Em 2005, a Terra Indígena Raposa Serra do Sol foi homologada pelo presidente Lula após um processo que levou mais de vinte anos para ser concluído. Pouco mais de 1,7 milhão de hectares de terras foram reconhecidos como pertencentes a 100 comunidades indígenas da região. Dois anos depois do reconhecimento da terra, os índios ainda travam uma batalha contra grandes produtores de arroz continuam ativos dentro da área demarcada.
De acordo com o Conselho Indígena de Roraima (CIR), atualmente, cerca de 17 mil índios vivem na Raposa Serra do Sol, o que representa quase metade de toda a população de 34,5 mil índios de Roraima. A área de arroz plantado ilegalmente pode chegar a 100 mil hectares, segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai).
Os fazendeiros que ainda estão na Raposa Serra do Sol têm 30 dias para contestar o valor das indenizações a serem pagas pelas suas benfeitorias e outros 30 para se retirarem do local. Ao final desses 60 dias, se houver permanência dessas pessoas na área, a Polícia Federal será acionada.
“Para o Governo Federal, não há possibilidade de os fazendeiros permanecerem ali. Eles vão ter que desocupar”, afirma o procurador-geral da Funai, Luiz Fernando Villares. A expectativa, segundo ele, é que entre abril e maio toda a desintrusão seja feita.
Mas, mesmo sob pressão dos indígenas e das instituições do governo, a produção de arroz parece continuar intocada. “Estamos plantando, colhendo, investindo e produzindo”, afirma Paulo César Quartiero, presidente da Associação dos Arrozeiros de Roraima. Ele diz que planta arroz há mais de 30 anos na região e se queixa da pressão para deixar os cultivos ilegais e as terras indígenas: “Nós sofremos impactos negativos indiretamente, porque, ao invés de plantarmos, estamos correndo atrás de apoio político e jurídico”, explica. De acordo com ele, já existem ações na Justiça por parte dos rizicultores para lhes assegurar as terras do plantio.
Na sexta-feira (16/02), Quartiero (PDT), que também é prefeito do município de Pacaraima, foi cassado pelo Tribunal Regional Eleitoral sob acusação de abuso de poder econômico e por compra de votos. De acordo com o CIR, a primeira acusação se refere ao fato de o fazendeiro ter feito uma de suas lavouras de arroz dentro de uma maloca indígena. O novo prefeito, que ficou em segundo lugar nas eleições de 2004, já assumiu o cargo. Quartiero vai entrar com recurso na Justiça.
O fazendeiro destaca que o arroz é o principal produto do Estado. Na sua opinião, não há alternativas econômicas para Roraima que não sejam a agricultura. “Nós geramos impostos, recursos e tecnologia. Fornecemos à população o arroz mais barato, barateando o custo de vida. Como o Estado vai atender a demanda social, se não tiver receita e produção?”, questiona.
Os índios, por outro lado, reafirmam a sua autonomia e independência. Segundo Dionito José de Souza, indígena Macuxi e coordenador geral do CIR, nos últimos tempos os índios têm evitado conflitos violentos e problemas com os produtores de arroz, mas não abrem mão de toda a área demarcada da Raposa Serra do Sol e da autonomia conquistada, que lhes foram garantidas por lei. “Nós pedimos a retirada dos produtores de arroz. Eles estão trabalhando dia e noite; o cultivo é direto, ninguém interrompe o trabalho. São grandes arrozeiros e eles tiram muitas toneladas de arroz dos plantios”, protesta Souza.
Em nota da 36a Assembléia dos Povos Indígenas de Roraima, os índios reivindicam “uma equipe de peritos agrônomos para fazer o levantamento dos danos ambientais provocados pelas plantações de arroz para posterior indenização e recuperação das áreas degradadas”.
