Para muitos, esgoto a céu aberto, moradias em condições insalubres, proliferação de doenças infecciosas e ratos percorrendo vielas e cômodos das casas são elementos que compõem o cenário de cidades de 200 anos atrás. Contudo, essa realidade não é distante nem no tempo e nem no espaço.
A periferia da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) convive com essas condições. Lá, a exceção é a regra. E a situação se agrava, uma vez que ela está presente em áreas de mananciais, onde estão as fontes de abastecimento de água da população de toda RMSP. As represas Guarapiranga e Billings são exemplos disso.
De acordo com o censo de 2000, só na região entorno da Guarapiranga moravam 800 mil pessoas. Dados da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP calculam que a população atual está em 1,5 milhão. Estimativas do Instituto Socioambiental (ISA) apontam que os núcleos ocupacionais ocupam 17% do entorno da Bacia da Guarapiranga.
“Uma das conseqüências deste processo é a retirada da vegetação nativa, fundamental para a produção de água com qualidade. Atualmente, pouco mais de um terço da área total da bacia mantém sua vegetação original. A diminuição da mata, a intensa ocupação humana e a superexploração para abastecimento estão contribuindo para a redução da represa: em 30 anos, a Guarapiranga diminuiu em 20% seu espelho d' água”, informa o ISA.
A expansão da capital paulista e dos municípios vizinhos começou na década de 50 e foi intensa, principalmente, nos anos 70. Os limites se alargaram horizontalmente, atingindo pontos que ainda eram inabitados, onde havia nada além da mata nativa e os próprios mananciais. “As cidades crescem sem planejamento, de forma desordenada, sem estrutura e contaminando os mananciais”, afirma Marussia Whately, coordenadora do Programa de Mananciais do ISA.
Aos poucos, a pressão imobiliária sobre essas áreas cresceu e, hoje, a ocupação se firma a cada dia, porém as condições de habitação estão longe de serem as ideais. As mediações estão repletas de lojas de materiais de construção e casas que ainda estão sendo levantadas.
A comunidade Vera Cruz, com pelo menos 20 mil pessoas, de acordo com o levantamento da Unidade Básica de Saúde (UBS) Vera Cruz, é uma parte da população que vive entorno da represa Guarapiranga. Ela faz parte do bairro do Jardim Ângela com 316 mil habitantes.
O interessante é que essas novas ocupações se localizam em Áreas de Proteção Permanente (APPs), que são espaços territoriais com função de proteção de ecossistemas. Topos de morro, entorno de nascentes, margens de rios são alguns exemplos de locais que devem ser resguardado pela preservação especialmente da água e do solo.
Por esse motivo, há normas de preservação ambiental que restringem a intervenção humana e as atividades econômicas nas APPs. Em março do ano passado, uma regulamentação estabelecia critérios para regularizar moradias instaladas em APPs até 2001, mas, até então, não havia permissão para que comunidades inteiras se consolidassem como ocorreu nas últimas décadas.
De acordo com Maria Lúcia Refinetti, professora e coordenadora do Laboratório de Habitação e de Assentamentos Humanos da FAU-USP, não é uma coincidência o fato de os limites da região metropolitana alcançarem os mananciais. Segundo a professora, o fenômeno também já pôde ser verificado em outros lugares, como Curitiba e Belo Horizonte. “Existe um forte deslocamento não só para mananciais, mas para qualquer área que tenha qualquer tipo de proteção legal, porque são lugares onde não tem oferta suficiente e por isso tem uma grande pressão. Onde é proibido, o mercado formal não vai. O você acha que é mais fácil botar o proprietário para fora ou tirar árvore que está ali?”, questiona.
A lei, portanto, produziu um efeito inverso do esperado, pois ela nem conseguiu evitar que a região dos mananciais fosse degradada, mas também incentivou o processo de ocupação.
Por conta disso, as moradias não são regularizadas, o que impede que tenham serviços básicos como a distribuição de água, coleta e o tratamento de esgoto. “A lei original impedia que se colocasse água e esgoto para desestimular a ocupação, mas não impediu, porque a questão social é muito maior do que outra. Tem bairro que é atendido com caminhão-pipa”, conta Refinetti.
