Determinante para o modo de produção e consumo, a energia elétrica voltou ao centro dos colóquios sobre sustentabilidade com a emergência do aquecimento global. No Brasil, o setor elétrico ganhou destaque especial com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), conjunto de medidas que busca aumentar investimentos públicos e privados no setor produtivo.
Na esteira do PAC, vozes reverberaram aos quatro ventos para o risco de um novo “apagão” de energia elétrica que limitaria o potencial de crescimento econômico do país. Na última terça-feira (13/03), Marconi Perillo (PSDB-GO), Kátia Abreu (PFL-GO), Eliseu Resende (PFL-MG) e Wellington Salgado (PMDB-MG) puxaram o grupo de senadores que colocou, durante a audiência pública de apresentação do PAC que contou com a presença da ministra Dilma Rousseff (Casa Civil) e do ministro Guido Mantega (Fazenda), a preocupação com relação ao abastecimento de energia elétrica nos anos que se seguem, cobrando maior oferta de eletricidade, redução dos impostos e de gastos correntes, sem deixar de exigir reformas constitucionais como a que flexibiliza os direitos trabalhistas.
Proferida pela ministra que comandou a pasta de Minas e Energia no início do primeiro governo Lula e estabeleceu um novo marco para o setor elétrico em 2004, a resposta confiante de que não haverá problemas de abastecimento nos próximos anos pode até ter confortado alguns senadores, mas camuflou outros questionamentos abafados pelo potente discurso do crescimento econômico.
Qual é a real demanda do Brasil por mais eletricidade? É mesmo preciso gerar cada vez mais e mais energia? Esse é único caminho? Perguntas como essas são repetidas sem trégua por organizações como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que promoveu protestos durante a semana passada por conta do Dia Mundial de Luta Contra as Barragens, celebrado na última quarta-feira (14/03).
Dissecando a demanda
Geralmente, a demanda por energia elétrica é vocalizada por agentes econômicos interessados na multiplicação dos seus faturamentos. No entanto, ainda existe uma demanda social de famílias no Brasil que estão fora do raio de alcance desse serviço ou não têm condições financeiras de pagar pela eletricidade em seus lares. O próprio PAC prevê a “universalização” do acesso por meio de um investimento de R$ 8,7 bilhões para o atendimento de mais 5,2 milhões de pessoas até 2010 – ao todo, o programa planeja suprir 12 milhões de brasileiros.
O consumo familiar no Brasil ainda é baixo, enfatiza Célio Berman, do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (IEE/USP). A média nacional é de 170 kWh por mês para cada domicílio (o consumo médio mínimo para o bem-estar de uma família média é de 220 kWh, de acordo com Berman); no Piauí, o consumo médio cai para 80 kWh. No Maranhão, a energia da Hidrelétrica de Tucuruí abastece a Alumar (da Alcoa, gigante do segmento eletrointensivo do alumínio) e 260 mil famílias ainda vivem sem energia. O atendimento dessa demanda social para a garantia da qualidade de vida, na visão do professor, deveria ser prioridade absoluta do planejamento energético.
Existe uma tendência, confirmada pelo coordenador do Programa de Planejamento Energético da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ) e ex-presidente da Eletrobrás, Luiz Pinguelli Rosa, de aumento do consumo de energia per capita. A disparidade entre ricos e pobres é, também nesse quesito, descomunal.
A previsão do professor Ivan Camargo, do Departamento de Engenharia Elétrica da Universidade de Brasília (ENE/UnB), fundamenta-se na trajetória de crescimento médio de consumo dos últimos 20 anos e na posição do país perante o cenário internacional. “Tirando o ano de 2001, quando houve o racionamento em função do ‘apagão’, o crescimento médio beirou os 4,5% e deve se manter nos próximos anos. Nada indica que isso vai mudar. Até porque o país continuará sendo exportador de energia, e não de conhecimento”.
O sistema brasileiro tem uma potência instalada de 96.200 MW. A subtração da carga média requerida no mês de janeiro de 2007 (49.183 MW) da capacidade média de geração assegurada (57.500 MW) revela que o sistema elétrico nacional tem uma capacidade de reserva de pelo menos 8.317 MW médios, calcula Dorival Gonçalves Júnior, do Departamento de Engenharia Elétrica da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). “Este valor equivale praticamente à energia assegurada atribuída pela Aneel [Agência Nacional de Energia Elétrica] para [a Hidrelétrica de] Itaipu, que gera uma média de 8.612 MW”, compara. “Portanto, a atual super valorização do ‘risco hidráulico’ feito por muitos agentes do sistema elétrico é falsa, se respeitada a energia assegurada do sistema”.