“Temos planos de desenvolvimento sustentável e projetos de agropecuária e piscicultura”, explica Souza. Atualmente, as comunidades indígenas desenvolvem agricultura e pecuária bovina de subsistência. A idéia é que parte da agricultura de mandioca e milho, os principais produtos dos indígenas da região, se torne mecanizada no futuro.
O coordenador do CIR afirma que as comunidades da Raposa Serra do Sol têm acesso à educação e à saúde. Segundo ele, há 84 laboratórios médicos espalhados para atender as populações indígenas e quase 100% dos índios são vacinados. Existem programas de prevenção contra a malária, que contribuíram para diminuir as ocorrências da doença nos últimos anos.
Já o presidente da Associação dos Arrozeiros afirma que saídas dos fazendeiros, ao contrário, trará prejuízo aos índios. “A demarcação da Raposa Serra do Sol vai isolar os índios. Eles são os que serão prejudicados nesse processo. Você acha que, em pleno século XXI, tem como eles sobreviverem sozinhos? As ONGs dizem que os índios têm que viver de acordo com a cultura deles, mas a cultura dos índios é da idade da pedra. Não dá para viver assim no mundo globalizado”, avalia. Quartiero aponta que, por esses motivos, os indígenas serão os principais prejudicados com a demarcação e diz que os pequenos produtores também sofrerão com o processo, pois terão que se deslocar para periferias das zonas urbanas.
“Só pelo fato de os índios terem essas terras reconhecidas já é uma garantia deles para explorar a terra e exigir a infra-estrutura necessária. Há uma rede de proteção ao índio que já está estabelecida no Brasil inteiro”, afirma o procurador-geral da Funai.
Quanto aos pequenos agricultores que foram retirados da área indígena, o procurador geral explica que as condições de muitos melhoraram por terem recebido glebas maiores de terra depois da desintrusão. Ele afirma que a legalização fundiária dessas pessoas permite financiamentos e créditos para a produção, o não seria concedido se estivessem ilegalmente na Raposa Serra do Sol. Atualmente, 178 proprietários foram indenizados. Outros 95 estão com o processo de análise de propriedades em andamento e mais 63 estão na justiça para rever o valor indenizatório. Esses últimos 158 proprietários são os que ainda continuam na terra indígena.
“As únicas pessoas que vão piorar de vida são os grandes produtores, pois estão plantando e degradando o meio ambiente de uma terra que não é deles. O problema e a resistência maior são os grandes produtores, porque são a elite local”, explica Villares.
No entanto, os índios ainda lutam pelo cumprimento de outras medidas. Três das quatro escolas que atendem as oito mil crianças indígenas ainda precisam passar para a gestão das comunidades. Atualmente, apenas uma escola está em processo de repasse à administração indígena. Apesar de receberem assistência médica, Souza afirma que os repasses dos recursos enfrentam a burocracia da Funasa e, muitas vezes, isso acarreta atrasos no pagamento dos servidores.
Ocupação de má fé
Segundo Villares, a ocupação dos arrozeiros é recente e ocorreu há menos de dez anos, após a declaração da Raposa Serra do Sol como terra indígena em dezembro de 1998. Por esse motivo, explica o procurador-geral, as terras não têm valor indenizatório, já que a ocupação é considerada invasão.
Devido a essa ilegalidade, as maiores perdas de fato serão dos grandes rizicultores. Villares afirma que os plantadores de arroz, além de não terem direito à indenização sobre a terra, também não serão ressarcidos pelos plantios de arroz, pois os mesmos foram feitos após a homologação da terra. “São plantios de má-fé, pois os fazendeiros já sabiam que eram terras indígenas e não podiam cultivar ali”, explica.
Um outro problema, segundo Villares, é que os cultivos são irregulares também do ponto de vista ambiental por não apresentarem licenciamento. As indenizações contemplariam apenas benfeitorias como casas e infra-estruturas que estejam regularizadas.
(Por Natalia Suzuki,
Agência Carta Maior, 17/02/2007)