Florianópolis está ficando sem água. Dois dos três sistemas que abastecem a capital catarinense já operam no limite, e o maior deles tem condição de suportar o fornecimento por no máximo 20 anos. As discussões sobre o plano diretor, que deve ser concluído até o final do ano, tentam barrar o crescimento insustentável.
O crescimento acima da média nacional levou a cidade ao limite de disponibilidade de recursos naturais. Enquanto a taxa de crescimento em capitais como São Paulo e Porto Alegre fica abaixo de 1,6% ao ano, em Florianópolis passa dos 3% por conta do avanço do mercado imobiliário. Já na produção de recursos para atender ao crescimento, o resultado é deficitário. Florianópolis produz apenas 30% da água que consome. Para suprir o consumo da maior parte da população, a capital depende dos recursos hídricos da adutora de Pilões, formada pelos rios Vargem do Braço e Cubatão, no município de Santo Amaro da Imperatriz.
"Há muito tempo a ilha dá sinais de esgotamento. Florianópolis já não produz água pra si e, além disso, o fornecimento de energia elétrica e a própria mobilidade urbana já estão comprometidos", diz a vereadora Ângela Albino (PCdoB). "O que temos discutido no plano diretor é uma trégua em relação a grandes empreendimentos."
Segundo números da
Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan), a região metropolitana de Florianópolis consome aproximadamente 2.500 litros de água por segundo (l/s). A cota é dividida entre os dois mananciais próprios - Lagoa do Peri, que abastece o sul da ilha, parte da Lagoa da Conceição e Barra da Lagoa (200 l/s) e Aqüífero de Ingleses, que abastece o Norte da Ilha (310 l/s) - mais a adutora de Pilões, com produção de 2 mil l/s.
"A Casan também tem poços no Campeche (bairro no sul da ilha). No período mais intenso do verão, para não avançarmos na Lagoa do Peri, que é o nosso compromisso, ativamos esses poços", explica Cláudio Floriani, superintendente de Recursos Hídricos e Meio Ambiente da companhia. "Também temos alguma captações em cinco represas antigas, para contribuir em momentos de crise", diz.
Limite para crescer
Com os sistemas da Lagoa do Peri e do Aqüífero de Ingleses operando no limite, a segurança do abastecimento vem de fora. "Nossa perspectiva é de que Pilões pode abastecer a região metropolitana por mais 10-20 anos. O que nós precisamos é um trabalho de preservação, especialmente da bacia do rio Vargem do Braço, para garantir a qualidade daquela água."
Quando o prazo esgotar, a Casan terá que avançar mais sobre a água de outras regiões. "O que teremos que fazer para o futuro é armazenar mais água no [rio] Vargem do Braço. Tem disponibilidade, tem toda a condição de fazer isso", diz Floriani.
Para o superintendente, o futuro do abastecimento na capital depende do plano diretor, ainda em elaboração. "O que temos discutido com a prefeitura e o Ministério Público é que para fazer qualquer ampliação das cidades é necessário ter o plano diretor concluído. Como a Casan vai calcular e orientar sua ampliação se o município não diz para onde vai crescer?", questiona.
De acordo com o superintendente, a disponibilidade de recursos hídricos não tem condição de acompanhar o crescimento da capital. "O setor imobiliário quer crescer, o alerta vermelho deles nunca vai tocar. Cabe ao poder público impor os limites. Não dá pra continuar crescendo desse jeito, de maneira nenhuma. Isso é uma discussão que temos na Agenda 21: qual é o nosso limite?"
Floriani não sabe responder. "A Casan não colocou esse limite ainda. Impusemos um limite, por exemplo, no sistema Costa Leste-Sul [Lagoa do Peri]. Algumas pessoas, inclusive ligadas ao Ipuf [Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis], defendiam um plano de expansão na planície do Campeche pra colocar 450 mil pessoas. A cidade, hoje, não tem toda essa população. Chegou um momento de muita tensão na Câmara de Vereadores, em que a Casan pediu para ser ouvida e informou que tinha condições de abastecer apenas 130 mil habitantes naquela região", diz.
Super desperdício
Para a médica sanitarista Vera Bridi, que faz parte da comissão de saneamento ambiental e abastecimento de água do plano diretor, a discussão sobre o avanço do mercado imobiliário não pode esperar até que uma catástrofe ocorra. "A população vai ser condenada a ser camareira e manobrista? Só dono de resort vai sobreviver?", critica.
Os problemas de falta de saneamento básico e desperdício de água agravam a crise no abastecimento. De acordo com dados do projeto "Novo modelo de gestão para água e esgoto da região metropolitana da Grande Florianópolis", publicado no ano passado em conjunto por órgãos empresarias e do governo, cerca de 30% da água captada é perdida por falhas na distribuição, como rachaduras em canos, o que somou, em 2004, mais de 9 bilhões de litros perdidos.
