favor da responsabilidade social mas sobretudo por causa da compreensão de que isso é de interesse mútuo. Como transformar as relações de disputa entre os grandes e os pequenos num processo de construção de certas sinergias: este é um enorme tema para a economia brasileira e que se coloca com muita força dentro desta área da bioenergia. Por outro lado, gostaria de dizer que os protagonistas dos processos incluem também uma categoria importante que são as empresas públicas. Vou dar dois exemplos rapidamente. A Petrobras, que está evoluindo da posição de uma empresa de petróleo para uma empresa de energia, e que está se envolvendo dentro da questão da bioenergia. Dois, um exemplo surpreendente, o Banco do Brasil, com seu programa de desenvolvimento regional sustentável, que hoje está em milhares de municípios e movimenta uma série de pequenos projetos, acho que com mais de 1 bilhão de reais envolvidos. Ou seja, como usar estes atores? Como organizar a mesa do debate para que não seja apenas uma polarização entre os grandes... que olham para trás... Entre os latifundiários há alguns que olham para trás e outros que olham para frente. Eu não simplificaria tanto. Existe evidentemente um lobby dos latifundiários de velha data. E existe provavelmente um lobby de latifundiários que olham para frente e que entendem isso. E há as forças sociais organizadas, sindicatos, movimentos sociais da terra, a mídia, as universidades, que não estão sendo aproveitadas como atores importantes neste debate, onde há um enorme capital latente de boa vontade. Há jovens que estão, inclusive, dispostos a botar a mão na massa, a serem integrados em processos, a servir como informadores. Porque nós precisamos para isso de muita informação. E temos que acabar de uma vez por toda com duas idéias. A primeira é de que dá para inventar uma fórmula mágica que se aplica de cima para baixo sobre um continente que se chama Brasil. E acabar com a idéia do mimetismo. Minha palavra final: um tipo da transição entre o rural agrícola e o urbano industrial, que ocorreu nos países industrializados, não pode ser generalizado neste século 21 ao resto do mundo. Há pelo menos três diferenças fundamentais. A primeira é que nós nos beneficiamos na Europa da possibilidade de enviar dezenas de milhões de camponeses às Américas. Povoamos às Américas.

Kucinski – Ou matando nas guerras, né?

Sachs – Essa é a segunda. Tivemos duas guerras mundiais e muitos gulags, onde se mataram dezenas de milhões de camponeses. Espero que isso não ocorra mais. E a terceira, que foi muito bem estudada por um economista latino-americano que trabalha em Cambridge, na Inglaterra, Gabriel Palma (8), estamos na fase da desindustrialização do sentido da geração de empregos. Aqueles nossos camponeses que vieram para a cidade eram absorvidos por uma indústria intensiva no aproveitamento de mão-de-obra. Essa fase acabou. Então, tentar reproduzir, aqui e acolá, aquele modelo de transição do rural agrícola para o industrial urbano hoje é um absurdo. Temos que recolocar a agenda de um novo modelo de desenvolvimento rural como absolutamente crucial para o setor.

Aguiar – Antes de encerrar, eu queria lembrar dois aspectos fundamentais. O primeiro é que nós temos que chegar realmente a um novo modelo de biodiversidade, inclusive humana, porque é bom lembrar que se a Europa povoou as Américas, ela também despovoou as Américas. Houve um confronte dramático neste sentido. Segundo, é que este tipo de consciência já gerou também alterações no comportamento, ou intensificou comportamentos antes existentes, em outros agentes da política de financiamento no Brasil. Por exemplo, o Banco do Nordeste já tem atualmente cerca de 600 mil financiamentos ligados ao Pronaf, de agricultura familiar, na região nordestina. Quer dizer, o que pode inclusive servir de modelo para outras iniciativas, em outras regiões. Eu queria agradecer a presença dos nossos convidados, professores Ladislau e Ignacy, e do nosso colunista e editor-associado Bernardo Kucinski, dizendo que esse debate faz parte de uma série da Carta Maior sobre os temas do modelo de produção alternativo de energia, e também as alterações climáticas do planeta Terra. Muito obrigado.

Notas
1. A boutade (tirada, no fraseado coloquial brasileiro) de José Bonifácio é a seguinte: “Se eu pudesse alguma coisa para com Deus, lhe rogaria quisesse dar muita geada anualmente nas terras de serra acima, onde se faz o açúcar; porque a cultura da cana tem sido muito prejudicial aos povos: porque tem abandonado ou diminuído a cultura do milho e do feijão e a criação dos porcos; estes gêneros têm encarecido, assim como a cultura de trigo, e do algodão e azeites de mamona; porque tem introduzido muita escravatura, o que empobrece os lavradores, corrompe os costumes e leva ao desprezo pelo trabalho de enxada; porque tem devastado as belas matas e reduzido a taperas muitas herdades; porque rouba muitos braços à agricultura, que se empregam no carreto dos africanos; porque exige grande número de bestas muares que não procriam e que consomem muito milho; porque diminuiria a feitura da cachaça, que tão prejudicial é do moral e físico dos moradores do campo”. Projetos para o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 181, 182.)

2. A Aliança para o Progresso foi um ambicioso programa apresentado por John Kennedy em 1960 e lançado oficialmente em 1961, prevendo grandes investimentos do governo norte-americano na América Latina para desenvolvimentos sociais. O programa deveria durar 10 anos. Mas depois da morte de Kennedy o programa entrou em decadência até ser extinto por Richard Nixon em 1969. Era uma tentativa de resposta à revolução cubana de 1959. Aliás, Cuba era excluída do programa.

3. O professor Ignacy refere-se provavelmente ao economista John Kenneth Galbraith, que nasceu no Canadá em 1908, foi professor em diversas universidades canadenses e norte-americanas e que assessorou vários presidentes deste país, de Franklin Roosevelt a Bill Clinton. Kenneth indicou-o para o posto de embaixador na Índia. Morreu em 2006.

4. Torta é o nome que se dá ao bagaço remanescente quando se extrai o óleo das oleaginosas.

5. Lester Brown, que foi fazendeiro plantador de tomates no sul dos Estados Unidos, fundou em 1974 o Worldwatch Institute, com apoio da Fundação Rockefeller, uma organização privada de análise das questões ambientais. Tornou-se um dos inspiradores decisivos dos movimentos ambientalistas, tendo posteriormente criado a revista World Watch.

6. Nascida em 1913 e morta em 1996, Germane Soleil ficou conhecida como Madame Soleil, uma das astrólogas mais famosas na França e em toda a Europa. Começou fazendo predições em feiras, depois passou para o rádio, a imprensa escrita e a televisão. Fazia predições sobre o futuro dos políticos europeus. O presidente francês Georges Pompidou respondeu certa vez a um jornalista que lhe exigia prognósticos: “Eu não sou Madame Soleil!”.

7. Na verdade, o Saul Leblon.

8. Professor da Faculty of Economics, em Cambridge.
(POr Bernardo Kucinski e Flávio Aguiar, Agência Carta Maior, 23/03/2007)

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