O desencontro acerca do projeto da transposição do Rio São Francisco entre o governo federal e as entidades e movimentos sociais contrários à obra se acentuou de vez nos últimos dias. Na mesma semana em que os movimentos montaram acampamento em Brasília e buscaram diálogo com os três Poderes para tentar sensibilizar as autoridades e a opinião pública, o Ministério da Integração Nacional (MIN) publicou no Diário Oficial da União o principal edital para o início das obras.
Com R$ 3,3 bilhões previstos, a publicação do edital é um sinal inequívoco de que o governo não está disposto a negociar o projeto de transposição. A reportagem de Carta Maior entrou em contato com a assessoria de imprensa do MIN no início da semana passada para entrevistar o então ministro Pedro Brito, sobre a divulgação dos editais, mas não obteve retorno. Brito foi substituído na sexta-feira (16/03) pelo ex-deputado Geddel Vieira Lima (PMDB-BA), que prometeu dialogar "antes, durante e depois" com os diferentes segmentos da sociedade. Ele reconheceu que o polêmico projeto que pretende levar água do São Francisco para as bacias do Nordeste Setentrional por meio de dois canais e elevações precisa ser melhor explicado para que a população, mas disse que não pretende “abrir mão da indelegável procuração que recebemos do povo brasileiro de governar”. “Vamos seguir na direção que o presidente da República determinar”, resumiu.
Para que as obras previstas no edital publicado na terça-feira (13/03) possam ter início, o MIN depende da emissão da licença de instalação por parte do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). O projeto já conta com a licença prévia. No encontro em que recebeu representantes de entidades contrárias à transposição que participaram do acampamento na última quarta (14/03), a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, afirmou que a concessão da licença ambiental prévia para transpor o São Francisco obedeceu a normas exclusivamente técnicas. Em resposta oficial de seu ministério a representantes de movimentos contrários à transposição, Marina foi categórica: “Nossa decisão não é política. Não é a favor do governo ou dos movimentos. É uma decisão exclusivamente técnica sobre um processo de licenciamento transcorrido com absoluta isenção e independência”.
A emissão da licença prévia ocorreu ainda em abril de 2005 e, segundo a assessoria de comunicação do Ibama, a licença de instalação precisa ser emitida, em tese, dentro de um prazo de seis meses após a licença prévia. No entanto, como existe a necessidade de o empreendedor (no caso, o MIN) responder a determinados pedidos do Ibama, na prática o projeto vai e volta muitas vezes, ampliando bastante o prazo estipulado pelas normas do licenciamento.
A abertura de um processo de diálogo entre o governo e movimentos contrários à obra foi um dos pontos do acordo que pôs fim à greve de fome de Dom Luiz Cappio, bispo de Barra (BA), em 2005. Três meses depois, Cappio esteve no Palácio do Planalto para apresentar propostas para a região. Em 2006, um encontro para aproximar as partes em torno da questão maior do desenvolvimento do Semi-Árido chegou a ser organizado pela Casa Civil, com participação ampla de diversos ministérios e várias organizações da sociedade civil.
As articulações em torno dessa nova mesa de diálogo, porém, foram paralisadas durante o período eleitoral. Durante esse período, os movimentos mantiveram mobilizações contra a obra - enquanto o MIN se preparava para o lançamento dos editais de módulos menores executivos da transposição. Reeleito, o governo incluiu o projeto no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o que alargou o distanciamento entre as partes, deixando transparecer inclusive diferentes perspectivas das entidades acerca do tema. Diante dessa situação, Frei Cappio voltou ao Palácio do Planalto para entregar nova carta ao presidente Lula solicitando o estabelecimento de um diálogo público em torno do empreendimento orçado em R$ 6,6 bilhões.
Durante toda semana em que estiveram acampados "Pela vida do Rio São Francisco e do Nordeste, contra a Transposição", as lideranças dos movimentos e entidades tentaram marcar uma audiência com autoridades do governo federal. A Secretaria-Geral da Presidência da República agendou, além do encontro com Marina Silva, uma conversa com o ainda ministro Pedro Brito, designado oficialmente pelo governo para tratar do assunto. Diante do sabido posicionamento (e da iminente substituição) de Brito, a proposição foi recusada pelos manifestantes, que deixaram a Esplanada sem terem sido recebidos por ministros da cúpula do Palácio do Planalto.
Tabuleiro jurídico-político
Sem interlocutores no núcleo do Executivo, os movimentos à frente dos protestos na capital federal, como o Fórum Permanente de Defesa do Rio São Francisco, a Cáritas, a Articulação no Semi-Árido Brasileiro (ASA), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e Conselho Pastoral dos Pescadores travaram, ao longo da semana, conversas com diversos representantes do Judiciário e do Legislativo, além de audiências públicas junto ao Ministério Público Federal e à Câmara dos Deputados.
