De guerrilheiro a fabricante de biogás: produção contribui para deter o crescente desmatamento
2007-03-13
Antes fabricava minas terrestres
para conter o avanço do exército na guerra civil de El Salvador (1980-1992).
Hoje, o ex-guerrilheiro Félix Vasquez, ou “El Rocketero”, como era chamado
quando militava na então insurgente Frente Farabundo Martí para a Libertação
nacional (FMLN), devido às suas habilidades para fábrica artesanalmente armas
do tipo “rocketes”, diz estar convencido de que a produção de biogás, ainda
que em pequenas quantidades, contribui para deter o crescente desmatamento e
reduzir os gastos diários de famílias camponesas.
“Essa mesma intenção que tínhamos antes, de alguma maneira era (fabricar uma
ferramenta) para matar alguém, ainda que fosse em defesa própria, hoje nos
serve para resolver o problema do meio ambiente e a situação econômica
familiar”, disse a IPS este homem de 42 anos, enquanto caminha pelo quintal
de sua casa onde, ao lado de galinhas e porcos, planeja instalar sua
“máquina” de produzir biogás. Vasquez, de roupas simples e conversa
agradável, apenas havia completado a quarta série do ensino fundamental antes
da guerra. Reconhece que no começo “não sabia de nada” sobre o assunto, e que
só depois da assinatura dos Acordos de Paz de 2002 voltou a estudar e viu
ressurgir seu interesse pelas fórmulas químicas.
Hoje em dia é um tenaz promotor do biodigestor, a “máquina” que produz
biogás. Seu projeto imediato é terminar de instalar um nos fundos de sua
casa. O biogás é obtido da fermentação de dejetos orgânicos, excremento de
vaca, porco ou galinha, embora o esterco suíno gere muito mais metano. Não
requer maiores conhecimentos técnicos ou investimentos onerosos, os quais não
passam de US$ 300, e, além disso, se produz de forma artesanal, na própria
casa, sem que represente perigo para a saúde ou emane mau cheiro, enquanto
reduz os gastos familiares com o consumo de gás convencional.
Como explica o Serviço Evangélico para o Desenvolvimento do Chile (Sepad), “o
biogás é gerado através da decomposição da matéria orgânica. É um processo
natural que ocorre em todos os âmbitos onde existe decomposição de biomassa,
em um entorno e sem oxigênio, através da atividade bacteriológica”. Quanto
mais alta a temperatura, maior decomposição e, portanto, mais gás é gerado. A
produção deste combustível acontece utilizando um biodigestor ou recipiente,
que pode ser um poço de cimento coberto com polietileno escuro, ou vários
barris presos um ao outro, que permitam conservar o calor.
A este recipiente é adaptada uma fonte de recarga (barril) conectada por um
tubo ou mangueira pelo qual, usando um êmbolo, alimenta-se com o esterco
diluído em água. O biodigestor possui canos galvanizados e tubos de PVC
(policloruro de vinil) pelos quais o biogás é transportado desde o termina de
descarga (outro barril) até à estufa, processo que é regulado por meio de
várias válvulas. Embora a biodigestão tenha encontrado seu auge na América
Latina nas últimas décadas, existem registros indicando que em 1600 foi
gerada pela primeira vez gás proveniente da decomposição orgânica e que em
1890 foi construído na Índia o primeiro artefato para sua produção.
Porém, foi na Inglaterra, seis anos mais tarde, que o biogás foi usado para
produzir eletricidade destinada à iluminação pública. O Sepade também lembra
que, ao contrário do que se pode pensar, a atividade agropecuária é
responsável por 30% das emissões de metano, o segundo gás, depois do dióxido
de carbono, causador do aquecimento global. “A solução para este problema é a
incorporação da biodigestão à atividade agropecuária, já que com esta
tecnologia se consegue benefícios ambientais: reduz a contaminação ambiental
e produz energia renovável”, por isso estima-se que essas “máquinas” serão
“imprescindíveis” no futuro, diz o artigo “Sepade contará com o primeiro
biodigestor destinado a produzir eletricidade”.
