Lançada com o patrocínio da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) nesta quarta-feira (21/02) de cinzas em Belém (PA), a Campanha da Fraternidade (CF) de 2007 da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), cujo tema é "Fraternidade e Amazônia - Vida e Missão Neste Chão", dividiu a cúpula e as bases da Igreja e perdeu, entre muitos movimentos sociais, a legitimidade necessária para pautar um debate nacional sobre os grandes problemas da região e suas origens.
Considerada pela base da Igreja um dos principais vetores de desmatamento da Amazônia e corresponsável por crimes como o trabalho escravo, a CVRD patrocinou tanto o material de divulgação da CF quanto a cerimônia de lançamento, através da contratação de uma empresa especializada em eventos. Outro motivo de indignação por parte de várias pastorais sociais foi a escolha do local - a ilha do Cumbu, cerca de duas horas de barco de Belém - e o exclusivismo da cerimônia. Segundo denúncias dos movimentos sociais, foram emitidos poucos convites personalizados, imprescindíveis à participação do evento.
Em documento divulgado no último dia 16, setores da Igreja, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Comissão Dominicana de Justiça e Paz do Brasil, o Conselho Nacional do Laicato do Brasil (CNLB) e o Grito dos Excluídos, entre outros, declararam boicote ao evento. Citando o texto-base da CF, que faz duras críticas à ação do agronegócio, das madeireiras e das mineradoras na região, além de aprofundar a análise dos impactos destas atividades sobre o meio ambiente e, principalmente, as populações indígenas, quilombolas, ribeirinhas, caboclas e demais comunidades tradicionais da Amazônia, as organizações denunciaram que “entre o discurso do texto-base e a prática manifestada no ato de lançamento da Campanha, há uma contradição muito grande. A organização do lançamento foi entregue a uma empresa de eventos. O lançamento será numa ilha. A participarão no mesmo será restrita aos que tiverem convites. (...) O povo, apresentado como centro no texto-base, com sua rica diversidade de culturas e religiões, onde estará?”
E continua: “O mais grave, no nosso entender, é que este lançamento seja patrocinado pela Companhia Vale do Rio Doce, que é uma das principais responsáveis pela destruição ambiental e por conflitos com as populações tradicionais da Amazônia. (...) A Vale tem viabilizado a construção de uma série de siderúrgicas que utilizam o carvão vegetal para a produção do ferro-gusa. Segundo o cálculo de ambientalistas e de outros estudiosos, são praticamente 300 mil hectares de floresta primária que, a cada ano, são destruídos para a produção de carvão. Algumas dessas siderúrgicas já foram flagradas e multadas pela fiscalização do Ministério do Trabalho por manter centenas de trabalhadores como escravos em suas carvoarias, inclusive crianças. Como é possível que a CNBB aceite o patrocínio de uma empresa como esta para o lançamento de uma Campanha que quer chamar a atenção para a defesa e a preservação do meio ambiente, e para a valorização das comunidades e povos tradicionais da Amazônia?”.
Segundo José Batista, coordenador da CPT de Marabá, as pastorais sociais e as bases da Igreja, que participaram de um complexo e profícuo processo de elaboração do documento-base da CF, foram pegas de surpresa pelo patrocínio da CVRD, principalmente porque a CNBB teria todas as condições financeiras de arcar com os custos da cerimônia.
“A CNBB não precisava disso. O problema é grave: não dá para conciliar o patrocínio da CVRD com o conteúdo e os questionamentos da Campanha. Ela já está prejudicada, teve sua credibilidade comprometida, uma vez que o lançamento dá a cara à Campanha. Se no lançamento se celebra um acordo com os acusados, como levar adiante o debate dos problemas da Amazônia e de seus responsáveis?”, questiona Batista. E desabafa: “como diz o Evangelho, não se pode servir a dois senhores, ao dinheiro e às causas sociais. [A Campanha] não poderia se submeter ao dinheiro”.
Procurado pela reportagem da Carta Maior, o secretário executivo da Campanha, Padre José Carlos Tóffoli, afirmou que as críticas não teriam chegado oficialmente à direção da CNBB, que, por isso, não se pronunciaria.
Para o bem da Amazônia
Centrada no povo da Amazônia, “vítima, com freqüência, de esquecimento e discriminação, de graves conflitos, de violência e de sangue” e nos problemas da ocupação da terra e da exploração dos recursos naturais, onde “muitas vezes impera a lei da selva, a lei do mais forte, por causa da ausência, ou da ineficiência do Estado e de suas Instituições”, a CF sobre a Amazônia, segundo documento da CNBB, pretende nacionalizar um debate ainda espinhoso para o país: a atuação do grande capital na região, o desrespeito às leis e uma realidade onde “pessoas idealistas e generosas, que fizeram da solidariedade social o seu programa de vida e atuação, são vítimas de ameaças e da perda de suas vidas, como acontece com sindicalistas, agentes sociais e missionários, a exemplo de Ir. Dorothy Stang e tantos outros, em toda a Amazônia”.
Liderança social em Santarém e um dos vários religiosos já ameaçados de morte no Pará, padre Edilberto Sena – que divide o “status” com colegas como padre Amaro de Sousa, da CPT de Anapu, padre José Boing, de Santarém, frei Henri des Roziers, da CPT em Xinguara, além de Dom Erwin Kräutler, Bispo da Prelazia do Xingu – adere às críticas dos movimentos sociais à “pisada na bola” da CNBB em relação à Vale do rio Doce, mas acredita que, de qualquer maneira, ter a Amazônia como pauta da principal campanha da Igreja Católica é muito importante para as comunidades da região.
“ A Igreja tem um grande poder de influência, tem uma capilaridade fantástica”, avalia, realçando a importância das denúncias contra o agronegócio, mineração, madeireiras etc. Por outro lado, porém, estaria faltando à Campanha um questionamento mais direto ao modelo de desenvolvimento implementado na Amazônia pelo governo federal, avalia o padre.
“Deveria ser papel da Igreja questionar esta visão elitista do governo, que olha a Amazônia como um saco de onde só se retira riquezas. A decisão obstinada do governo de construir 10 hidrelétricas na região, que servirão ao Sul e ao Sudeste, por exemplo, teria que ser objeto de discussão”, afirma Sena, para quem as críticas à atuação do governo é apenas tangencial.
(Por Verena Glass,
Agência Carta Maior, 21/02/2007)