No caso do STF, a Corte máxima do país e instância final dos embates legais acerca da transposição, os ministros do tribunal que se reuniram com as entidades ouviram as críticas dos movimentos ao projeto, mas afirmaram que irão analisar o projeto estritamente do ponto de vista jurídico. Em dezembro, o ministro Sepúlveda Pertence suspendeu todas as liminares contrárias à obra e, segundo a assessoria de imprensa do Supremo, ainda não houve nenhum andamento a partir do recurso que o procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, apresentou em fevereiro contra a decisão de Pertence. A assessoria acrescentou que não há um prazo delimitado para que determinado assunto entre na pauta do STF – elaborada a partir de critérios jurídicos, de hierarquia entre os temas e, certamente, critérios relacionados à conjuntura e urgências políticas do país.
A reportagem de Carta Maior consultou o MPF quanto à possibilidade de, antes de o recurso apresentado pelo procurador-geral ser analisado no Supremo, o Ibama fornecer a licença para o projeto. Neste caso, a assessoria de imprensa do Ministério Público explicou que, diante da iminência de a obra ser iniciada, o órgão pode ingressar com mandado de segurança no STF, a fim de que o recurso seja analisado antes do início das obras. Com relação aos prazos e ritos do Supremo, o MPF não possui mecanismos para interferir.
Para reforçar o pleito, os participantes do acampamento protocolaram uma nova ação popular, nesta mesma sexta-feira (16/03), contra a transposição das águas do rio São Francisco no STF com base em parecer do Tribunal de Contas da União (TCU). Segundo o acórdão 2017/2006 do TCU, a abrangência alegada do programa (12 milhões de pessoas) é incerta, já que ainda não existe infra-estrutura nos Estados para atingir esse contingente estimado pelo MIN.
No Congresso Nacional, a semana movimentada em torno da transposição também se refletiu nos trabalhos do Senado e em especial da Câmara – permitindo aos deputados e senadores ampliarem substancialmente suas informações e visão quanto à pauta. Foram criadas diversas frentes parlamentares em relação ao tema, tanto contrárias quanto favoráveis ao projeto, assim como articulações em defesa da revitalização do rio. Além disso, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 524/2002) que aborda esse tema entrou na pauta de votação da Câmara. A PEC, se aprovada, pode garantir recursos de cerca de R$ 300 milhões anuais ao longo de duas décadas para a revitalização da bacia do São Francisco, uma das mais degradadas do país. Para se ter uma idéia tal montante ao longo de vinte anos representaria mais de quatro vezes o que o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) prevê para o mesmo fim, cerca de R$ 1,3 bilhão em quatro anos.
No âmbito da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara, foi criada uma subcomissão voltada a acompanhar a transposição do São Francisco, que organizou uma audiência pública sobre o tema na quinta-feira (15/03). A reunião ocorreu em plenário repleto de representantes das entidades, e contou essencialmente com a participação de algumas das principais vozes contrárias à obra, de modo que o governo federal optou por não enviar representantes.
Atlas da ANA
Um tema que se fez muito presente na audiência na Câmara foram as propostas apresentadas pela Agência nacional de Águas (ANA) em seu “Atlas do Nordeste”, publicado no final de 2006. A publicação elucida a situação da disponibilidade de água na região e traz uma série de recomendações quanto à gestão e aos investimentos prioritários para ampliar o acesso aos recursos hídricos no Nordeste.
A própria ANA foi o órgão do governo federal responsável pelo aval hídrico à transposição, concedendo a outorga que estabelece a quantidade de água que o São Francisco poderia disponibilizar para este fim. Embora os integrantes da ANA venham afirmando publicamente que as obras por ela sugeridas no Atlas não substituem a transposição, e que ambos são complementares, os dados apresentados pela agência vêm se colocando como elemento central nas análises mais recentes sobre se a transposição deve ser o investimento prioritário na infra-estrutura hídrica nordestina.
No artigo “Detalhes do Atlas do Nordeste” Roberto Malvezzi, o Gogó, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), recomenda que as pessoas utilizem o material para formar sua opinião quanto ao que deve ser prioridade “Cada um pode acessar o site [da ANA] e conferir Estado por Estado, município por município o que está sendo proposto. Ali está o diagnóstico, a análise crítica, a proposta de solução e o orçamento”. Gogó continua seu artigo afirmando que, “Se todas as obras [que constam no Atlas] fossem feitas em todo os Estados do Nordeste, aproximadamente 34 milhões de nordestinos seriam beneficiados, sendo que aproximadamente 20 milhões só no Semi-Árido. Essas obras têm o custo de 3,6 bilhões de reais, metade da transposição, e beneficiariam três vezes mais gente do que a transposição diz que vai beneficiar (12 milhões)”.
(Por Antonio Biondi e Maurício Hashizume,
Agência Carta Maior, com informações da Agência Brasil,16/03/2007)