Em relação ao esgoto, os problemas vão além da falta de recursos. "Nós estamos com uma estação de tratamento de esgoto (ETE) no [bairro] Saco Grande pronta, com dinheiro público gasto e não está em funcionamento. Por quê? Porque algumas famílias estão preocupadas com a desvalorização que seus imóveis podem ter ao serem vizinhos de uma ETE. Então todo mundo quer que trate esgoto, que colete o lixo, mas longe da sua casa", reclama Cláudio Floriani.
Aqüífero em risco
O Aqüífero de Ingleses, que abastece cerca de 130 mil pessoas no Norte da Ilha, já
opera no limite da capacidade. De acordo com estudo encomendado pela Casan, a captação de água no lençol freático não pode ultrapassar 390 l/s. "Captamos 310 l/s e concorremos com 6 mil ponteiras clandestinas das quais não temos condições de estimar a vazão. Tem gente com uma ponteira em casa e gasta pouca coisa, agora também tem hotel, condomínio", diz Floriani.
De acordo com o superintendente, a Casan não fiscaliza as ligações irregulares porque não tem poder pra isso. "Quem tem poder de polícia em relação a essa questão é a
vigilância sanitária do município. Nós não temos como coibir esse tipo de coisa. Essas pessoas deveriam ter licença ambiental para perfurar poços artesianos. Ninguém tem. É obvio que o poder público não tem como controlar a ponteira de uma residência, mas o que mais nos preocupa são os condomínios e edificações multifamiliares", diz Floriani. O responsável pela vigilância ambiental do município viajou e não foi encontrado pela reportagem para falar sobre o assunto.
Segundo Floriani, a Casan cumpre o seu papel ao participar dos debates. "A Casan foi motivadora de uma parceria com o Ministério Público que resultou em uma recomendação - que é obvio que a Casan pode descumprir, mas não tem interesse - para que não se libere ligações de água em novos empreendimentos no Norte da Ilha", disse.
Entretanto, em agosto passado, a companhia emitiu parecer favorável à construção do
Condomínio Vilas do Santinho, no Norte da Ilha, com capacidade para 400 moradores. Floriani explica que a Casan optou pelo menor dos males. "O pedido de viabilidade do Vilas do Santinho foi anterior à recomendação do MP, e eles fizeram uma proposta - não estou defendendo - de expansão gradativa. Para nós, é preferível que o empreendimento seja abastecido pela Casan e controlado, do que ser do jeito que é hoje [no Costão do Santinho Resort], que eles têm poços e tiram o tanto que querem sem nenhum controle", justifica.
Contradição governamental
Para a vereadora Ângela Albino, o governo entra em contradição quando o assunto é expansão no Norte da Ilha. "Neste final de ano eles tiveram que chegar a um limite de uso fora da prudência em relação ao Aqüífero de Ingleses. Tiveram que correr riscos. De um lado a própria Casan identifica esse alerta, no entanto, o governador do Estado foi até o Rio Grande do Sul no início do ano para debater com o desembargador a liberação das licenças ambientais para a instalação do
Residencial Costão Golf. Esse empreendimento, além de ficar sobre o lençol freático arenoso e superficial e necessitar de uma quantidade enorme de veneno para tratar a grama, prevê 450 unidades habitacionais de grande porte", diz.
"Nós sabemos que o Aqüífero de Ingleses está no limite da fragilidade. Se o nível da água baixar muito, vai misturar com a camada de água salgada que fica no fundo, e daí leva 400 anos para recuperar. E o aqüífero está em um limite perigoso para atingir a salinização", afirma.
O uso descontrolado da água já teve conseqüências desastrosas em Florianópolis. O aqüífero da Praia Brava foi contaminado com água salgada em 2005 por conta da urbanização intensa e teve de ser abandonado. O abastecimento das dezenas de condomínios instalados na praia passou a depender do Aqüífero de Ingleses. "O sistema foi entregue pra uma empresa privada [loteamento América do Sol], que depois chegou a buscar a justiça para entregar o sistema porque os usuários não pagavam a conta da água", diz Cláudio Floriani.
Se o Aqüífero de Ingleses tiver o mesmo destino do manancial da Praia Brava, o poder público não terá condições de abastecer imediatamente a população. "Hoje seria o colapso. Nós não temos uma rede que atenda ao Norte da Ilha, eles estão construindo alternativas, mas a região é muito distante do centro", diz Ângela Albino.
Sobre as perspectivas de conscientização, a vereadora é pessimista. "Eu temo que nós precisemos tornar ainda mais trágica essa situação para que haja sensibilidade do poder público", diz.
PL das cisternas
Um projeto de lei, que deve ser encaminhado à Câmara de Vereadores até o fim deste mês, torna obrigatória a construção de cisternas em edificações com área a partir de 250m2 em Florianópolis. A medida serve tanto para novas construções quanto para reformas.
A água captada deve ser utilizada em vasos sanitários, para lavar carros e calçadas, na irrigação, em limpeza de prédios e piscinas, desde que sejam respeitadas as recomendações da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). As tubulações de água da chuva devem ser diferenciadas e destacadas com o aviso: "água não potável". O projeto será apresentado ao prefeito Dário Berger no dia 27/3, durante a reunião da Agenda 21.
(Por Francis França, AmbienteJÁ, 16/03/2007)