Artigo: Bush-Lula - Aliança para controlar o mercado mundial de bioenergia
2007-03-20
Por Leonardo Boff*
Se alguém imagina que o presidente norte-americano, George W. Bush, visitou
o Brasil inspirado nas advertências do informe do Grupo Intergovernamental
sobre Mudança Climática (IPCC, sigla em inglês) sobre o irrefreável
aquecimento da Terra, está enganado. Neste campo Bush é um analfabeto, e seu
colega Luiz Inácio Lula da Silva é insensível. Dois foram os motivos que
impulsionaram Bush: um geopolítico e outro energético, derivado da
extraordinária abundância de biomassa na América Latina e particularmente na
Amazônia.
Em seu primeiro mandato, Bush não deu importância geopolítica a esta região.
Mas nos últimos anos, os povos da região elegeram governos de
centro-esquerda ou de esquerda com forte preocupação social. O tema social,
junto com o do desenvolvimento, ganhou centralidade. Este fato despertou
velhos sonhos adormecidos sobre a projeção da América Latina no cenário
mundial. O desejo bolivariano da Pátria Grande ou o de Nossa América de José
Martí, com forte acento antiimperialista e antinorte-americano hoje volta a
ocupar o imaginário político de muitos cidadãos.
A força carismática do presidente venezuelano, Hugo Chávez, em boa parte,
apóia este sonho continental. O governo norte-americano, em princípio, não
se opõe a estas idéias. Mas quer que sejam realizadas sem romper os laços
bilaterais tecidos durante décadas. Bush pode aceitar a integração
latino-americana sempre que seja à maneira de Lula e não à de Chávez, que
não alimente sentimentos antinorte-americanos e nem seja contrária aos seus
interesses.
O segundo grande tema é que se deve encontrar alternativas para o petróleo,
que tem os dias contados entre 2030 e 2040. É o sangue do sistema mundial.
Que matriz energética o substituirá? Neste plano o Brasil é líder mundial.
Grande parte de sua energia é limpa, de origem hidrelétrica, enquanto 29%
vem de biomassa (que em nível mundial representa somente 11%), que explora
em uma dezena de leguminosas, especialmente nas regiões amazônica,
pré-amazônica e no Nordeste.
Contudo, o grande experimento brasileiro é o etanol extraído da
cana-de-açúcar. Em 1975, depois da primeira grande crise do petróleo, teve
início o Programa Pró-Álcool, com uma tecnologia própria, para obter
combustível alternativo à gasolina. Houve períodos em que o etanol
movimentava 80% da frota nacional de automóveis. Quando caiu o preço do
petróleo, o projeto esfriou. Mas com as altas dos últimos anos se reforçou
de maneira poderosa.
Agora, o Brasil produz 16 bilhões de litros, quase todos consumidos
internamente. O carro com motor flex, que funciona com gasolina ou álcool, é
uma marca brasileira registrada. Em dez anos serão necessários mais 12
bilhões de litros anuais para alimentar a expansão dessa frota, cuja
tecnologia é exportada para países como o Japão.
O Brasil tem cerca de 90 milhões de hectares cultiváveis, mais 200 milhões
para pastagem. A agricultura ocupa apenas 62 milhões de hectares dos quais
seis milhões são dedicados à cana-de-açúcar, metade para produzir etanol e
metade para açúcar. Existe potencial para agregar alguns milhões de hectares
à produção de etanol, sem tirá-los da selva ou dos cultivos alimentares.
Prevê-se a produção de 28,4 bilhões de litros até 2017, além de 10,3 bilhões
exclusivamente para exportação.
Os Estados Unidos possuem, desde 2001, biorefinarias e seu objetivo é
substituir 30% do consumo de petróleo até 2030. Nesta caso, o álcool é
obtido do milho, com uma produtividade por hectare duas vezes menor do que a
da cana. O custo subsidiado por litro é de US$ 0,30, contra US$ 0,22 no
Brasil. Isto explica o imposto de US$ 14 por litro aplicado à importação do
etanol brasileiro para proteger os produtores norte-americanos.
Diante desta realidade, Bush se aproximou de Lula para oferecer-lhe uma
associação bilateral. Não foi assinado um tratado, apenas um memorando que
prevê a transferência recíproca de tecnologia, a fixação de um padrão
técnico comum para o etanol e a criação de usinas de biocombustíveis em
países da África, América Central e Caribe.
No dia 2 de março, as Nações Unidas lançaram o Fórum Internacional de
Biocombustíveis, para dar os primeiros passos rumo à organização do mercado
internacional do produto e criar regras e padrões técnicos comuns para
convertê-lo em uma matéria-prima de nível mundial. O Fórum reúne Brasil e
Estados Unidos, produtores de 70% do etanol mundial, e China, Índia, África
do Sul e União Européia.
Bush e Lula perceberam o potencial desta energia limpa, decisiva no futuro
próximo. Estados Unidos e Brasil pretendem ser os dois grandes atores do
mercado da bioenergia. Fica pendente uma grande questão que provavelmente
não preocupa os dois presidentes. Não é urgente mudar o atual modelo de
civilização? A solução encontrada por Bush e Lula apenas lixa os dentes do
lobo, deixando intacta sua ferocidade.
No dia 4 de março, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso publicou um
artigo de alerta: “A maior ameaça para a humanidade é o efeito estufa. Mas o
problema mais amplo é se as práticas ocidentais, ao se generalizarem,
permitirão a convivência pacífica entre o homem e a natureza, e, no limite,
entre os homens”. Fica aqui formulada a demanda de uma verdadeira revolução
nos corações e nas mentes, sem a qual não poderemos evitar as conseqüências
devastadoras das mudanças climáticas em curso.
Sobre estes graves assuntos, os chefes de Estado, como anunciou o presidente
Jacques Chirac, deverão discutir para adotar profundas transformações. Desta
vez não haverá uma Arca de Noé que salvará alguns e deixará os demais
morrerem. Ou nos salvamos todos, ou nenhum.
*Leonardo Boff é teólogo da libertação e membro do Comitê Internacional da Carta da Terra.
(Terramérica/Envolverde, 19/03/2007)
http://envolverde.ig.com.br/materia.php?cod=29291&edt=1