Acampados durante uma semana nas imediações da Torre de TV, no coração da capital federal, cerca de 600 representantes de movimentos sociais e organizações populares da região do Rio São Francisco encerraram a manifestação contra o projeto de transposição de águas para bacias do Nordeste Setentrional, na última sexta-feira (16/03) sem terem sido recebidos pela cúpula do Poder Executivo.
“Decepção é a palavra para o que sentimos ao não sermos recebidos pelo primeiro escalão do Palácio do Planalto”, estoca a nota final dos participantes do Acampamento “Pela vida do Rio São Francisco, contra a transposição”, entre os quais integrantes da Articulação do Semi-Árido (ASA), do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), do Conselho Pastoral da Terra (CPT), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), da Articulação de Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Eles tiveram reuniões com ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), com os presidentes da Câmara e do Senado, Arlindo Chinaglia (PT-SP) e Renan Calheiros (PMDB-AL), respectivamente, e com procuradores do Ministério Público Federal (leia matéria). Receberam apoio da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e, nesta segunda-feira (19/03), serão recebidos no Tribunal de Contas da União (TCU).
A solicitação pela abertura de um debate público sobre o projeto de transposição - incluído no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), carro-chefe deste início do segundo governo Lula – já havia sido protocolada no último dia 22 de fevereiro em carta ao presidente protocolada pelo bispo da Diocese de Barra (Bahia), Dom Luiz Cappio, que em 2005 protagonizou uma greve de fome contra o início das obras da transposição. Em resposta à cobrança que foi retomada com as mobilizações da última semana, o governo se limitou a marcar audiências apenas com dois ministros: Marina Silva, do Meio Ambiente, e o então titular da pasta da Integração Nacional, Pedro Brito, considerado o interlocutor oficial do governo para questões relativas ao empreendimento. Na mesma semana, porém, o próprio governo publicou edital das obras de engenharia, que abrangem a construção dos canais, das estações de bombeamento, túneis, barragens e aquedutos da transposição para as quais serão investidos R$ 3,3 bilhões dos cofres públicos e confirmou a substituição de Brito (que vinha cumprindo a função de ministro desde a saída de Ciro Gomes, atual deputado federal do PSB, há cerca de um ano), por Geddel Vieira Lima, ex-deputado federal do PMDB da Bahia.
A decisão de não comparecer à audiência com o ainda ministro Brito, relata Weber de Avelar, assessor da Secretaria-Geral da Presidência da República, foi dos próprios movimentos. Já a publicação de edital, segue, foi determinada por uma decisão do empreendedor, que no caso da transposição é o Ministério da Integração Nacional (MIN).
Na nota final, os movimentos reclamam da atitude do governo de restringir as conversas ao MIN. “Ignoraram que nossas reivindicações envolviam outros setores do governo e nos desprestigiaram nos impondo o não-diálogo com um ministro, Pedro Brito, que é expressão do poderoso lobby do projeto e cujo substituto já estava anunciado”, emendam.
O documento final dos acampados ressalta ainda que, na única audiência que tiveram com o primeiro escalão do Poder Executivo, a ministra Marina se limitou a dar “explicações tecnocráticas para os licenciamentos já dados à transposição”. E conclui: “'Caiu a máscara’ do Governo Lula. Para muitos de nós, construtores do PT e eleitores de Lula, foi a gota d’água, não nos reconhecemos mais nesse governo que julgávamos nosso. Por que recusar o diálogo? Por que foge da verdade?”. Para Dom Luiz Cappio, o fato de não terem sido recebidos por membros do núcleo que comanda o governo também acabou sendo um “êxito” do acampamento, pois afastou a “cortina de fumaça” e “desmascarou” as intenções reais do projeto. “Na hora em que os pobres chegaram, o governo não os recebeu. A transposição não é para os pobres, é para a elite”.
Mesmo com os últimos acontecimentos, o assessor da Secretaria-Geral disse à reportagem de Carta Maior que o governo pretende manter conversas com as organizações da sociedade civil contrárias à transposição e dar continuidade aos trabalhos de um grupo de trabalho (GT) formado para debater o desenvolvimento sustentável do Semi-Árido, que conta com a participação de 11 ministérios e inclusive tinha sido o pivô de uma aproximação entre as partes no ano passado. Já na semana que vem, prevê Avelar, uma nova reunião do GT, que teve os trabalhos paralisados sob a justificativa do calendário eleitoral do ano passado, poderá ser convocada pela Casa Civil.
Para tentar mostrar a existência de uma agenda positiva entre as entidades da sociedade civil e os povos ribeirinhos, o integrante do governo citou iniciativas dentro do projeto de revitalização do “Velho Chico” que convergem com o Plano Decenal aprovado no Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF). Na última sexta-feira (16/03), Avelar e funcionários de outros órgãos da estrutura federal como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Paraíba (Codevasf) estiveram em Minas Gerais para participar de um compromisso conjunto com o setor siderúrgico e com integrantes do Ministério Público para combinar ações no escopo da revitalização.
