Antônio Ioris*
O que a maioria das comemorações do Dia da Água, neste 22 de março, não menciona é que, enquanto que a elite política e econômica sempre faturou com grandes obras, aos mais pobres coube sempre o osso mais duro da geografia nacional.
Vinte e dois de março: Dia Mundial da Água. Uma data internacionalmente dedicada a se discutir os problemas relacionados ao uso e conservação dos recursos hídricos. Nos últimos anos, tornou-se praticamente lugar comum denunciar a degradação de rios, lagos e aqüíferos. À primeira vista, tem-se a impressão de que já existe suficiente conscientização para a necessidade de tratar melhor nossos recursos hídricos. Contudo, o leitor mais atento provavelmente deve estar ainda se perguntando: afinal, a situação da água tem melhorado ou piorado no Brasil?
Como a maioria das questões ambientais, as respostas a tais perguntas são complexas e sujeitas a uma boa dose de controvérsia. Não pode ser negado que a sociedade ganha com a crescente discussão e tomada de consciência sobre os problemas da água. Mas é preciso dar um passo adiante e apontar as causas políticas e econômicas dos ainda graves problemas de gestão de água. O que se chama de excesso ou falta de água nada mais é do que resultado da degradação ambiental ou conseqüência da injusta alocação de recursos entre os diversos grupos sociais.
O que a maioria das comemorações do Dia da Água não menciona é que, enquanto que a elite política e econômica sempre faturou com grandes obras, aos mais pobres coube sempre o osso mais duro da geografia nacional. Assim como na história dos países industrializados, a modernização econômica do Brasil dependeu e depende, em boa medida, do controle dos recursos hídricos, em especial no que diz respeito à construção de grandes barragens para geração de energia, irrigação e abastecimento urbano. Contudo, apesar do discurso oficial, a maior parte dos resultados desse esforço hidráulico ficaram concentrados nas mãos de uma pequena parcela da sociedade, como empreiteiros, políticos, burocratas, empresários e classes médias em grandes centros urbanos.
Ao mesmo tempo, a infra-estrutura hidráulica foi implantada de modo autoritário e produziu impactos socioambientais consideráveis: êxodo rural, desalojamento de populações indígenas, destruição de ecossistemas, alteração do regime hidrológico, e assim por diante.
Neste ano de 2007, o Dia da Água tem um simbolismo especial no Brasil, porque também se celebra a primeira década da nova legislação dos Recursos Hídricos (Lei 9.433). Essa lei tem sido aplaudida por definir novos mecanismos de regulação ambiental, como emissão de outorga (que é um tipo de licença), cobrança pela captação de água, representação setorial e gestão por bacia hidrográfica.
Muito papel, muita passagem de avião e muito ‘latim’ foram gastos nos últimos anos pra fazer funcionar esta parafernália de gestão de recursos hídricos... Porém, apesar da aparente modernização da legislação, resultados concretos em termos de conservação ambiental e justiça socioambiental são poucos e frustrantes. Como em muitas outras áreas da política brasileira, quando se produz mudança, é para ‘nada realmente mudar’ (parafraseando Tomasi di Lampedusa). Por detrás de um sofisticado vocabulário de apelo ambientalista, a água continua sendo motivo de divisão, lucro, e incerteza. Ao invés de contribuir para reduzir conflitos e recuperar o meio ambiente, a forma como a nova legislação vem sendo implementada nada mais faz do tratar a água como mercadoria.
Com a subserviência ao ‘estalinismo de mercado’, novas formas de enriquecimento avançam por todos os lados sobre a sociedade e a natureza neste país. A prova mais evidente da ligação entre a reforma na gestão do uso da água e a acumulação privada está na recente reforma dos serviços públicos, quando se criaram novas condições para a terceirização de serviços públicos a operadores comerciais através de Parcerias Público Privadas (PPP).
Também a nova Lei do Saneamento, sancionada em janeiro último, cria condições para atrair investimento privado, mas mantém incertezas quanto à titularidade dos serviços, o que pode favorecer a privatização ‘pela porta dos fundos’. Como demonstra a experiência em diversos países, não é necessário privatizar o saneamento para se obter ganhos de eficiência e mitigar os impactos ambientais. Ao contrário, o fundamental é a busca de critérios democráticos que permitam o atendimento às demandas maiores da sociedade, ao invés de decisões seqüestradas por iniciativas bissextas e sem compromisso de longo prazo.
O debate neste Dia da Água deve servir para se compreender que exclusão social e degradação ambiental são tão somente duas faces da mesma moeda. É um equívoco pensar que mecanismos inspirados no mercado, como a cobrança pela água e a privatização de serviços básicos, podem oferecer resposta aos desequilíbrios criados entre atividade econômica e meio ambiente. Falta perceber que gestão ambiental requer muito mais do que atitudes pontuais e isoladas, as quais apenas fortalecem um modelo produtivo que inexoravelmente leva à degradação humana e ecológica. Pelo contrário, soluções efetivas passam pela democratização do Estado e pela inversão das prioridades políticas e econômicas que, historicamente, fizeram do nosso país um dos mais desiguais e mais negligentes no trato do meio ambiente.
Cabe lembrar que José Bonifácio de Andrada e Silva alertava para o risco de destruirmos os recursos hídricos a ponto de, em menos de dois séculos, termos aqui desertos como na Líbia... Vemos que 200 anos já se passaram e, a menos que se mude a forma como a água é usada e se aumentem as oportunidades sociais, vamos ter o gosto amargo de ver cumprida a profecia do patriarca.
* Professor da Universidade de Aberdeen (Escócia) e pós-doutorando no IPPUR/UFRJ.
(
Agência Carta Maior, 22/03/2007)