A visita do presidente americano George W. Bush ao Brasil, nesta semana,
ocorre em meio à expectativa de que seu encontro com o presidente Lula
marque o início de uma aliança entre os dois países – os maiores
produtores mundiais de etanol – para incentivar o uso do álcool
combustível. Interessa aos dois governos promover o produto como
substituto da gasolina com o duplo objetivo de diminuir a dependência do
petróleo e reduzir a emissão de gases que contribuem para o aquecimento
global. Faz tempo que Lula propagandeia as vantagens do etanol em
praticamente todas as viagens internacionais que faz. Já Bush abraçou a
causa no início do ano, quando pediu aos americanos um corte de 20% no
consumo de gasolina na próxima década e sua substituição por etanol e
outros biocombustíveis. O tema é tão importante para os americanos que o
tour de Bush pela América Latina é chamado de "diplomacia do etanol".
Alguns entusiastas vislumbram o início de um novo ciclo de esplendor nas
exportações brasileiras – quem sabe um repeteco dos ciclos da borracha e
do café. O deslumbramento do governo brasileiro ajuda a alimentar essa
tese. "Vamos ser a maior potência energética do século XXI", disse Lula
na inauguração de uma usina de biodiesel no Ceará, no mês passado. Houve
até quem imaginasse que o encontro entre Bush e Lula daria origem a uma
Opep do etanol, a exemplo do cartel de produtores de petróleo formado
nos anos 70. Há base factual para tais especulações: saem das
destilarias brasileiras e americanas 72% de todo o álcool combustível do
planeta. Em teoria, a produção seria suficiente para um quase monopólio
brasileiro e americano. A realidade é um pouco diferente. A
possibilidade de o Brasil ser o líder mundial na produção de energia
limpa é real, mas estamos a anos-luz de uma Opep do álcool combustível.
Em primeiro lugar, porque não existem excedentes significativos para
exportar. Quase toda a produção é para consumo interno. Segundo, para
uma expansão da produção, seria necessário encontrar compradores para o
etanol. Atualmente, o Brasil é o único país a utilizar o etanol em larga
escala – 20% da frota nacional roda com álcool. Nos Estados Unidos, os
carros com motor bicombustível representam apenas 2,5% da frota
automotiva e, dos 180.000 postos de abastecimento do país, só 1.000
vendem álcool (o E85, uma mistura de 85% de etanol e 15% de gasolina).
Outros grandes consumidores, como o Japão e os países europeus, apenas
misturam pequena quantidade de álcool ao combustível fóssil. A França, o
quinto maior produtor mundial de etanol, tira seu combustível da
beterraba – o que seria economicamente inviável não fossem os fortes
subsídios.
Seja como for, o Brasil tem um bom produto para oferecer a esses países,
e, se eles quiserem usar combustível limpo, a indústria brasileira é a
única em condições de ser uma fornecedora em escala global. "Nosso plano
é transformar o etanol em uma commodity energética internacional, como o
petróleo, e para isso precisamos incentivar mais países a se tornar
produtores e criar um padrão técnico para o produto", diz Antônio
Simões, chefe do departamento de energia do Itamaraty. Mesmo
incentivando os competidores, o Brasil ganharia com o aumento do mercado
externo e com a venda do conhecimento e da tecnologia de etanol,
conquistados em três décadas de pesquisas na área. A lógica por trás
dessa estratégia é que poucos países estariam dispostos a adotar o uso
do etanol em larga escala se tivessem de depender do fornecimento de uns
poucos exportadores, como ocorre com o petróleo. A ironia é que, apesar
de ser um produto agrícola e energia renovável, não é tarefa simples
reproduzir o sucesso do etanol brasileiro em muitos países.
As diferenças existentes entre o Brasil e os Estados Unidos são um
exemplo dessa dificuldade. O produto brasileiro é feito com
cana-de-açúcar, de longe a matéria-prima mais eficiente e mais
ecologicamente correta para essa finalidade. Os americanos extraem
álcool do milho, de produtividade menor e custo maior. O segundo fator é
a existência no Brasil de terras cultiváveis suficientes para expandir a
produção de etanol em proporção inimaginável para os Estados Unidos. O
terceiro é que o mercado de etanol brasileiro, ao contrário de seu
equivalente americano, não depende de subsídios do governo.
A alta competitividade do álcool brasileiro explica por que os
produtores americanos de milho têm chamado o Brasil de "Arábia Saudita
do etanol" – expressão usada para exagerar o perigo de substituir a
dependência do petróleo saudita pelo combustível feito no Brasil. Em
termos de potencial de produção, a comparação faz sentido. Dona de 22%
das reservas conhecidas e maior produtor mundial de petróleo, a Arábia
Saudita responde por 13% do abastecimento mundial. Estima-se que, se
todos os automóveis do planeta passassem a usar apenas etanol como
combustível, o Brasil seria capaz de atender a 25% da demanda global,
sem precisar substituir o cultivo de alimentos por cana-de-açúcar. Sem
poderem ampliar a área plantada, os Estados Unidos teriam de dedicar
toda a sua produção de milho para substituir 16% do combustível fóssil
por álcool. Sem a importação de etanol, o plano de Bush para os
biocombustíveis não passará de blablablá.