No Plano Decenal de Expansão de Energia Elétrica 2006-2015 (PDEE), elaborado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), órgão ligado ao Ministério de Minas e Energia (MME), três cenários de crescimento de carga para o país são colocados. O primeiro (“trajetória alta de mercado”) estima o crescimento da carga para os próximos quatro anos com variação de 5,1% e crescimento médio do Produto Interno Bruto de 4,5% ao ano. O segundo (“trajetória referência de mercado”) prevê o acréscimo anual até 2010 de 4,9% com as riquezas do país crescendo em média 4% até 2010. E o terceiro (“trajetória baixa de mercado”) admite o aumento da carga em 3,9% mediante um PIB médio favorável de 3% a cada ano.
Projeções feitas por Gonçalves Júnior com base na mesma energia assegurada de 57.500 MW para 2010, sem que geração adicional de energia alguma seja adicionada ao sistema até lá, mostram que só haveria déficit significativo (de cerca de 450 MW) na hipótese de “trajetória alta”, ou seja, caso o consumo cresça 5,1% ao ano. “Esse cenário parece improvável, pois os dados registrados pelo ONS [Operador Nacional do Sistema] nos anos de 2005 e 2006 foram, respectivamente, de 4,5% e 3,9%, E para este ano o ONS estima um aumento de 3,6%”.
O crescimento do PIB é comumente apresentado como referencial para determinar o grau de expansão de oferta. Não faltam especialistas a advertir que, caso a economia brasileira acumule mais que 4,5% ao ano – referência utilizada no quadro de “trajetória alta de mercado” definido pela EPE para os próximos anos -, as previsões de oferta podem não dar conta da demanda. O professor da UFMT também questiona essa influência direta do crescimento do PIB nacional na demanda por eletricidade.
Para fazer uma avaliação do equilíbrio entre oferta e demanda deste ano até 2010, a EPE apresentou o que chama de Balanço de Garantia Física. A trajetória inferior desse Balanço foi costurada a partir de uma estimativa de crescimento de 4% do PIB ao ano e a trajetória superior teve como alicerce uma taxa média de crescimento do PIB anual de 4,8%. Também nessas projeções, só poderá haver déficit no caso da trajetória superior de 764 MW médios em 2010, caso o consumo médio total suba 5,6% (5,8% residencial, 4,9% industrial e 7,4% comercial) a cada ano. Para a EPE, esse possível déficit não implica em riscos, pois leilão previsto de energia nova deve suprir essa diferença.
Mesmo com esses estudos, a EPE acabou sendo contestada por setores do próprio governo. Matéria do jornal O Estado de S. Paulo revelou que a Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda apresentara ao Palácio do Planalto, durante a elaboração do PAC, um relatório indicando risco de um novo “apagão” de energia elétrica caso o PIB fique acima de 5% - como quer o governo.
De acordo com o secretário de Planejamento e Desenvolvimento Energético do MME, Márcio Zimmermann, o setor não enfrenta grandes problemas porque o quadro estrutural está garantido e a conjuntura hidrológica é boa. Segundo ele, os planos do início do governo (2003/2004) foram montados com base no racionamento de 2001, resultado do descompasso e desmonte estrutural somado a problemas conjunturais de estiagem. “Mudou a lógica de que se o país precisasse de energia, o mercado resolveria”, descreve.
Um novo plano de longo prazo, antecipa o secretário, está prestes a ser analisado pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) e apresentado à sociedade no mês que vem. Segundo Zimmermann, o documento estabelece desafios “muito grandes para aumentar a indução para economia” estão sendo assumidos. Se as taxas de consumo industrial, comercial e residencial aumentarem mesmo induzidas pelo crescimento econômico anunciado pelo governo, ele só vê um caminho: o aproveitamento do potencial hidrelétrico, para garantir a geração de mais energia elétrica com o intuito de atender a essa demanda e conter o preço.
Menos é mais
“Acho que o Ministério de Minas e Energia ainda está devendo uma discussão real e detalhada sobre a demanda de energia elétrica no Brasil”, defende o jornalista Washington Novaes, com larga experiência no acompanhamento de questões relacionadas à sustentabilidade. Sem deixar de citar a recompensa potencial de esforços na área de eficiência energética e de repotenciação de usinas geradoras antigas, Novaes retoma o exemplo dado pelos Estados Unidos, após a primeira crise do petróleo. Entre 1974 e 1988, a economia norte-americana cresceu 35% sem aumento de consumo de energia elétrica, com um amplo programa de substituição de aparelhos e equipamentos mais econômicos. “O aumento da potência instalada não é a única possibilidade existente. Poupar 1kWh custa cinco a seis vezes menos do que gerar a mesma quantidade de energia”.