A pulverização do plano de revitalização do São Francisco em projetos pontuais, contudo, sofre críticas das organizações engajadas na defesa do rio. “Enfrentamos sacrifícios para mostrar aos poderes instituídos que somos contra esse golpe fatal à vida do Rio São Francisco”, afirmou o bispo de Barra na coletiva de imprensa de balanço do acampamento em que classificou a transposição de “obra insana, louca, desvairada”. “Uma decisão dessa importância para o rio e para o povo não pode ser tomada entre quatro paredes, por meia dúzia de burocratas”, cutucou. Para ele, o projeto está sendo conduzido de forma autoritária. “O povo tem uma resposta a dar e quer mostrar o seu parecer”, continuou, descartando a possibilidade de uma repetição da greve de fome em virtude da existência de muitas alternativas antes de lançar mão antes desse recurso extremo.
A perspectiva apresentada pelo religioso foi reforçada pelas palavras de outros representantes que estiveram presentes na coletiva. “Ninguém enxerga o São Francisco e suas razões. O acampamento foi uma forma de dar visibilidade às posições defendidas por quem depende do rio”, declarou Alzeni Tomás, do CPP, que atua na região do Baixo São Francisco. O indígena Marcos Sabaru, do povo Tingui-Botó, de Alagoas, também manifestou sua indignação com relação à “obra faraônica” que não respeita os “filhos do São Francisco”. Ele crê, porém, na “força da diversidade” em prol de um projeto de convivência com o Semi-Árido. “Estamos para o diálogo. E vamos acampar quantas vezes for preciso, onde quer que seja”. Na nota final, os movimentos sustentam que o acampamento foi a “penúltima tentativa pelo arquivamento do projeto de transposição”. A última, complementam, “será lá na própria Bacia do São Francisco, com os companheiros e companheiras que lá ficaram, para os quais nos faremos multiplicadores da experiência aqui realizada, em vista de outras e mais contundentes ações”.
Contradição
Para o sociólogo Rubens Siqueira, da Articulação São Francisco Vivo e da CPT, as propostas contidas no Atlas do Nordeste da Agência Nacional das Águas (ANA) expõem as contradições da argumentação governamental de que o projeto atenderá aqueles que realmente sofrem com a escassez de recursos hídricos no Semi-Árido. Uma ligeira comparação revela a disparidade do custo/benefício entre as duas propostas. A transposição consumirá R$ 6,6 bilhões e promete chegar a 12 milhões de pessoas de 391 municípios de quatro estados (Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte). O custo dos projetos descentralizados do Atlas será de R$ 3,3 bilhões e atenderá um universo de 34 milhões de pessoas de 1356 municípios de nove estados do Nordeste.
Técnicos da agência reguladora que estiveram com os manifestantes durante esta semana disseram que as iniciativas estão sendo concebidas como complementares. “Não há dúvidas de que as obras previstas pelo Atlas da ANA são voltadas para o abastecimento da população pobre do Semi-Árido. Se os projetos são complementares, está claro que a transposição na verdade atenderá outra parcela da sociedade”, coloca Siqueira.
Ato pró-transposição
Na última quarta-feira (14/03), foi lançada a Frente Parlamentar em Defesa do Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional. Liderada pelos deputados federais Marcondes Gadelha (PSB-PB) e Chico Lopes (PCdoB-CE), a frente já conta, segundo o site do MIN, com a adesão de mais de 150 parlamentares.
A primeira iniciativa do grupo será a realização de um grande ato público, em Brasília, reunindo políticos (governadores, deputados federais e estaduais) e entidades da sociedade civil que são favoráveis ao projeto. O ex-ministro da Integração Nacional e deputado Ciro Gomes (PSB-CE), um dos principais responsáveis pelo desenho da obra, sugeriu também a realização de audiências públicas nas assembléias legislativas em estados em que a resistência à transposição é maior, como na Bahia, em Sergipe, Alagoas e Minas Gerais.
No lançamento da Frente, o então ministro Pedro Brito informou que o início das obras depende apenas da licença de instalação do Ibama. O Batalhão de Engenharia do Exército, segundo ele, está mobilizado para fazer os trabalhos iniciais do (o MIN já repassou cerca de R$ 100 milhões para o Ministério da Defesa). Na mesma quarta-feira (14/03), o MIN fechou contrato, no valor de R$ 145 milhões, com as empresas que fabricarão as bombas para as estações de elevação das águas. Este ano, confirmou Brito, foram lançados três editais - de um total de 45 - para a realização do projeto. Além do edital de R$ 3,3 bilhões lançado na última terça-feira (13/03), o edital para escolha das empresas que irão supervisionar as obras, no valor de R$ 84 milhões, saiu no início deste mês. O prazo para o envio de propostas de empresas interessadas em realizar o projeto-executivo também foi encerrado nesta semana. E o MIN está analisando as propostas recebidas.
(Por Maurício Hashizume,
Agência Carta Maior, 17/03/2007)