O plano do Brasil de se tornar um grande exportador da energia renovável
pode evaporar mais rápido do que álcool derramado. A maior barreira
decorre de dúvidas sobre se o etanol pode ser a solução definitiva para
o aquecimento global. O álcool diminui em 80% a liberação de gás
carbônico na atmosfera, em comparação com a gasolina. No caso do etanol
brasileiro, há a vantagem de praticamente 100% do gás carbônico emitido
pela queima do combustível verde ser absorvido pelas novas plantações de
cana-de-açúcar. O mesmo não ocorre com o milho, o trigo ou a beterraba,
outras fontes de produção de etanol. Por outro lado, a redução de
emissões pode ser anulada pelo impacto ambiental causado pela
necessidade de ocupar vastas áreas de terra cultiváveis para plantar a
matéria-prima do álcool. "A maioria dos países e regiões citados como
futuras potências do etanol enfrentaria sérios problemas ambientais caso
ampliasse demais as plantações com esse fim", disse a VEJA o americano
Lester Brown, presidente do Earth Policy Institute, com sede em
Washington. "A China, o terceiro maior produtor de etanol, e a Índia, o
segundo maior produtor de cana-de-açúcar, por exemplo, sofrem com a
escassez de água", diz Brown. Boa parte da África e a Austrália
enfrentam a mesma limitação. No Brasil, o regime de chuvas permite o
cultivo sem irrigação de cana-de-açúcar.
No ano passado, a China suspendeu a construção de destilarias porque a
produção de etanol estava afetando o abastecimento de milho. A pressão
do etanol sobre a produção de alimentos já é sentida nos Estados Unidos.
No ano passado, 20% do milho colhido no país foi transformado em álcool
– o triplo de 2001. Resultado: o preço do grão, essencial para a ração
animal, dobrou. O efeito foi sentido até no México, que utiliza milho
para preparar um alimento típico, a tortilla. O preço da tortilla
triplicou nos últimos meses, provocando protestos na capital mexicana.
Tudo isso é conseqüência de uma demanda de etanol que representa apenas
4% do consumo de gasolina dos Estados Unidos. Abastecer o mercado
americano seria a realização de um sonho para os usineiros brasileiros,
não fosse o álcool sujeito às arcaicas políticas de subsídios e proteção
de mercado, como acontece, em geral, com as commodities agrícolas nos
países ricos.
Nos Estados Unidos, os produtores de milho recebem ajuda governamental
para pagar a conta do biocombustível (a produtividade do milho como
matéria-prima do etanol é a metade da alcançada pela cana-de-açúcar). Os
produtores têm isenção tributária de 51 centavos de dólar por galão. O
lobby agrícola americano promete resistir a qualquer tentativa de
eliminar a barreira alfandegária imposta ao álcool brasileiro, taxado em
46% do valor do produto, segundo cálculo da consultoria em comércio
internacional Icone, de São Paulo. "A tarifa alta não inviabiliza a
exportação do álcool brasileiro para os Estados Unidos, mas nos faz
perder competitividade", diz Roberto Rodrigues, ex-ministro da
Agricultura. A possibilidade de o Brasil vir a sustentar a potencial
demanda dos carros americanos por etanol teria outros problemas. Em uma
situação hipotética em que o Brasil expandisse sua produção para atender
a toda a meta de Bush de consumo de etanol, a área plantada de
cana-de-açúcar teria de aumentar de 3 milhões para 20 milhões de
hectares. Isso representaria quase um terço de todas as terras
brasileiras cultivadas, proporção equivalente ao que ocupa a soja hoje.
Ou seja, o Brasil estaria, mais uma vez, apostando no modelo monocultor
e de exportação de commodities como meio para atingir o desenvolvimento
econômico. A armadilha dessa aposta é evidente nos países que hoje
sustentam sua economia na exportação do petróleo: tirando a riqueza
petrolífera que brota fácil do solo, países como a Venezuela e a Arábia
Saudita praticamente não têm outra fonte de renda. Enfim, é engano
acreditar que a excelência brasileira na produção de etanol duraria
muito tempo. "Como toda commodity, quando há mercado, outros países
acabam desenvolvendo rapidamente a tecnologia necessária para
produzi-la", diz o engenheiro Rafael Schechtman, diretor do Centro
Brasileiro de Infra-Estrutura, do Rio de Janeiro. Para iniciar uma
plantação de cana e instalar uma destilaria bastam cinco anos.
"Eu vi a molécula!"
