Nova “bandeira do bem” de Bush para a América Latina, o etanol, uma das armas contra o aquecimento global, será tema do encontro entre os presidentes Lula e Bush neste mês. O que para os Estados Unidos deve ser um instrumento de recuperação de espaço político na América Latina, para o povo brasileiro pode ser um mau negócio.
A programada visita do presidente norte-americano, George W. Bush, ao Brasil nos próximos dias 8 e 9 de março, e a anunciada intenção de aprofundar a proposta de criação de padrões comuns, parcerias tecnológicas e investimento em matéria-prima para a produção de etanol, está suscitando uma série de debates que têm tangenciado aspectos como interesses econômicos (de ambos países), geopolíticos (dos Estados Unidos) e a apregoada benevolência ambiental de um investimento em energia alternativa frente à real ameaça do aquecimento global.
Atualmente, Estados Unidos e Brasil são os maiores produtores de etanol do mundo – o primeiro com cerca de 17 bilhões de litros anuais, produzidos à base de milho, e o segundo, com 16 bilhões de litros, produzidos à base de cana. Com a recente proposta de Bush de diminuir o consumo de combustíveis fósseis nos Estados Unidos em 20% até 2017, em tese o país teria que ter disponíveis, até lá, 35 bilhões de barris de biocombustível/ano, cinco vezes mais do que os americanos seriam capazes de produzir.
De olho nesta demanda, para o Brasil, que já exporta cerca de 1 milhão de litros de etanol/ano, um acordo com os EUA poderá significar uma expansão do negócio e, principalmente, uma pressão sobre a amarga tarifa de US$ 0,54 por barril, praticada hoje pelos americanos, avalia Alfred Swark, consultor da União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (UNICA).
Outro item da proposta que será discutida pelos presidentes Lula e Bush é um investimento compartilhado em países da América Central e do Caribe, como Nicarágua, Guatemala, El Salvador, Panamá, República Dominicana e Jamaica, entre outros. Vários já são produtores de cana, se apresentam como potenciais compradores de tecnologia e, no futuro, poderão ser grandes fornecedores de matéria-prima.
A bem da verdade, no entanto, segundo a imprensa americana os interesses que movem Bush nesta visita ao Brasil (de onde segue para o Uruguai, Colômbia, Guatemala e México) são basicamente três: buscar garantias para a segurança energética de seu país (através do fornecimento de biocombustível barato produzido pelos vizinhos de baixo), voltar a demarcar politicamente território na América Latina depois do fracasso da Alca (apresentando um cartão de visitas estampado com uma “bandeira do bem” que inclui a luta contra o aquecimento global, investimentos e criação de empregos) e, por fim, minar a influência do presidente venezuelano Hugo Chavez na região, segundo os Estados Unidos advinda principalmente de seu petróleo.
Na balança social
Independentemente da vontade do governo brasileiro de apoiar ou não George Bush em seus projetos para a América Latina, antes do fechamento de um acordo com os Estados Unidos no setor de biocombustíveis, o Brasil deveria avaliar prós e contras que estão além dos benefícios econômicos para o setor sucroalcooleiro.
Segundo Alfred Swark, da UNICA, ainda é prematuro especular sobre a movimentação do empresariado, mas é certo que as perspectivas de novos mercados têm estimulado a expansão da cana. Em maior grau, a cana, que poderá substituir outras culturas dependendo dos preços alcançados, deve crescer principalmente no Centro-Sul (São Paulo, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás, e, em menor grau, Paraná ou Santa Catarina), com uma estimativa de aumento da próxima safra de 13%.
O Mato Grosso do Sul, por exemplo, que adotou um programa oficial de incentivo a novas usinas – tem 11 e quer construir outras 40, oferecendo uma isenção fiscal de 70% – e que facilitou a ocupação da atividade às margens do Pantanal (o que levou à imolação do ambientalista Francisco Anselmo Gomes de Barros, o Francelmo, em 2005), deverá passar de 180 mil hectares de cana para cerca de 795 mil hectares nesta safra, com destaque para a região de Dourados (onde o número de usinas deve passar de seis para 20 até 2009, com lavouras de cerca de 30 mil hectares, de acordo com a superintendência local do Banco do Brasil).
As perspectivas que têm animado usineiros e fazendeiros por sua vez são um pesadelo para outros setores. Segundo o Ministério Público do Trabalho no Mato Grosso do Sul, as denuncias de trabalho degradante envolvendo indígenas - cerca de 7 mil trabalham na atividade no estado - têm crescido exponencialmente principalmente nos municípios de Dourados e Amambaí, recordistas em assassinatos e suicídios de índios. Com o aumento da produção canavieira, principalmente os Guarani Kaiowa, hoje espremidos em pequenas áreas e um dos grupos mais atingidos pela fome e pela violência no país, devem enfrentar dificuldades ainda maiores na luta pela terra, avalia o Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
Na contramão do discurso que apregoa a criação de postos de trabalho com uma das maiores vantagens da expansão canavieira, a atividade é conhecida como uma das mais penosas e degradantes para os trabalhadores.
“A vida útil dos escravos no Brasil era de aproximadamente 10 anos. A do cortador de cana hoje é de 15. O mesmo bóia fria que, nos anos 1970, cortava até 10 toneladas de cana por dia, hoje corta até 20, já que tem que competir com a mecanização. Além disso, a atividade canavieira ainda pratica o pagamento por produtividade, o que não ocorre em qualquer outro lugar”, afirma o pesquisador da Embrapa Meio Ambiente, José Maria Ferraz.