“O esgoto entra tudo dentro de casa, quando ele desce daqui dessa viela. O cano não agüenta a água da chuva, e, então, vira uma cachoeira. Os ratos ficam andando, desce um monte de sujeira pra todo lado e a criançada gosta muito de brincar por aqui, e ninguém não ta nem aí. O problema maior é a rede de esgoto”, afirma o morador da Vera Cruz, Fernando Guimarães Carlos, 28.
A solução é a improvisação e os esforços da própria comunidade para garantir a existência de condições mínimas de vida.
Contudo, no último dia (20/03), a Lei Específica da Guarapiranga foi aprovada após dois anos de discussão. A lei, que segue diretrizes da lei estadual de proteção e recuperação aos mananciais, centra ações com base nas particularidades da bacia da Guarapiranga. Uma das suas principais atribuições é definir áreas, instrumentos e ações para a recuperação da bacia. Diante disso, é possível que haja um processo de urbanização de determinadas áreas e a remoção de famílias que vivem em locais críticos.
Lógica perversa
A ocupação das áreas de mananciais obedece a uma lógica perversa do atual modelo de expansão urbano. As regiões centrais, já consolidadas, repelem a população pobre, que tem dificuldade em conseguir manter ou comprar uma propriedade em bairros consolidados e tradicionais de São Paulo, para lugares cada vez mais distantes, como a dos próprios mananciais.
Como são locais sem infra-estrutura e longe do centro, os preços do imóvel ou do terreno é muito mais barato. “Quem chega primeiro é quem tem menos condições e não tem nada a perder”, afirma a coordenadora do ISA, Marussia Whately.
Foi o caso de Maria Xavier Flores. Há três anos, o seu filho comprou a sua casa, que conta com um quarto, cozinha e um banheiro por R$ 6 mil, mas ela lamenta o fato de o antigo proprietário não ter informado que todo o esgoto das casas acima da sua passa por debaixo do seu dormitório e, com as chuvas, corre o risco de estourar todo o encanamento dentro de sua casa.
“Se você está desempregado, você passa a pagar aluguel mais barato e vai encolhendo. Aí, eu saio lá da Avenida Paulista e vou vindo encostando: Santo Amaro, Socorro, Piraporinha, aí chega na beira da represa aqui, porque é uma área que ninguém gosta de morar. Você acha que eu estou aqui porque eu quero, porque eu gosto? Se eu tivesse um bom emprego, eu estaria alugando um bom apartamento fora daqui”, conta Lauriano Arife, que mora há dois anos na Guarapiranga.
Hoje, o que se verifica é um crescimento negativo em bairros mais centrais, como a Vila Mariana e o Jabaquara, mas por outro lado, há um adensamento populacional nas regiões periféricas.
Apesar de a média de aumento populacional ser de 1% ao ano, há lugares, como em favelas, que essa percentagem chega a atingir 5%. Por esse motivo, o crescimento urbano em São Paulo ainda é preocupante, uma vez que a demanda por água e energia também acabam aumentando. O quadro piora se não houver perspectiva para a recuperação dos mananciais, já que a quantidade de produção de água hoje já e praticamente a mesma de consumo da RMSP.
“A Bacia do Tietê é cruel pela sua dinâmica social. Estamos criando periferias que são verdadeiras bombas relógio. Hoje, há políticas que reforçam essa dinâmica, como por exemplo, a do setor de transporte”, afirma Marussia. Ela se refere à construção de obras como a do Rodoanel, cujo objetivo é levar a circulação dos transportes, especialmente os pesados, para fora de São Paulo. O trecho sul desse anel viário está planejado para passar sobre a Guarapiranga. “Há 20 anos, o limite era o rio Pinheiros, hoje a cidade ultrapassou esse limite, que está sendo jogado nos mananciais. É a sustentabilidade ambiental da cidade que está em jogo, pois a Billings e a Guarapiranga abastecem 6 milhões de pessoas”, explica.
(Por Natália Suzuki,
Agência Carta Maior, 26/03/2007)