No fim de 1977, o engenheiro químico Expedito Parente, então com 37
anos, estava em seu sítio a 100 quilômetros ao sul de Fortaleza. Sob a
sombra de um ingazeiro, bebericava uma cachaça quando teve uma idéia:
extrair óleo de sementes, misturá-lo com álcool e, após algumas reações
químicas, obter um combustível – que viria a se chamar biodiesel. "Eu vi
a molécula!", relembra ele, bem-humorado. Expedito Parente era professor
da Universidade Federal do Ceará (UFC). Em apenas uma semana de trabalho
no laboratório, sua idéia já fazia funcionar um motor com óleo extraído
da semente do algodão. Acabara de inventar um combustível vegetal, não
poluente – justamente quando o mundo tentava se adaptar aos efeitos
devastadores do choque do petróleo. "As reações químicas que permitiam
obter um combustível vegetal já estavam teoricamente descritas na
literatura havia cinqüenta anos. O que fiz foi aplicá-las", explica o
professor, que registrou a patente do seu invento três anos depois – mas
só agora, trinta anos mais tarde, começa a ver sua idéia se popularizar
como uma solução para os problemas energéticos e ambientais do planeta.
"Demorou para deslanchar, mas eu sou paciente e não desisti do meu
sonho", diz ele, no escritório da sua empresa, a Tecbio, instalada no
centro de Fortaleza.
Nos últimos trinta anos, o engenheiro químico viu altos e baixos de sua
invenção. Logo que patenteou seu invento, o governo se interessou pelo
novo combustível, que então se chamava "pró-diesel". Em pleno regime
militar, as autoridades propuseram ao engenheiro químico que
desenvolvesse sigilosamente um bioquerosene para abastecer os aviões da
Força Aérea Brasileira. Nos primeiros quatro anos da década de 80, o
inventor dedicou-se ao projeto militar. Em 24 de outubro de 1984,
conseguiu fazer com que um Bandeirante voasse de São José dos Campos
para Brasília com bioquerosene. No aeroporto, chegou a ser recebido pelo
então presidente João Figueiredo, num sinal do interesse do governo pelo
projeto. Mas, depois disso, surpreendentemente, o governo abandonou a
idéia. Sem apoio oficial, Expedito Parente não teve muito que fazer,
além de palestras, e sua invenção não chegou a ter viabilidade
comercial. Como prevê a lei, em 1990 a patente do biodiesel expirou e a
tecnologia tornou-se de domínio público. Em 1994, o professor
aposentou-se e, sete anos depois, montou a Tecbio, que concebe e
constrói usinas de biodiesel.
Agora, o governo voltou a se interessar pela invenção do professor. Ele
passou a ser uma espécie de consultor informal para a área de
biocombustíveis. Conquistou a confiança da ministra Dilma Rousseff, que,
antes de ocupar a Casa Civil, era ministra das Minas e Energia. Em 2006,
aproximou-se do presidente Lula, que freqüentemente o cita em seus
discursos. No fim do ano passado, teve uma audiência de duas horas com
Lula no Palácio do Planalto. O assunto, claro, era biodiesel. A última
troca de gentileza entre os dois foi pública: ocorreu durante a
inauguração de uma usina de biodiesel em Crateús, no interior do Ceará,
em janeiro. No evento, Lula convidou o professor para falar sobre o
combustível.
Aos 66 anos, casado pela segunda vez, pai de quatro filhos, um deles
engenheiro químico, Expedito Parente está finalmente ganhando dinheiro
com sua invenção. No ano passado, a Tecbio, que tem sessenta
funcionários, dos quais quarenta são engenheiros e economistas, faturou
18 milhões de reais. Tem clientes na Espanha, no Vietnã e nos Estados
Unidos e já possui representantes em outros países da América do Sul, do
Caribe e da África. Entre seus clientes está a Boeing, a maior
fabricante de aviões comerciais do mundo. E o que Parente faz para a
empresa americana? Desenvolve o bioquerosene, exatamente como tentou
fazer para a FAB há trinta anos. O acordo é sigiloso e supervisionado
pela Nasa, a agência espacial dos Estados Unidos. Sabe-se que os testes
com o combustível já estão bastante avançados. Não será surpresa se, em
algum momento, os aviões comerciais começarem a operar com combustível
vegetal inventado pelo brasileiro. Ponto para os americanos. "Hoje ganho
algum dinheiro, que não tenho tempo para gastar", diz o professor, em
tom de brincadeira. Expedito Parente está feliz. Afinal, recebe por sua
invenção, embora não diga quanto, e ainda tem o prazer de vê-la na
vitrine das campanhas pela preservação do meio ambiente e como
alternativa energética para um futuro próximo. Ele conta: "Em 2001, fiz
um passeio com meu filho pelo interior da Alemanha e lá vi uma bomba de
biodiesel num posto. Fiquei alegre de ver minha invenção difundida, mas
frustrado porque aquilo não estava ocorrendo no Brasil. Agora, as coisas
estão mudando. Tenho paciência. Sou um homem realizado".
(Por Denise Dweck, Thomaz Favaro e Ricardo Brito,
Veja,
07/03/2007)