No Nordeste, outro importante centro canavieiro no país, dados oficiais demonstram que, nas regiões ocupadas pela atividade, o Índice de Desenvolvimento humano (IDH, que mede a esperança de vida ao nascer, o nível educacional e a renda per capita de um país ou região) é um dos mais baixos do país – média de 0,500 nos pólos canavieiros de Pernambuco e Alagoas. A região canavieira de Alagoas, aliás, tem seis dos municípios mais pobres do Brasil (São José de Taper, por exemplo, chegou ao IDH de 0,265. O IDH médio do Brasil é 0,757).
Por outro lado, maior produtor de cana do país e um dos municípios mais ricos do interior de São Paulo, Ribeirão Preto tem hoje 20 favelas e uma das mais altas concentrações de renda do Brasil, aponta Kelly Naforte, membro da coordenação estadual do MST. É nesta região que o Ministério Público investigou a morte por exaustão de pelo menos 15 trabalhadores no corte de cana entre 2003 e 2005, um fato que ganhou as manchetes dos principais meios de comunicação mas não seria novidade nem exclusividade de São Paulo, como afirma o engenheiro do departamento de controle ambiental do Ministério da Ciência e Tecnologia, Plínio Moreira. “Mortes por exaustão ocorrem muito e em todo o país. O problema é que em regiões ou usinas mais afastadas elas não são denunciadas”.
Na balança ambiental
Com o recente relatório sobre o aquecimento global do Grupo Intergovernamental sobre a Mudança Climática (IPPC), de repente o mundo se deu conta de que a vida na terra corre perigo real e muito maior do que se imaginava. Este alerta tem elevado os biocombustiveis, cuja emissão de gases de efeito estufa é inferior a dos combustíveis fósseis, a uma espécie de “bóia salvadora” dos países com maior consumo de energia.
De fato, avalia Marcelo Furtado, coordenador de campanhas do Greenpeace, a seriedade da situação exige medidas urgentes que ataquem frontalmente o problema nas próximas duas décadas. “Se não agirmos agora com estratégias para diminuir a emissão de gases, o fim do jogo está certo”, sentencia. E nesse processo, a substituição de combustíveis fósseis por biocombustíveis é uma estratégia importante.
“Temos que ter claro, porém, que o álcool não é a salvação da lavoura. O Brasil não é uma Arábia Saudita do biocombustível [como comentou o presidente Lula], e não é nosso papel fornecer etanol para que os EUA mantenham seu padrão de consumo. Mas como o biocombustível terá um papel importante no futuro próximo, temos que estabelecer regras e normas socioambientais muito claras, parâmetros que o agronegócio nunca teve. O que não pode é ficarmos brigando por soluções ideais ao modelo de produção e perdermos uma janela de oportunidades”, defende Furtado.
Já para o pesquisador José Maria Ferraz, no entanto, a cana para o Brasil ambientalmente não é um bom negócio por uma série de motivos. Começando pelo potencial de contaminação do solo e das águas, uma vez que, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente, a cultura é a segunda maior consumidora de agrotóxicos (perdendo apenas para a soja).
Um dos problemas mais sérios da cultura, no entanto, são as queimadas pré-colheita, praticadas em dois terços do estado de São Paulo e em praticamente 100% do resto do país. Em municípios onde ocorre o fenômeno, exemplifica Ferraz, na época das queimadas a poluição atmosférica supera a do centro de São Paulo, com graves riscos à saúde da população.
“A fumaça gerada pela queima da palha da cana-de-açúcar (...) contém substâncias potencialmente cancerígenas, dentre elas os Hidrocarbonetos Policíclicos Aromáticos (HPAs), que tanto provocam intoxicações através das vias respiratórias, como pelo contato com a pele, podendo ocorrer cânceres de pulmão, de bexiga e de pele”, descreve o engenheiro agrônomo Daniel Gonçalves, pesquisador convidado do Grupo de Estudos e Pesquisas em Trabalho, Agroindústria e Políticas Públicas da Universidade federal de São Carlos (UFSCar).
Em relação ao aquecimento global, por sua vez, as queimadas nos canaviais liberam os principais gases de efeito estufa – dióxido de carbono (CO2), metano (CH4), óxido nitroso (N2O) e ozônio. Para se ter uma idéia do volume de poluição produzido pela atividade canavieira, segundo uma pesquisa da Embrapa, o Brasil contribuiu com 0,8% de todo CO2, 0,3% do CH4, 0,8% de N2O e 0,8% de outros gases do total emitido no mundo entre 1986 a 1996. Outro exemplo: um crescimento de 11% da cana e 9% do algodão (as duas culturas com maior índice de queimadas) produziu um acréscimos de 21% das emissões de gases no país entre 1990 e 1996. Por fim, segundo estudo do MMA de 2002, a queima da cana-de-açúcar lança na atmosfera cerca de 64,8 milhões de toneladas de gás carbônico por ano, do qual apenas parte é reabsorvida pela fotossíntese de novas plantas de cana.
“O álcool é menos danoso [em termos de poluição] do que a energia fóssil e tem vantagens, sem dúvida. Mas o Brasil não é o celeiro do mundo, e a perspectiva do governo de que o país tenha 100 novas usinas é uma loucura. É preciso primeiro respeitar as legislações sócio-ambientais existentes, e investir em alternativas, como a certificação ambiental da atividade. A mecanização do setor canavieiro, apesar de impactar sobre a oferta de mão de obra, também é uma solução para a poluição gerada pelas queimadas. Mas há que se ter claro que o etanol não é uma energia limpa”, afirma José Maria Ferraz.
(Por Verena Glass, Agência Carta Maior, 01/03/2007)