Cidade boliviana ilhada por Rio Mamoré: águas contaminadas podem transbordar e atingir moradores
2007-03-02
– A capital do departamento boliviano de Beni, Trinidad, é vista do ar rodeada por um imenso pântano, enquanto seus moradores esperam que não transbordem as contaminadas águas que estão a apenas 40 centímetros da barreira defensiva e da avenida que circunda a cidade. A pequena pista do aeroporto de Trinidad, no amazônico nordeste boliviano, se assemelha a um centro militar de operações com intensa atividade de pouso e decolagem de enormes aeronaves, como os Hércules C-130 das forças aéreas da Bolívia e da Venezuela, e os pequenos Cessna. Todos transportam remédios e alimentos para as 19 mil famílias necessitadas do departamento de Beni, que tem 406.982 habitantes, dos quais 80. 613 moram em Trinidad.
As águas do Rio Mamoré, o mais importante da região, transbordaram e invadiram as casas rurais de barro e folhas de palmeira e as grandes fazendas de pecuária, deixando dezenas de milhares de pessoas sem teto já há 20 dias, embora a calma tenha retornado na quarta-feira (28/02) junto com a luz do sol, após semanas de chuvas torrenciais. O sorriso voltou ao rosto de Claribel Solano, aproximadamente 35 anos, que três semanas atrás vivia na desaparecida Villa Monasterio e agora está instalada exatamente às portas do aeroporto de Trinidad, junto à avenida que circunda a cidade que, ao mesmo tempo, é o dique de contenção das águas.
A cada instante passam aeronaves que chegam com grandes carregamentos de alimentos e roupa, mas sua presença e a de dezenas de pessoas evacuadas passou inadvertida até para os meios de comunicação. Solano também viu passar, pelo menos, quatro vezes a veloz caravana do presidente Evo Morales, que visitou as zonas inundadas. Porém, os vidros escuros dos veículos da caravana não permitiram ver as vítimas das águas, que perguntam ao jornalista da IPS sobre o destino dos alimentos e de outras doações.
“Aqui – a poucos metros do aeroporto – não chega nada, por isso quero perguntar ao presidente Evo onde estão os alimentos?”, disse Juanito Florián, de 40 anos, pele morena, descalço e usando velha camiseta escura e bermuda. Sua família, integrada pela esposa e seis filhos, está instalada em uma barraca de plástico azul, com seus poucos bens espalhados pela chão de fina terra, à beira do caminho. Nos braços de Marlene Noé, uma jovem de cabelo negro, descansa sua filha de poucos anos, e seu olhar pede resposta para o drama, hoje amenizado por sorrisos, brincadeiras e alguma esperança pela volta do sol, com seus 31 graus de temperatura.
Solano não perdeu o entusiasmo, responde com sorrisos e continua trabalhando na venda de tortas, empanadas e alguns refrescos feitos à base de fruta seca. A imprensa preferiu voltar seu olhar para outras regiões distantes, reservando para seus jornalistas intensas disputas para ocupar um dos poucos espaços livres nos dois helicópteros UH-Huey, emprestados pela Força Aérea argentina para sobrevoar as zonas devastadas. Nesta quarta-feira, o governo declarou o “estado de desastre” para três províncias de Beni.
O presidente argentino, Néstor Kirchner, emprestou cinco helicópteros. Alguém comenta que na base norte-americana antidrogas na central Santa Cruz de la Sierra há cinco aparelhos do mesmo tipo com bandeira boliviana na cauda, mas ninguém explica porque não estão destinados aos trabalhos de resgate e assistência às vítimas. Alguns metros à frente, no meio da estrada para chamar a atenção, três famílias instalaram barracas de material impermeável doadas pelo governo peruano, mas estão pendentes de receber algum alimento.
Jesús Ibáñez, homem de vários ofícios como o de moto-taxista, lamenta ter perdido seus eletrodomésticos, um computador e o aparelho de televisão. A pouca distancia estão seus móveis estragados pela chuva. Enquanto Ibáñez conversa com a IPS, uma mulher cai na água desde uma improvisada embarcação impulsionada com pedaços de madeira como se fossem remos. Alguns rapazes conseguem resgatá-la, e chega com alguma dificuldade à margem do imenso lago formado pelo transbordamento do rio Mamoré, univa fonte da qual bebem as vítimas e destino final de animais mortos, esgotos e lixo sólido.
“A poucos metros desta água estão as lagoas de oxidação dos esgotos de Trinidad, e agora as duas águas se juntam”, disse uma mulher preocupada, enquanto seus filhos brincam no liquido escuro. Na pista militar de Trinidad, o diretor-executivo da Defesa Civil de Beni, coronel Alejandro Núñez, cuida de cada detalhe dos despachos de doações para populações às quais só se chega por ar. Com uniforme de combate, Núñez comanda dezenas de soldados suarentos pelo trabalho de transportar nos ombros alimentos e roupa coletados no restante do país.
Sua experiência nas operações de emergência, durante o terremoto de maio de 1998 que afetou parte do departamento de Cochabamba, lhe deixou algumas lições e, por isso, é detalhista ao registrar a entrega de doações. Até Trinidad chegaram cerca de 240 toneladas de alimentos doados por particulares e pelo Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas, aos quais se somam um contêiner com apetrechos médicos e remédios entregues pela organização internacional Visão Mundial, no valor de US$ 1,7 milhão, mas a falta de vias de transporte impõe limitações, diz Núñez.
A distribuição depende de um avião Hércules com capacidade de 20 toneladas, dois aviões Cessna, que podem levar meia tonelada cada um, e dois helicópteros argentinos que carregam até uma tonelada de alimentos cada. A região nordeste foi a mais atingida por chuvas torrenciais que caem desde dezembro por todo o país e atribuídas pelos especialistas ao periódico fenômeno climático El Niño. Cerca de 350 mil pessoas ficaram desabrigadas e mais de 35 morreram.
Nos rios, grandes embarcações da força naval deste país transportam até 25 toneladas de doações, mas a maior preocupação de Núñz é a provisão de comida e remédios nos próximos meses, quando as águas baixarem e as pessoas voltarem às suas terras com a expectativa de reconstruir suas casas. “A provisão de víveres está garantida para os próximos 15 dias, desde que o anel de proteção não seja rompido pela água”, acrescenta, enquanto ordena a entrega a bolsas de água purificada aos soldados extenuados.
(Por Franz Chávez, IPS, 01/03/2007)
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