“Ao contrário das técnicas que o engenho humano desenvolveu, a natureza não
reconhece desperdícios”, diz o especialista argentino Roberto Montanaro em
seu artigo “Produção de biogás”, publicado no site da Internet em Engormix, a
comunidade Internacional de Negócios Relacionados com a Produção Animal.
Atualmente, a biodigestão é utilizada para produzir energia elétrica e
térmica em grandes centrais, como ocorre no Chile e na Costa Rica. Outros
projetos de biodigestores também são implementados na América Central.
Em El Salvador, vários moradores de Santa Bárbara, povoado de aproximadamente
dois mil habitantes na província de Chalatenango, já produzem biogás
utilizando o modelo de estufa que requer menos lenha, cuja produção afirmam
ter diminuído o consumo desta em 50%. José Luis Guerra é um dos moradores que
construiu seu próprio biodigestor no quintal de sua casa com vários barris
presos uns aos outros. Para fazê-lo funcionar necessitou de 24 carrinhos com
28 litros de esterco, diluídos em 72 litros de água, isto é, proporção de
três para um.
Depois de oito dias, Guerra obteve sua primeira produção de biogás de uma
estufa de três queimadores. “Isto nos beneficia muito, queremos trabalhar
mais para ver se chegamos a produzir metade do que precisamos”, disse Guerra,
enquanto Maribel, sua filha de 9 anos observa sua mãe, Maria Rosalina, lidar
na estufa para demonstrar que seus esforços renderam fruto. A família reduziu
em um terço o consumo de gás propano.
Juan René Guzmán, funcionário o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (Pnud), explicou à IPS que a iniciativa, que começou há um
ano, tem a intenção de sensibilizar os moradores da região para as vantagens
da produção de energia renovável com biodigestores, e o uso das chamadas
estufas melhoradas, que precisam até de 90% menos de lenha do que as
tradicionais. “Temos conseguido bons resultados e benefícios adicionais em
matéria de saúde”, afirmou Guzmán, coordenador nacional do Programa de
Pequenas Doações, que tem como teto aproximadamente US$ 25 mil por ano para
implementar a iniciativa.
Guzmán explicou que “estes projetos não são da Organização das Nações Unidas,
mas das comunidades”. O que o programa faz é “apoiar iniciativas geradas por
outros organismos ou moradores”, facilitando sua participação na promoção dos
biodigestores e das estufas melhoradas, com uma visão integral, que inclui
fortalecimento de capacidades, desenvolvimento democrático, educação sobre
meio ambiente e promoção da saúde.
O projeto, que tem “apoio” do governo salvadorenho aprovou a instalação de
seis biodigestores e cerca de 40 estufas que, usados de forma adequada e com
efeito multiplicador nos habitantes de Santa Bárbara, espera-se que dêem
resultados positivos e ajudem o desenvolvimento sustentável, já que “nossos
agricultores possuem a matéria-prima para o biogás”, acrescentou.
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação.
El Salvador é o país centro-americano que “apresenta uma das condições
ambientais mais deterioradas: 2% do território coberto por florestas naturais
secundárias e mais de 75% dos solos experimentam algum grau de erosão,
causada por desmatamento, urbanização e concentração de populações”.
De acordo este documento intitulado “Avaliação de produtos florestais não
madeireiros na América Central”, a lenha representa 92% da geração de energia
consumida no campo de El Salvador, e entre 51% e 69% no total do país, o que,
junto com a expansão da fronteira agrícola aumenta o desmatamento a uma média
estimada de 4.500 hectares por ano.
No final da década de 90, este país aparecia como o segundo mais desmatado da
América Latina, só atrás do Haiti, segundo o funcionário do Pnud. Entretanto,
Vasquez reclama que, apesar de ter demonstrado os benefícios do biogás, “não
há apoio estatal para o experimento em busca de energia alternativa. Por isso
não produzimos biogás em grandes proporções”, disse, acrescentando que, no
caso de não agir com responsabilidade de forma imediata, este país ganhara o
vergonhoso “prêmio de desmatamento”.
(Por Raúl Gutiérrez, IPS, 12/03/2007)
http://envolverde.ig.com.br/materia.php?cod=28954&edt=1