A maior eficiência no uso de energia, por sinal, faz parte da Agenda 21, plano de ações com 40 capítulos que concilia a sustentabilidade ambiental, social e econômica emanado da Eco-92 (Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento - Cnumad), realizada no Rio de Janeiro em 1992, também conhecida por Rio 92). No início da década de 80, a estatal Eletrobras engendrava dobrar a sua capacidade de geração de energia e contratou a consultoria do físico norte-americano Howard Geller. O especialista apontou, na ocasião, para as vantagens da redução do consumo de energia. A recomendação acabou originando o Programa Nacional de Combate ao Desperdício de Energia Elétrica (Procel), iniciativa que subsiste sufocada por verbas insignificantes e contingenciamentos. Ainda hoje, Geller sugere a realização de leilões de eficiência energética ao governo brasileiro.
O “apagão” de 2001, segue Lúcia Ortiz, da organização não-governamental (ONG) Amigos da Terra Brasil, impôs o racionamento e proporcionou, como toda crise, uma grande oportunidade de esclarecimento público. “Houve uma queda de 25% do consumo que foi mantida por mais de três anos. Foi uma prova de que é possível ter qualidade de vida com menos energia”, recupera a pesquisadora do grupo de trabalho de energia do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (FBOMS), que disponibiliza uma cartilha virtual sobre eficiência energética disponível na Internet.
O comprometimento dos cidadãos brasileiros, analisa Lúcia, contrastou com a baixa intensidade das políticas do governo federal. A despeito de iniciativas como o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa), o modo de produção e de consumo que requer um aumento contínuo de geração de energia não sofreu alterações. Segundo ela, o grau de mobilização da população em nível local mundo afora é cada vez maior principalmente por causa do impacto das mudanças climáticas. Mesmo nos EUA, país que se recusa a assinar o Protocolo de Kyoto (que estabelece metas para a redução de emissão de gases estufa na atmosfera), há iniciativas das mais diversas que buscam minimizar o impacto relacionado à energia. Projetos em nível municipal como o que prevê a instalação de coletores solares em novas edificações podem diminuir em até 20% da demanda de energia nos horários de pico de consumo.
A Agenda Elétrica Sustentável, lançada em setembro do ano passado pela WWF, estima que as metas de expansão para 2020 podem ser reduzidas em até 38% se o país utilizar fontes alternativas com mais vigor. Outro estudo produzido pelo professor Berman a pedido da WWF quantificou os ganhos com investimento da “repotenciação” (troca de equipamentos e reparação nos parques) das 57 usinas hidrelétricas com mais de 20 anos de funcionamento. Com o mesmo volume de água, seria possível gerar mais 8 mil kWh de energia.
Em parceria com o Grupo de Engenharia de Energia e Automação de Elétricas da Escola Politécnica da USP (Gepea Poli/USP), o Greenpeace também apresentou mês passado o caderno [R]evolução Energética, no qual se projeta um patamar de consumo final 30% menor em 2050 por meio do uso de equipamentos elétricos eficientes em todos os setores. A intensidade elétrica - que equivale à quantidade de energia necessária para produzir uma unidade de PIB – também pode ser reduzida em 30% até 2050 no cenário de Revolução Energética. A diferença do custo de R$ 0,10 a R$ 0,20 pela adoção de tecnologias renováveis, entre 2010 e 2040, praticamente inexistirá em 2050, calculam.
“A redução de consumo é economicamente vantajosa", arremata Artur Moretti, do Centro de Estudos para o Desenvolvimento Regional da Universidade Federal de Rondônia (CEDR/UNIR). A opção pelo custo evitado poderia redirecionar investimentos governamentais do custo marginal de expansão (dinheiro necessário para construir mais usinas) diretamente para o fortalecimento de políticas para empreendimentos de baixo impacto socioambiental voltados para a produção local de energia. Com as mudanças climáticas, complementa Lúcia, a escassez dos recursos naturais (não apenas de combustíveis fósseis, mas da própria água) e a mudança na vazão dos rios já estão a caminho. Ela dá a fórmula para a segurança energética de longo prazo: diversificação e descentralização.
(Por
Maurício Hashizume,
Agência Carta Maior, 16/03/2007)